Confabulacoes Imaginarias Glaucia Davino - Literatura (2024)

Literatura

Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro

josivaldoeokara Bezerra 12/10/2024

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<p>Confabulações Imaginárias</p><p>Histórias de Roteiristas</p><p>G lauc ia Dav ino (o rg . )</p><p>2 0 1 9</p><p>Glaucia Davino (org.)</p><p>2019</p><p>São Paulo</p><p>____________________________________________________________________</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>I</p><p>©2019. Gláucia Davino – Grupo de pesquisa Núcleo Audiovisual (CNPq)</p><p>Universidade Presbiteriana Mackenzie</p><p>Corpo Texto Editora</p><p>A responsabilidade pelos textos, opiniões, dados, fontes, citações, imagens, referências utilizadas</p><p>nos respectivos artigos e demais direitos legais são de inteira responsabilidade de seus autores,</p><p>em todas as sessões dessa publicação. Tais textos não refletem a opinião do organizador da obra,</p><p>nem das instituições envolvidas nessa produção.</p><p>É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.</p><p>Capa e Projeto gráfico</p><p>Claudia Silene Pereira de Oliveira</p><p>Fotografia da capa</p><p>Helena Vincent</p><p>Editoração</p><p>Claudia Silene Pereira de Oliveira</p><p>Glaucia Davino</p><p>Revisão</p><p>Mônica de Moraes Oliveira</p><p>Site do evento</p><p>Glaucia Davino</p><p>Marina Tavares</p><p>Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)</p><p>Bibliotecária Responsável: Eliana Barboza de Oliveira Silva – CRB 8/8925</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>II</p><p>COMISSÃO DE HONRA</p><p>UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE</p><p>REITOR</p><p>Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto</p><p>VICE-REITOR</p><p>Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos</p><p>PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO E</p><p>ASSUNTOS ACADÊMICOS</p><p>Profa. Dra. Marili Moreira da Silva Vieira</p><p>PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E EDUCAÇÃO</p><p>CONTINUADA</p><p>Prof. Dr Jorge Alexandre Onoda Pessanha</p><p>PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-</p><p>GRADUAÇÃO</p><p>Prof. Dr. Paulo Batista Lopes</p><p>COORDENADORA GERAL DE PÓS-</p><p>GRADUAÇÃO STRITO SENSU (CPGS)</p><p>Profa. Dra. Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira</p><p>CHEFE DE GABINETE DA REITORIA</p><p>Prof. Dr. Wilson do Amaral Filho</p><p>COMISSÃO INSTITUCIONAL</p><p>UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE</p><p>PPG EDUCAÇÃO ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA -</p><p>EAHC/ CEFT</p><p>Prof. Dr. Marcel Mendes</p><p>Diretor do CEFT e docente no PPG EAHC</p><p>Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno</p><p>Coordenador e docente no PPG EAHC - CEFT</p><p>Prof. Dr. José Cássio Másculo</p><p>Coordenador de Atividades Complementares e</p><p>Extensão CEFT</p><p>Profa. Dra. Ani Martins da Silva</p><p>Coordenadora de Estágios e Protagonismo Estudantil</p><p>CEFT</p><p>CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCL</p><p>Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte</p><p>Diretor e Docente do CCL</p><p>Profa. Dra. Isabel Orestes da Silveira e</p><p>Profa. Dra. Fernanda Nardy Bellicieri</p><p>Coordenadora de TCC e Pesquisa do CCL</p><p>Prof. Ms. José Estevão Favaro</p><p>Coordenador de Estágio e Protagonismo Estudantil</p><p>CCL</p><p>Prof. Ms Osvaldo Takaoki Hattori</p><p>Coordenador Adjunto do CCL</p><p>Prof. Dr. Perrotti Pasquale Pietrangelo</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>III</p><p>Coordenador de Atividades Complementares do CCL</p><p>COMISSÃO ORGANIZADORA</p><p>UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE</p><p>PPG EDUCAÇÃO ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA - EAHC/ CEFT</p><p>CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCL</p><p>Profa. Dra. Gláucia Davino</p><p>Presidente da comissão</p><p>Linguagens e Tecnocnologias (PPG EAHC) - Comissão de Eventos PPG EAHC</p><p>Profa. Dra. Fernanda Bellicieri</p><p>Linguagens e Tecnologias (PP CCL)</p><p>Prof. Dr. Marcel Mendes</p><p>Diretor CEFT</p><p>Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno</p><p>Coordenador PPG EAHC - CEFT</p><p>Prof. Dr. Marcos Rizolli</p><p>Linguagens e Tecnologias (PPG EAHC)</p><p>Mestranda Marina Tavares</p><p>Linguagens e Tecnologias (PPG EAHC)</p><p>Profa. Dra. Mirian Celeste Ferreira Dias Martins</p><p>Formação do Educador para a Interdisciplinaridade (PPG EAHC) - Comissão de Eventos PPG</p><p>EAHC</p><p>Profa. Dra. Rosana Maria Pires Barbato Schwartz</p><p>Culturas e Artes na Contemporaneidade (PPG EAHC e PUC) - Comissão de Eventos PPG EAHC</p><p>COMISSÃO ORGANIZADORA</p><p>INSTITUIÇÕES PARCEIRAS</p><p>Ms. Juliana Reis</p><p>Roteirista e Diretora</p><p>Codiretora de Comunicação e Editora de conteúdo do site da Associação</p><p>Brasileira de Roteiristas Autores ABRA</p><p>Dra. Letícia Passos Affini</p><p>PPG - Ms Profissional TV Digital UNESP</p><p>Dra. Mônica de Moraes Oliveira</p><p>Pesquisadora em Ciências da Comunicação</p><p>Velame Produtora</p><p>Prof. Dr. Paulo Matias de Figueiredo Jr.</p><p>Universidade Federal de Campina Grande (PB)</p><p>Rodadas de Projetos</p><p>Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira</p><p>Livre Docente PPG - IA UNESP - líder do Artemídia</p><p>Videoclip</p><p>RÉDITOS</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>IV</p><p>COMISSÃO CIENTÍFICA E AVALIADORES AD HOC</p><p>Adelina Maria Pereira da Silva (UA, Portugal)</p><p>Adolpho Queiroz (UPM - CCL)</p><p>Ariane Daniela Cole (UPM - FAU)</p><p>Alexandre S. Kieling (UCB)</p><p>Alfredo Caminos (UAB, Espanha)</p><p>Arlete Santos Petry (UFRN)</p><p>Casimiro Alberto Moreira Pinto</p><p>Celso Figueiredo (UPM - CCL)</p><p>Denise Cristine Paiero (UPM - CCL)</p><p>Elen Doppenschmitt (FIAM - FAAM)</p><p>Erika Savernini (EBA - UFMG, Minas Gerais)</p><p>Fernanda Nardy Bellicieri (UPM - CCL)</p><p>Flávia Seligman (UVS, Rio Grande do Sul)</p><p>Gláucia E. Davino (UPM - CEFT - PPGEAHC)</p><p>Helena Bonito do Couto Pereira (UPM - PPG Letras)</p><p>Henny Aguiar Bizarro Rosa Favaro (UPM)</p><p>Isabel Orestes da Silveira</p><p>João Massarolo (UFSCAR)</p><p>José da Silva Ribeiro (UFG e UA, Portugal)</p><p>José Estevão Favaro (UPM)</p><p>Letícia Passos Affini (UNESP)</p><p>Luciana Rodrigues Silva (FAAP - Cinema)</p><p>Marcel Mendes (UPM CEFT - PPG EAHC)</p><p>Marcelo Bueno (UPM -CEFT - PPG EAHC)</p><p>Márcia Perecin Tondato (ESPM)</p><p>Marcos Rizolli (UPM - CEFT - PPG EAHC)</p><p>Maria do Céu Martins Monteiro Marques (UA, Portugal)</p><p>Maria de Fátima Ferreira Nunes (CEMRI - Portugal)</p><p>Mariza de Fátima Reis (UPM - CCL)</p><p>Maria Luiza Guarnieri Atik (UPM - CCL)</p><p>Monica de Morais Oliveira (Velame)</p><p>Pelópidas Cypriano de Oliveira (IA - UNESP)</p><p>Regina Giora (UPM - CEFT - PPG EAHC)</p><p>Regina Lara (UPM - CEFT - PPG EAHC)</p><p>Rosana Schwartz (UPM - CEFT - PPG EAHC)</p><p>Valéria Bussola Martins (UPM - CCL)</p><p>SUMÁRIO</p><p>I</p><p>II</p><p>III</p><p>IV</p><p>VIII</p><p>SESSÃO 1 GRUPOS DE TRABALHO 01</p><p>02</p><p>O plano de voo e o voo: roteiro e experimentação</p><p>The flight plan and the flight: script and experimentation</p><p>Patrícia Dourado</p><p>03</p><p>A Relação entre H. P. Lovecraft e o Cinema Trash</p><p>The Relation between H. P. Lovecraft and Trash Cinema</p><p>Yuri Garcia</p><p>15</p><p>26</p><p>Produção e recepção de séries contemporâneas: aspectos</p><p>do enredo</p><p>Production and Reception of Contemporary TV Series:</p><p>Aspects of the Plot</p><p>Cristine Fickelscherer de Mattos</p><p>27</p><p>Tramas e dramas imagéticos: construção narrativa, sentidos</p><p>e representações em série norte-americana centrada em</p><p>relacionamentos</p><p>Plots and imagetic dramas: narrative construction,</p><p>meanings and representations in north-american series</p><p>based on relationships</p><p>Fernanda Elouise Budag</p><p>Camilla Rocha</p><p>39</p><p>49</p><p>Algumas reflexões sobre humanos e máquinas na ficção</p><p>cinematográfica</p><p>Some reflections on humans and machines in film fiction</p><p>50</p><p>Ana Lúcia Trevisan</p><p>Elaine Cristina de Oliveira Prado</p><p>Isabel Orestes Silveira</p><p>O imaginário feminino transgressor de Hayao Miyazaki</p><p>versus o</p><p>mercado de animação</p><p>Hayao Miyazaki's transgressive female imaginary versus the</p><p>animation market</p><p>Lilia Nogueira Calcagno Horta</p><p>Rachel Nogueira Calcagno Horta</p><p>57</p><p>O consumo das narrativas na pós-modernidade e os</p><p>sujeitos como coprodutores de histórias</p><p>Literature consumption and lectors as coproducers of</p><p>stories</p><p>Dora Carvalho</p><p>69</p><p>Baile dos Deuses Mortos nos escombros d’O Casarão:</p><p>aspectos cíclicos da obra de Lauro César Muniz para a TV</p><p>Dance of</p><p>Howard</p><p>Philips Lovecraft. Com um intelecto que parecia atuar no limite entre a genialidade e a</p><p>loucura, como apontado em sua interessante biografia12, e uma enorme dificuldade para</p><p>conseguir arranjar emprego ou se sustentar através de sua escrita, o autor viveu uma vida</p><p>publicando em revistas amadoras. Morreu em 15 de Março de 1937, precisamente num</p><p>momento em que parecia atingir sua maturidade intelectual e literária, ensaiando um</p><p>início de reconhecimento que apontava para seu ápice como escritor.</p><p>Lovecraft não fora um autor de grande repercussão ou sucesso em vida. Mesmo</p><p>assim, possuía fiéis seguidores do seu trabalho, que contribuíram para fazer algumas de</p><p>suas últimas obras chegarem às prensas. Não muito tempo após sua morte, as histórias do</p><p>autor começam a se firmar no cenário da literatura de horror, destacando-o como um dos</p><p>principais nomes do gênero e conquistando legiões cada vez maiores de admiradores entre</p><p>nichos de públicos específicos. Atualmente, é consolidado como um grande nome do</p><p>12 Para mais detalhes ver o livro de S. T. Joshi “A Dreamer and a Visionary: H. P. Lovecraft in his time” (2001) ou sua tradução em português de 2014 “A Vida de H. P.</p><p>Lovecraft”.</p><p>17</p><p>horror e da ficção fantástica e sua mitologia e perspectivas foram incorporadas em nossa</p><p>cultura e são continuamente reelaboradas.</p><p>O princípio literário de Lovecraft era o que ele chamava de Cosmicismo</p><p>ou Terror Cósmico, que se resume à ideia de que a vida é</p><p>incompreensível ao ser humano, e de que o universo é infinitamente</p><p>hostil aos interesses do homem. Isto posto, as suas obras expressam uma</p><p>profunda indiferença às crenças e atividades humanas. (Wikipédia)13</p><p>O verbete acima oferece uma breve, porém eficiente descrição do princípio</p><p>literário das obras de Lovecraft. Na realidade, embora a mitologia lovecraftiana seja um</p><p>pouco complexa, é interessante como encontramos diversas explicações bem satisfatórias</p><p>ao procuramos na internet em meios mais simples de pesquisa como a Wikipédia.</p><p>Lovecraft nos apresenta seres indescritíveis e cria universos que ultrapassam os</p><p>limites da racionalidade. Seu mundo imaginário representa o ser humano como criatura</p><p>abandonada em um cosmos indiferente à sua existência, dando forma a uma peculiar</p><p>mitologia não (ou mesmo anti) antropocêntrica. Espécies alienígenas muito superiores</p><p>teriam dominado a Terra em um passado remoto e aguardam adormecidas seu retorno em</p><p>um futuro apocalíptico14. Dessa forma, o autor nos apresenta um conceito de divindade</p><p>que prescinde dos homens e habita outra(s) dimensão(ões), possuindo noções de tempo e</p><p>espaço muito além da capacidade da compreensão humana.Tal mitologia evoca uma</p><p>religiosidade monstruosa de alienígenas e uma perspectiva com uma visão do ser-humano</p><p>como um mero inseto insignificante diante de um cosmos que aponta para o imenso poder</p><p>do desconhecido.</p><p>Lovecraft e o Trash</p><p>Na biografia de Lovecraft escrita por S. T. Joshi, afirma-se que o autor foi um</p><p>pequeno gênio desde seus primeiros anos de vida. Sua paixão por leitura e poesia, seu</p><p>grande conhecimento científico (para a época), seus estudos sobre mitologia e suas fortes</p><p>opiniões sobre os mais variados assuntos apresentam um intelectual que deveria figurar</p><p>como um importante personagem da chamada cultura erudita15. O autor cria um mundo</p><p>de extrema complexidade que acaba por impactar massivamente nossa cultura</p><p>13 https://pt.wikipedia.org/wiki/H._P._Lovecraft</p><p>14 Nesse sentido, é possível especular que seu impacto na cultura contemporânea (por exemplo, em formas de literatura esotérica popular ou na vertente de “Eram os Deuses</p><p>Astronautas”, de Erik Von Däniken) foi ainda maior do que se poderia pressupor à primeira vista. Ver a curiosa tese de Jason Colavito em “The Cult of Ancient Gods: H. P.</p><p>Lovecraft and Extraterrestrial Pop Culture” (2005).</p><p>15 Destacamos que a noção de cultura erudita e cultura de massa é extremamente dicotômica e não consegue abarcar todas as complexidades e possibilidades do cenário cultural</p><p>atual. Entretanto, aqui, será utilizado apenas como um operador teórico com finalidade de simplificar o entendimento e possibilitar maior fluidez do texto.</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/H._P._Lovecraft</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/H._P._Lovecraft</p><p>18</p><p>contemporânea, podendo ser mapeado sua e influência em diversos artistas e pensadores</p><p>(filósofos, acadêmicos de literatura e diversas mídias entre outros).</p><p>Diante de tais dimensões que as narrativas lovecraftianas apresentam, vale pensar</p><p>em como seus diálogos com o cinema ocorrem. Atualmente, o fenômeno de apropriação</p><p>de sua literatura para o cinema continua forte, principalmente diante de um momento em</p><p>que cada vez mais filmes estão sendo feitos. A necessidade de grandes investimentos e</p><p>grandes indústrias por trás da criação fílmica está sendo substituída por uma realidade em</p><p>que a facilidade de produção se destaca . No entanto, mesmo após mais de 60 anos de</p><p>transposições cinematográficas, Lovecraft continua figurando entre um nicho mais</p><p>específico de produções, o cinema trash16.</p><p>Para pensarmos nessa relação estabelecida entre as obras do autor e seu diálogo</p><p>com outras mídias, aponto o fenômeno da Cauda Longa (ANDERSON, 2006) como um</p><p>importante agente ao possibilitar um crescimento da produção de produtos considerados</p><p>de nicho, assim como também procuro evocar o termo (e título do livro) Remediation</p><p>cunhado por Jay Bolter e Richard Grusin (2000) para refletir sobre as novas versões</p><p>baseadas nos escritos de Lovecraft e de sua mitologia.</p><p>A obra de Bolter e Grusin possui o subtítulo “Understanding New Media” que</p><p>apenas reforça a inspiração McLuhaniana de que as novas mídias trazem elementos (não</p><p>só em sua gramática e linguagem como também nos produtos) de mídias anteriores ao</p><p>prestar uma homenagem ao seu mais famoso livro “Understanding Media” traduzido</p><p>como “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (2007). Em “Estendendo</p><p>McLuhan: da Aldeia à Teia Global” (2011) de Vinícius Andrade Pereira, o autor destaca</p><p>“[...] um meio porta um outro meio no seu interior, como maneira de se apresentar e se</p><p>traduzir para um usuário” (p.142) e discute a relação entre ambas as obras no item 7.2 e</p><p>7.3.4 do capítulo 7. Pereira refere-se mais à questão gramatical mesmo, entretanto uma</p><p>parte da obra de Bolter e Grusin é destinada aos conteúdos, tomando como exemplo uma</p><p>onda de transposições fílmicas de obras de Jane Austin já a partir da década de 90.</p><p>Dessa forma, como um suporte teórico inicial para pensar em algumas</p><p>transposições cinematográficas lovecraftianas, é fácil perceber que tais diálogos são algo</p><p>extremamente comum entre todas as mídias, sobretudo o cinema. Todavia, o processo</p><p>16 Na verdade o trash seria mais um subgênero do que um gênero e existente em diversos segmentos. Existem filmes de ficção cient ífica trash, comédia trash, ação trash etc.</p><p>Talvez os mais famosos sejam os filmes de terror trash que são onde a literatura lovecraftiana é predominante como fonte de inspiração.</p><p>19</p><p>não é simples como aparenta. A própria mudança de suporte já traz por si só um problema</p><p>de adequação que faz com que algumas alterações sejam necessárias.</p><p>A Linguagem Cinematográfica muito bem detalhada por Marcel Martin (2011)</p><p>em seu livro apresenta uma série de técnicas que constituem uma gramática ou, uma</p><p>espécie de padrão que o cinema apresenta. Assim, como uma forma de contar histórias</p><p>contando com uma narrativa mais linear e de fácil compreensão que se consolida, surgem</p><p>também estudos sobre técnicas e interpretações de filmes que dominam a área17. As</p><p>experimentações técnicas que se padronizavam em uma gramática cinematográfica eram</p><p>acompanhadas teoricamente e desenvolviam novas formas de se utilizar do cinema.</p><p>“Partindo dessas</p><p>operações linguísticas, teóricos tentaram escrever gramáticas</p><p>cinematográficas, parecidas com as que se fazem para as línguas.” (BERNARDET, 1985,</p><p>p.37-38)</p><p>O padrão empregado por Hollywood em seu período clássico trazia uma</p><p>linguagem que, através de algumas evoluções, apresenta uma forma de se fazer cinema</p><p>que perdura até o presente. Com o passar do tempo, absorve alguns traços característicos</p><p>de filmes que à época do cinema clássico eram revolucionários e traziam uma nova</p><p>estética ou narrativa e/ou outras experimentações, bastante diversas da tipicamente</p><p>americana; porém, sempre mantendo alguns traços característicos que se encontram</p><p>dentro de uma adequação do padrão americano e, funcionando em uma lógica industrial.</p><p>A vantagem que o processo de adaptação ou transposição possui inicialmente é</p><p>uma proximidade entre os meios em seu composto narrativo. O autor Brian McFarlane</p><p>em seu livro “Novel to Film: An Introduction to the Theory of Adaptation” (1996) destaca</p><p>que o grande sucesso do cinema se deve em parte à sua proximidade com o livro, sua</p><p>capacidade narrativa.</p><p>Todavia, os contos de Lovecraft costumam figurar em torno de um universo mais</p><p>trash do cinema. Em seu famoso ensaio “‘Trashing’ the academy: taste, excess, and an</p><p>emerging politics of cinematic style” (1995), Jeffrey Sconce insere o trash em seu</p><p>conceito de Paracinema, que atribui a filmes que fogem de um padrão mainstream. “Ao</p><p>cultivar um contra-cinema da escória de filmes de exploração, os fãs paracinemáticos,</p><p>17 Os primeiros teóricos do cinema eram também realizadores, o que contribui, desde seu começo, com uma forte ligação entre teoria e prática nesse meio. Para mais detalhes,</p><p>ver CASETTI, 1999.</p><p>20</p><p>assim como a academia, situam-se explicitamente em oposição ao cinema de Hollywood</p><p>e à cultura mainstream norte-americana que ele representa.” (p.381)18</p><p>É importante destacar que, como o próprio autor conclui mais a frente em seu</p><p>trabalho, esse caráter que foge do padrão mainstream hollywoodiano, não possui um</p><p>aspecto mais transgressor ou de contra-cultura por questões artísticas, mas, normalmente,</p><p>por questões orçamentárias ou pela própria falta de qualidade cinematográfica dos</p><p>envolvidos na produção (como o famoso caso do diretor Ed Wood). “Esses filmes se</p><p>desviam do classicismo de Hollywood, não necessariamente pela intencionalidade</p><p>artística, mas pelos efeitos da pobreza material e da inaptidão técnica.” (p.385)19</p><p>Sconce segue seu ensaio discutindo a entrada do cinema trash nos meios</p><p>acadêmicos e aborda o seu público, destacando-o como maioritariamente composto de</p><p>“homens, brancos, classe-média e educados na perspectiva cinematográfica”20. Um</p><p>público que tem acesso à alta cultura e que, seguindo o estudo de Peterson e Kern</p><p>(1996)21, seria de consumidores omnívoros, isto é transitam entre a cultura de massa e a</p><p>cultura erudita, sem se ater exatamente a um determinado segmento.</p><p>Curiosamente, embora os estudos apontados acima sejam da década de 1990 e</p><p>relatem mudanças no consumo iniciando depois da Segunda Guerra Mundial (Peterson e</p><p>Kern) ou mais recente (Sconce), Lovecraft se encaixa nas características descritas pelos</p><p>autores e, de fato, era um consumidor de ambas as culturas, embora no seu caso seja, mais</p><p>especificamente, na literatura e não no cinema.</p><p>Os pesquisadores da Max Planck Institute for Empirical Aesthetics, de Frankfurt,</p><p>Keyvan Sarkhosh e Winifried Menninghaus apresentaram o recente trabalho “Enjoying</p><p>trash films: Underlying features, viewing stances and experimental response dimensions”</p><p>(2016) onde procuram identificar apreciadores do trash e seus modos de consumo, assim</p><p>como conceituar o termo, a partir de seu público. Assim, costuma abarcar uma ampla</p><p>gama de tipos de filmes que fogem dos padrões mainstream como: filmes baratos ou de</p><p>baixo orçamento (a palavra cheap foi a mais decorrente entre as 342 pessoas que os</p><p>18 Todas as traduções, quando não apontadas o contrário, são de nossa autoria. “In cultivating a counter-cinema from the dregs of exploitation films, paracinematic fans, like the</p><p>academy, explicitly situate themselves in opposition to Hollywood cinema and the mainstream US culture it represents.” (p.381)</p><p>19 “These films deviate from Hollywood classicism not necessarily by artistic intentionality, but by the effects of material poverty and technical ineptitude.” (p.385)</p><p>20 “[...] embodies primarily a male, white, middle-class, and 'educated' perspective on the cinema.” (p.375)</p><p>21 A tese dos autores é de houve uma mudança que transformou os consumidores da “alta cultura” (antes vistos como elitistas que queriam diferenciar seus gostos do povo em</p><p>geral) em consumidores “omnívoros”, ou seja, que consomem produtos da “cultura de massa” e da “cultura erudita”. Para mais detalhes ver: Peterson; Kern. Changing Highbrow</p><p>Taste: From Snob to Omnivore. (1996).</p><p>21</p><p>participaram da pesquisa22); exploitation (sexo e violência) e filmes ruins (filmes</p><p>objetivamente ruins com diversos problemas e que saem do padrão típico</p><p>hollywoodiano), mas também como divertido e como possuindo um valor transgressor e</p><p>positivo que desvia do cinema mainstream.</p><p>Talvez a linguagem de Lovecraft, suas criações e suas narrativas estejam</p><p>destinadas a apropriações para o cinema trash, visto que é um terreno em que algumas</p><p>das estranhezas que o autor apresenta poderiam se adaptar melhor. “A narrativa de ficção</p><p>tradicional tende a girar em torno de conflitos de uma série de personagens com os quais</p><p>o leitor deve se identificar e outro grupo de personagens que se apresentam como infames</p><p>ou indignos de >. ” (ALLEN; GOMERY, 1995. p.69)23</p><p>Assim, um padrão de final feliz para os protagonistas e um final em que os vilões</p><p>pagam por seus pecados é algo institucionalizado na narrativa cinamtográfica. Siegfried</p><p>Kracauer pauta sobre a tarefa do diretor em construir os filmes no modelo</p><p>cinematográfico clássico – o qual o autor criticava por sua distância com a realidade e</p><p>falta de comprometimento social e político – como:</p><p>Quem preside é o diretor. Possui a difícil tarefa de dar ao material de</p><p>imagens aquela unidade que está na bela desordem como a própria vida</p><p>que a vida deve à arte. Ele se fecha na sala de projeção privada com os</p><p>rolos de filme e os projeta repetidamente. Passam sob o crivo, são</p><p>emendados um no outro, cortados e legendados. Até que, finalmente,</p><p>do enorme caos brota um pequeno todo. Um drama social, um evento</p><p>histórico, um destino de mulher. Em geral o final é feliz: as nuvens de</p><p>vidro formam-se e dissipam-se. Acredita-se nas quatro paredes. Tudo é</p><p>natureza garantida. (2009, p.310)</p><p>Os escritos de Lovecraft não possuem happy ending, seus contos são pequenos</p><p>em sua maioria e seu fio narrativo parece ficar monótono no cinema. Suas criações, que</p><p>são assustadoras através de sua escrita, tendem a ficar mais toscas em imagens.</p><p>Obviamente não pretendo tomar como uma regra definitiva ou desenvolver uma equação</p><p>matemática (Lovecraft + cinema = filmes trash), contudo é inevitável perceber que a</p><p>maioria de suas adaptações se enquadra nesse padrão.</p><p>Nesse caso, a relação de Lovecraft com o cinema trash é emblemática. Como</p><p>mencionado anteriormente, não compreendemos isso como uma regra geral, pois,</p><p>22 A pesquisa de Sarkhosh e Menninghaus contou com 372 pessoas (com apenas 342 sendo aproveitados no final devido à 30 entrevistados terem suas respostas descartadas por</p><p>não promoverem credibilidade ou por qualquer motivo que pudesse enfraquecer o recorte da pesquisa.</p><p>23 “La narrativa de ficción tradicional suele girar en torno a conflictos entre una serie de personajes con los que el lector debe identificarse y otro grupo de personajes que se nos</p><p>presentan como infames os indignos del</p><p>felices por siempre jamás>>.” (ALLEN; GOMERY, 1995. p.69)</p><p>22</p><p>inegavelmente, encontramos produções baseadas em sua obra que não se encontram</p><p>nessas classificações, como os filmes produzidos pela H. P. Lovecraft Historical Society</p><p>– “The Call of Cthulhu” (2005) e “The Whisperer in Darkness” (2011) – que possuem</p><p>um caráter que procura dialogar com uma estética mais elaborada:o primeiro lembrando</p><p>uma produção mais similar ao expressionismo alemão da década de 20 (preto-e-branco e</p><p>mudo); enquanto o segundo parece flertar mais com produções da década de 1930 dos</p><p>clássicos filmes de horror da Universal. Por outro lado, ao fazer um breve mapeamento</p><p>de suas adaptações, os filmes dos diretores Stuart Gordon “Re-Animator” (1985), “From</p><p>Beyond” (1986), “Castle Freak” (1995), “Dagon” (2001) e Daniel Haller de “Die,</p><p>Monster, Die!” (1965), “The Dunwich Horror” (1970) aparecem entre as mais famosas,</p><p>se enquadrando perfeitamente nas categorias apontadas acima.</p><p>A primeira aparição de um conto de Lovecraft no cinema é digna de uma nota</p><p>especial. Em 1963, o diretor Roger Corman, em mais uma de suas parcerias com o ator</p><p>Vincent Price traz “The Haunted Palace”. O filme se enquadra perfeitamente nos moldes</p><p>das diversas outras produções feitas pela parceria Price/Corman e é considerado um bom</p><p>filme de horror para a época (com uma nota 6,8 no internet movie database24 e 71% de</p><p>aprovação no Rotten Tomatoes25, dois dos principais sites de filmes da internet). Parecia</p><p>ser mais uma das investidas da dupla em um filme de horror baseado em Poe, mas, na</p><p>verdade, a história possuía outra fonte de inspiração.</p><p>Com uma chamada que remetia diretamente ao autor: Edgar Allan Poe’s “The</p><p>Haunted Palace” a película é baseada no conto, “The Case of Charles Dexter Ward”,</p><p>escrito por Lovecraft em 1927, porém publicado apenas em 1941 após sua morte. Não é</p><p>exatamente parte do cinema trash, mas o interessante dessa obra não é tentar avaliá-la</p><p>como uma possível (ou não) exceção de transposição lovecraftiana que não faça parte</p><p>dessa gama. Aqui vale destacar que, embora seja baseado em um conto de Lovecraft, foi</p><p>vendida como mais uma adaptação de uma obra de Edgar Alan Poe e até hoje é assim</p><p>conhecida por uma decisão da produtora American International Pictures contra a vontade</p><p>do diretor e também produtor Roger Corman.</p><p>Podemos levantar a hipótese de não querer se associar ao nome de Lovecraft em</p><p>uma época em que não possuía o mesmo prestígio que atualmente e realçar que atrelar o</p><p>24 http://www.imdb.com/</p><p>25 http://www.rottentomatoes.com/</p><p>http://www.imdb.com/</p><p>http://www.imdb.com/</p><p>http://www.rottentomatoes.com/</p><p>http://www.rottentomatoes.com/</p><p>23</p><p>filme hoje em dia a seu nome poderia atribuir uma caráter trash não desejado às obras de</p><p>teor um pouco mais clássicas feitas pela dupla Vincent Price e Roger Corman (necessário</p><p>destacar que tal possibilidade serviria apenas para os dois artistas juntos, pois separados</p><p>já haviam se envolvido com alguns filmes trash). Porém essa hipótese seria meramente</p><p>especulativa, ainda que sirva para sublinhar a ligação de Lovecraft com o cinema trash.</p><p>Dessa forma, utilizamos aqui apenas como uma remota possibilidade de explicação para</p><p>um fato estranho e curioso.</p><p>Desde então, suas transposições têm sido mais associadas ao cinema trash. Mesmo</p><p>que uma complexidade mitológica e filosófica possa ser encontrada em sua obra, o autor</p><p>foi um escritor amador e publicou a maior parte de seus contos em revistas pulp, um</p><p>gênero que era, no início do século XX, próximo aos filmes trash em que vemos suas</p><p>transposições.</p><p>O gênero do horror e do fantástico dialoga com o pop e trash, principalmente no</p><p>período em que Lovecraft escrevia seus contos. O autor também possuía como principal</p><p>característica de sua escrita, um excesso de adjetivos e de tentativas de torná-la mais</p><p>rebuscada. Esse seu estilo narrativo acabou fazendo-o ser considerado um escritor</p><p>medíocre pelos críticos durante muito tempo e fez com que suas criações (monstros,</p><p>cidades perdidas etc) beirassem complexidades enormes. Assim, os seres de Lovecraft</p><p>são mais indescritíveis do que realmente assustadores. Em sua literatura, esse caráter</p><p>indescritível nos causa certo mal-estar e uma impossibilidade de conseguir imaginar tal</p><p>assombro. No audiovisual o impacto se aproxima mais de criaturas toscas que nos dão</p><p>impressão de serem perfeitas para os filmes em que as encontramos.</p><p>Lovecraft é um autor paradoxal. Suas criações transitam na atualidade entre o</p><p>trash, o pop e o erudito. Ao focarmos em suas transposições fílmicas, nos deparamos com</p><p>uma variedade enorme de películas consideradas trash. Mesmo assim, o autor se torna um</p><p>influenciador de outros artistas e pensadores. Nesse breve mapeamento de alguns filmes,</p><p>vemos a mitologia lovecraftiana cada vez mais pregnante em nossa cultura. Suas criações</p><p>cada vez mais presentes no cinema. Seu universo cada vez mais relevante para pensarmos</p><p>em nossa insignificância em um cosmos infinito. Suas realidades paralelas que nos</p><p>assustam. Suas histórias que nos atraem. Seu horror que adoramos consumir.</p><p>Considerações Finais</p><p>O trajeto de Lovecraft como um artista de maior repercussão foi um processo</p><p>lento. De um escritor amador que possuía uma escrita considerada inferior e histórias que</p><p>24</p><p>agradavam apenas seu pequeno público de amigos e correspondentes para um dos maiores</p><p>nomes do horror, a obra do autor transitou de literatura pulp para os contos reconhecidos</p><p>nos meios literários mais sofisticados durante seu um século de existência (seus primeiros</p><p>trabalhos são publicados em 1917).</p><p>No cinema, suas obras são, majoritariamente, adaptadas para filmes trash. Ao</p><p>investigarmos o gênero, percebemos que o processo de reconhecimento de Lovecraft</p><p>como um autor mais interessante e digno de ser discutido nos meios mais intelectuais é</p><p>similar ao processo pelo qual o próprio gênero trash tem passado.</p><p>Sempre visto como um cinema secundário ou ruim, os filmes trash tem ganhado</p><p>seu espaço como um objeto de análise de diversos acadêmicos e de culto de diversos fãs.</p><p>É interessante perceber que o que era tido como filmes ruins possui, atualmente, um</p><p>público de pessoas que estudam cinema e transitam com facilidade entre o cinema mais</p><p>artístico e transgressor e um cinema mais mainstream. Os consumidores de filmes trash</p><p>costumam ser pessoas com um bom conhecimento específico sobre cinema e arte.</p><p>O cinema trash estaria em um processo de reconhecimento similar ao que ocorreu</p><p>com Lovecraft? Seria essa mais uma estranheza no mundo do autor? Ou apenas um</p><p>processo natural que ocorre com produtos mais de nicho que tendem a se expandir quando</p><p>o mercado lhes concede mais espaço? Seriam os gêneros de terror e ficção científica um</p><p>produto especial na literatura e cinema que transitam com essa facilidade entre os dois</p><p>lados?</p><p>Esse trabalho não procura responder essas questões e sim colocá-las. O intuíto</p><p>aqui é o de mostrar esse curioso paralelo entre um subgênero e um autor que é uma das</p><p>maiores fontes de inspiração desse subgênero. Ao pensarmos em filmes de terror trash, o</p><p>nome de Lovecraft nos vem rapidamente a cabeça e ao pensarmos em Lovecraft no</p><p>cinema, os filmes de terror trash são os primeiros a surgir. Antes, tais filmes eram</p><p>considerados ruins e antes disso, o próprio escritor também o era. Agora, com o passar</p><p>do tempo, Lovecraft se torna grande autor e seus filmes parecem estar em um processo</p><p>de reconhecimento um pouco similar. Lovecraft e o trash estão se consolidando com mais</p><p>propriedade no campo artístico e, talvez por coincidência (ou talvez não), sua relação é</p><p>intrínseca.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ALLEN, Robert C.; GOMERY, Douglas. Teoría y prática de la história del cine. Barcelona:</p><p>Paidós, 1995.</p><p>25</p><p>ANDERSON, Chris. A Cauda Longa. Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2006.</p><p>BERNARDET, Jean-Claude.</p><p>O que é Cinema. Editora Brasiliense, 1985.</p><p>BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. The MIT</p><p>Press, 2000.</p><p>CASETTI, Francesco. Les Théories du Cinéma depuis 1945. Paris: Nathan, 1999.</p><p>COLAVITO, Jason. The Cult of Alien Gods: H.P. Lovecraft and Extraterrestrial Pop Culture.</p><p>New York: Prometheus Books, 2005.</p><p>DÄNIKEN, Erik Von. Eram Deuses Astronautas?. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2010.</p><p>JOSHI, S. T.. A Dreamer and a Visionary: H. P. Lovecraft in his time. Liverpool University Press,</p><p>2001.</p><p>______. A Vida de H. P. Lovecraft. São Paulo: Editora Hedra, 2014.</p><p>KRACAUER, Siegfried. O Ornamento da massa: ensaios. Cosac Naify, 2009.</p><p>LOVECRAFT, H. P.. The Complete Works of H. P. Lovecraft. CthulhuChick.com, 2011. (Obtido</p><p>em domínio público em: http://arkhamarchivist.com/free-complete-lovecraft-ebook-nook-</p><p>kindle/)</p><p>MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2011.</p><p>MCFARLANE, Brian. Novel to Film: An Introduction to the Theory of Adaptation. Oxford:</p><p>Clarendon Press, 1996.</p><p>McLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Cultrix,</p><p>2007.</p><p>PEREIRA, Vinícius Andrade. Estendendo McLuhan: da Aldeia à Teia Global – Comunicação,</p><p>Memória e Tecnologia. Porto Alegre: Sulina, 2011.</p><p>PETERSON, Richard A.; KERN, Roger M.. Changing Highbrow Taste: From Snob to Omnivore.</p><p>American Sociological Review, Vol. 61, No. 5 (Oct., 1996), pp. 900-907.</p><p>SARKHOSH, Keyvan; MENNINGHAUS, Winfried. Enjoying trash films: Underlying features,</p><p>viewing stances,and experiential response dimensions. Poetics, Vol 57, August 2016, Pages 40–</p><p>54 (1-15).</p><p>SCONCE, Jeffrey. ‘Trashing’ the academy: taste, excess, and an emerging politics of cinematic</p><p>style. Screen, vol. 36, issue 4, p.371-393, 1995.</p><p>26</p><p>Narrativas em série:</p><p>estruturação em movimento</p><p>27</p><p>Produção e recepção de séries contemporâneas: aspectos do enredo</p><p>Production and Reception of Contemporary TV Series: Aspects of the Plot</p><p>Cristine Fickelscherer de Mattos26</p><p>Resumo: O trabalho enfoca as características comunicativas da narrativa seriada</p><p>televisiva contemporânea – em apogeu de investimentos e audiência -, em especial, os</p><p>aspectos do seu enredo. Examina a sua dinâmica de produção e recepção – através da</p><p>internet e via streaming – para compará-la com aquela praticada em outros tempos e</p><p>outros meios: o jornal decimonônico, o cinema finissecular, o rádio e a televisão do século</p><p>XX. Observa como as inovações tecnológicas, cristalizadas como meios, criam gêneros</p><p>através da triangulação que envolve a produção, a recepção e a forma de transmissão dos</p><p>conteúdos. Estuda ainda como contextos midiáticos específicos associam-se a disposições</p><p>produtivas e receptivas que trabalham as heranças da narrativa seriada para</p><p>simultaneamente alterá-las e reafirmá-las. Por fim, pondera sobre a situação da narrativa</p><p>seriada atual através de alguns exemplos pontuais.</p><p>Palavras-chave: enredo; meios; narrativa seriada.</p><p>Abstract: The work focuses on the communicative characteristics of contemporary</p><p>television serial narrative – with high investment and audience -, especially the aspects</p><p>of its plot. It examines its dynamics of production and reception – in internet</p><p>communication and streaming services - to compare it with other times and other media</p><p>modes: the nineteenth-century newspaper, the early twentieth cinema, radio and</p><p>television of the twentieth century. It observes how technological innovations, crystallized</p><p>as media, create genres through the triangulation that involves production, reception and</p><p>the way of content transmission. It also studies how specific media contexts associate</p><p>themselves with productive and receptive devices working the heritages of the serial</p><p>narrative to simultaneously change and reaffirm them. Finally, it analyzes the situation</p><p>of the current serial narrative through some specific examples.</p><p>Key words: plot; media; serial narrative</p><p>Introdução</p><p>O período finissecular e o começo do século XXI trouxeram inúmeras mudanças</p><p>para a realidade em diversos sentidos. Desde então, a quantidade de inovações e o seu</p><p>ritmo de aparição só aumentou. Em meio a esse vertiginoso fluxo de novidades,</p><p>destacaram-se os novos elementos de comunicação, responsáveis por profundas</p><p>reconfigurações sociais. Desde o advento do computador pessoal (PC), os sistemas</p><p>cibernéticos e a linguagem digital introduziram, pouco a pouco, formas de interação tão</p><p>revolucionárias, segundo muitos, como aquelas implicadas pela invenção da prensa</p><p>26 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, é professora do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro dos grupos de</p><p>pesquisa do CNPq: Intermídia: estudos sobre intermidialidade (UFMG) e Comunicação, Tecnologia e Cognição (UPM). E-mail: cristine.mattos@mackenzie.br.</p><p>28</p><p>gráfica no século XVI (CHARTIER, 1998). Na esteira dessas mutações, chama-nos a</p><p>atenção a escalada de novas formas de entretenimento e, dentre elas, em especial, a</p><p>relevância adquirida pelas séries televisivas, motivo de reflexão do presente trabalho.</p><p>Por estarem em evidente destaque nas práticas ficcionais da atualidade, as séries</p><p>televisivas são tema constante nos meios de comunicação. No âmbito acadêmico,</p><p>contudo, só recentemente vêm obtendo a devida atenção. Os trabalhos produzidos</p><p>costumam focar em questões comunicativas, mercadológicas e cinematográficas e, em</p><p>menor quantidade, em aspectos narrativos. Sobre esses últimos nos debruçaremos aqui</p><p>com o intuito de ponderar a respeito de particularidades da narrativa seriada em geral,</p><p>associada a diferentes contextos, e dentro do âmbito específico das séries televisivas</p><p>atuais. A análise abordará, assim, os modos de narrar seriadamente em conjunção com os</p><p>meios utilizados para a sua disponibilização ao longo dos tempos. Terá em conta também</p><p>elementos de produção e recepção, na medida em que estejam ligados a possibilidades de</p><p>construção da narrativa seriada e de sua consequente espectorialidade. Por fim, atentará</p><p>para as características da narrativa seriada vigente no meio televisivo, ponderando sobre</p><p>o diálogo das suas inovações com a tradição estabelecida por meios e práticas anteriores</p><p>e especulando sobre os seus rumos futuros.</p><p>Peak TV</p><p>A popularização da internet no final da primeira década do século XXI provocou</p><p>funestos prognósticos para o futuro da televisão no mundo. Contudo, ao examinarmos a</p><p>história da mídia, verificamos que os temores comumente suscitados pelo aparecimento</p><p>de novos meios de comunicação costumam ser infundados. Meios antigos podem sofrer</p><p>alterações em sua estrutura institucional, isto é, em sua dinâmica de funcionamento e em</p><p>seu posicionamento social, mas não são eliminados pelas recém introduzidas tecnologias</p><p>(BURKE, 2006, 266). E com a TV não foi diferente.</p><p>Ao contrário do que muitos poderiam imaginar, a televisão vive hoje uma nova</p><p>era de ouro, com forte alta de produção e enorme audiência. Segundo a FX Networks</p><p>Research, entre 2002 e 2016, somando-se as produções televisivas distribuídas nos</p><p>Estados Unidos pelas TVs aberta e paga, e por serviços via internet, constata-se um</p><p>aumento de mais de 200% junto aos roteiros filmados. Em agosto de 2015 o CEO da FX,</p><p>John Landgraf, ao discursar na Television Critics Association, referiu-se ao recorde de</p><p>produções de séries televisivas atingido naquele ano nos Estados Unidos usando a</p><p>expressão Peak TV. Segundo ele, a Peak TV representa um avanço de tal ordem na</p><p>29</p><p>produção televisiva, que o meio pode começar a viver um declínio ocasionado por seu</p><p>próprio apogeu. A razão para essa alarmante conjectura: a televisão, em seu auge de</p><p>investimentos e consumo, disponibiliza mais entretenimento do que o público pode</p><p>absorver. A revista Rolling Stone, ironizando a situação, afirmou que morreremos antes</p><p>de conseguir ver tudo o que</p><p>a Peak TV disponibiliza hoje. E a previsão para 2018 é ainda</p><p>de mais aumento, com provável declínio apenas a partir de 2019 (SHEFFIELD, 2015).</p><p>Embora a situação mencionada se refira à realidade dos Estados Unidos, como o</p><p>consumo das produções desse país se faz em um número expressivo e crescente de países,</p><p>as ponderações acima têm, de certa forma, uma aplicação internacional. A narrativa</p><p>seriada televisiva vem, além disso, ganhando produções próprias mundo afora, às vezes</p><p>de roteiros originais – como o são a canadense Vikings e a britânica Sherlock -, às vezes</p><p>de adaptações de séries estrangeiras, como é o caso da britânica House of Cards, com</p><p>versão americana homônima; da americana House, com versão japonesa (Equipe Médica</p><p>Dragão); da também americana The Big Bang Theory, com versão bielorrussa (Os</p><p>teóricos); da série israelense Prisioneiro de Guerra, com versões americana (Homeland)</p><p>e russa (A pátria), para ver alguns exemplos. Um novo modelo de produção adotado pela</p><p>rede online Netflix permite ainda maior propalação das séries: investimentos em</p><p>produções locais ganham distribuição global. Tal o caso da brasileira 3%, da Netflix, com</p><p>sucesso de audiência nos Estados Unidos e presente em mais de 180 países.</p><p>Seja pelo alcance que os novos meios concederam às series televisivas, seja pela</p><p>proliferação da sua produção nos quatro cantos do mundo, não resta dúvida de que</p><p>estamos vivendo a Era das Séries, como a mídia vem apontando. Resta-nos saber quais</p><p>os ingredientes dessa receita de sucesso. O potencial de sedução e retenção da narrativa</p><p>seriada é um dos seus traços definidores, talvez o mais destacado de todos, capaz, desde</p><p>tempos antigos, de salvar vidas e despertar o amor, como nos conta miticamente</p><p>Sherazade ou de alcançar a redenção como vemos fazer Hércules com seus 12 trabalhos.</p><p>Mas como se articulam as entregas sedutoras do enredo na narrativa seriada televisiva de</p><p>hoje? Quais as novidades aportadas pelas novas formas de transmissão da TV para esse</p><p>modo de narrar? Para responder as essas perguntas faz-se necessário um breve percurso</p><p>pela história desse tipo de narrativa junto aos meios que a veicularam.</p><p>Narrativa seriada e meios</p><p>Ao longo dos tempos a invenção de meios, segundo McLuhan, estendeu as</p><p>capacidades humanas e provocou vieses comunicativos de consequências diversas para a</p><p>30</p><p>sociedade, em termos de pensamento e práticas (MCLUHAN, 1974). As ideias nem</p><p>sempre compreendidas do teórico canadense em seu tempo, tornaram-se proféticas no</p><p>mundo digital contemporâneo tanto pela verificável influência midiática nos modos de</p><p>constituição das mensagens como em termos de difusão comunicativa pela chamada</p><p>aldeia global. As alterações geradas pelos novos elementos de mediação ocasionaram</p><p>inevitáveis mudanças nas práticas discursivas estabelecidas. Por isso, não há como</p><p>analisar a narrativa por entrega sem abordar seus padrões de funcionamento nos contextos</p><p>em que se dão, isto é, sem refletir sobre seu enquadramento midiático e de gênero</p><p>discursivo.</p><p>Dentro de uma concepção sociointeracionista das linguagens em geral, os gêneros</p><p>“são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer</p><p>situação comunicativa” (MARCUSCHI, 2002, 19). Levantar os traços caracterizadores</p><p>dos gêneros poderia conduzir-nos a uma concepção estruturalista, sobre sistemas</p><p>universais que se mantêm a despeito dos contextos diferenciados em que se dão. Tal</p><p>abordagem seria contrária ao objetivo de observação dos efeitos diferenciadores</p><p>introduzidos pelas inovações midiáticas, a partir dos quais desejamos apreciar os</p><p>elementos específicos das séries televisivas atuais.</p><p>É possível, contudo, conceber o poder preditivo do gênero dentro de uma</p><p>dinâmica maleável que se adapta e se altera de acordo com necessidades sócio-culturais</p><p>e com o uso de invenções tecnológicas (MARCUSCHI, 2002, 19-20). Segundo Bakhtin,</p><p>os gêneros, divididos em primários (simples e próximos da vida social e de suas</p><p>transformações) e secundários (complexos e carregados de elaboração estético-cultural e</p><p>ideológica), apresentam intrincado processo de renovação: “os gêneros secundários (nas</p><p>artes e nas ciências) incorporam diversamente os gêneros primários do discurso na</p><p>construção do enunciado, assim como a relação existente entre estes” (BAKHTIN, 1997).</p><p>Desta forma, as inovações tecnológicas, ao impactarem de forma mais direta a vida social,</p><p>criam gêneros primários que, ao serem absorvidos e transmutados pelos gêneros</p><p>secundários, outorgam-lhes reformulação e vida nova.</p><p>Assim podemos entender a paulatina renovação experimentada pela narrativa</p><p>seriada ao longo dos tempos. Uma das suas etapas mais pujantes foi o folhetim</p><p>decimonônico, iniciado com o fatiamento de uma narrativa concebida em continuidade –</p><p>Lazarillo de Tormes, obra anônima - para a publicação por entregas no jornal impresso</p><p>em 1836 na França. Em Folhetim: uma história, Marlyse Meyer, embora concentre sua</p><p>31</p><p>análise nos modos específicos do romance-folhetim (gênero primário) – surgido com o</p><p>desenvolvimento do meio jornal -, localiza suas raízes na tradição oral de tempos remotos:</p><p>a presença no repertório, (...) das Mil e uma noites; as figuras femininas</p><p>de contadeiras de histórias lembram e reconstituem a origem vital,</p><p>existencial e econômica dessa técnica de interrupção da narrativa aberta</p><p>ao fôlego em suspenso de uma curiosidade provocada, reencontrada</p><p>pelos inventores do romance-folhetim moderno. (MEYER, 2005, 343).</p><p>Percorrendo brevemente algumas etapas da história da narrativa seriada,</p><p>reavivada e remodelada pela invenção de novos meios - como o jornal, o cinema, o rádio</p><p>e a televisão - podemos descobrir semelhanças que nos permitem ver a sobrevivência de</p><p>um gênero antigo, mas, igualmente, ao lado delas, contrastes que podem mesmo pôr em</p><p>questão a sua filiação comum. No jornal, por exemplo, o gancho - que na antiguidade</p><p>preservava a vida de Sherazade -, não quer apenas despertar a curiosidade e o interesse,</p><p>mas também agradar a todos os públicos e seduzir o máximo número de pessoas para</p><p>alavancar as vendas do jornal. Para tal, em nível temático, são adotados os topoi do</p><p>melodrama e o desenvolvimento das tramas assume a dramaticidade dos coups de</p><p>théâtres. Predominam os personagens tipo e os diálogos vivos para maior proximidade</p><p>com o cotidiano e consequente identificação e fidelização dos leitores (MEYER, 2005,</p><p>60-61). O desejo de retenção do público e a produção in progress, durante as publicações,</p><p>condicionam esporadicamente situações como as da publicação de O conde de Monte</p><p>Cristo, de Alexandre Dumas, interrompida diversas vezes por questões autorais e</p><p>editoriais, por circunstância e por estratégia, que proporcionaram um enredo de três partes</p><p>e retiveram a atenção do público por um ano e meio (MEYER, 2005, 61-62).</p><p>As origens da narrativa seriada são tema também das reflexões de Arlindo</p><p>Machado a respeito de incorporação secundária do gênero, a partir de primárias alterações</p><p>trazidas, posteriormente, pelo meio televisão:</p><p>é preciso considerar que não foi a televisão que criou a forma seriada</p><p>de narrativa. Ela já existia antes nas formas epistolares de literatura</p><p>(cartas, sermões, etc.) nas narrativas míticas intermináveis (As mil e</p><p>uma noites), depois teve um imenso desenvolvimento com a técnica do</p><p>folhetim, utilizada na literatura publicada em jornais no século passado,</p><p>continuou com a tradição do radiodrama ou da radionovela e conheceu</p><p>a sua primeira versão audiovisual com os seriados do cinema</p><p>(MACHADO, 2000, 86).</p><p>A despeito do reconhecimento da filiação a antigas raízes, os imperativos</p><p>comerciais, associados às linguagens próprias dos novos meios trazem para a narrativa</p><p>seriada folhetinesca e, mais tarde, para a cinematográfica, a radiofônica e a televisiva,</p><p>32</p><p>alterações que a afastam dos propósitos míticos de manutenção das tradições das</p><p>narrativas de expressão</p><p>oral. A tecnologia do cinema, por exemplo, trouxe a novidade dos</p><p>nickelodeons (pequenas salas improvisadas que exibiam filmes curtos de todo tipo):</p><p>Filmes de duração mais longa (...) [eram] exibidos em partes nos</p><p>nickelodeons, que concentravam o público mais pobre da periferia.</p><p>Séries cinematográfica como Fantômas (1913), de Louis Feuillade, e</p><p>The Perils of Pauline (1914), de Louis Gasnier, baseados no modelo</p><p>dos folhetins jornalísticos, que deram a forma básica do gênero</p><p>(MACHADO, 2000, 87).</p><p>Como o público ainda não está habituado ao meio, no começo há intenso</p><p>paralelismo com publicações impressas.27</p><p>Seguindo a dinâmica de produção do modelo jornalístico, esse cinema seriado se</p><p>faz, como ele, com vistas à melhor aceitação e à fidelização de recepção. Seus temas e o</p><p>desenvolvimento de seu enredo seguem ditames comerciais de metas de venda tanto nos</p><p>jornais quanto nos nickelodeons. Sua recepção experimenta também os efeitos da</p><p>elaboração concomitante à exibição. A audiência tem grande poder de determinação sobre</p><p>a continuidade produtiva, nos modos rocambolescos da segunda fase do romance-</p><p>folhetim (na classificação de MEYER, 2005), como podemos ver com Machado:</p><p>O clássico Les Vampires (1915-16), de Feuillade, por exemplo, teve</p><p>muitas de suas partes improvisados nos estúdios, com roteiro inventado</p><p>na hora e sem que ninguém soubesse como ia terminar a história. O plot</p><p>narrativo é completamente anárquico: muitas situações não têm</p><p>continuidade; há uma série de acontecimentos não explicados; alguns</p><p>personagens morrem subitamente apenas porque os atores que os</p><p>encarnavam haviam sido despedidos; alguns mortos ressuscitam</p><p>misteriosamente poucos capítulos depois (MACHADO, 2000, 87).</p><p>Os cortes entre uma exibição e outra, diferentemente da narrativa seriada</p><p>folhetinesca, ganham no cinema (gênero primário advindo da novidade tecnológica do</p><p>cinematógrafo) contornos de exagero, para maior fixação, pois nesse meio não há como</p><p>armazenar e rever as mensagens anteriores. Adota-se, então, o chamado cliffhanger – cuja</p><p>tradução seria algo como: “pendurado no penhasco” -, versão intensificada do gancho</p><p>tradicional, pois interrompe a narrativa no momento em que o personagem se encontra</p><p>em sérios apuros.28 A personagem da mencionada série The Perils of Pauline é bom</p><p>27 O primeiro seriado americano, por exemplo, intitulado What happened to Mary (1912-13) teve exibição simultânea com a sua publicação na revista The Ladies’ World</p><p>(NATIONAL FILM, 1914).</p><p>28 A ideia do gancho pode ocorrer de maneira interepisódica ou intraepisódica. Em inglês, adotam-se dois termos: hook (“gancho”), em geral, indicando o enlace entre cenas;</p><p>cliffhanger designando a estratégia de corte abrupto para conectar as entregas. Há uma clara diferença entre a intensidade dos dois recursos, bem marcada pelos termos em inglês.</p><p>33</p><p>exemplo da versão cinematográfica do folhetim de vítima feminina, em que jovens moças</p><p>encontram-se frequentemente em situações limite de perigo.29</p><p>A chegada do rádio significou um novo terreno para a expressão da narrativa</p><p>seriada. Em 1930, foi ao ar a primeira radionovela, Painted Dreams, em que uma viúva</p><p>e sua filha vivem diversas situações cotidianas. A impossibilidade, como no cinema, de</p><p>arquivamento e retomada de suas mensagens, acrescida da sua linguagem exclusivamente</p><p>auditiva, agregou ao corte estratégico a necessidade de rememoração do corte anterior</p><p>(antes das entregas) e de retomadas de conteúdo através de lembranças ou menções</p><p>recapitulativas por parte dos personagens. Os ouvintes que esquecessem informações</p><p>anteriores ou perdessem alguma entrega podiam, assim, continuar acompanhando a série</p><p>sem dificuldades. Além disso, temas de agrado popular são adotados pois facilitam a</p><p>compreensão geral, o que acaba por impor certo padrão temático e certa regularidade na</p><p>dinâmica de desenvolvimento do enredo. A narrativa seriada radiofônica restringe a</p><p>variedade das abordagens folhetinescas ou cinematográficas e ganha contornos</p><p>industriais.</p><p>A princípio exclusivamente patrocinadas por fabricantes de produtos de limpeza</p><p>(em geral sabão), as radionovelas foram apelidadas de soap operas. As transmissões de</p><p>pouco mais de 15 minutos eram interrompidas para intervalos comerciais das marcas.</p><p>Essas rupturas durante as entregas trouxeram a necessidade de ganchos e reiterações</p><p>internas ao episódio, na proximidade dos intervalos e não mais apenas entre os episódios.</p><p>O resultado redundante dessa narrativa (temática e estruturalmente) restringiu a</p><p>originalidade dos roteiros e, estando o valor artístico vinculado a essa qualidade desde o</p><p>romantismo, a novela radiofônica, mais ainda do que as narrativas seriadas anteriores, na</p><p>visão de muitos, será sinônimo de prática não artística.30</p><p>Depois de surgir nos Estados Unidos na segunda década do século XX, as</p><p>radionovelas ganham grande impulso de criação e consumo em Cuba. As produções</p><p>Embora possamos encontrar a distinção entre os termos, seu uso não possui rigor definitório e chega-se mesmo a confundir os termos com os gêneros que os empregam (BORT</p><p>GUAL, Iván, 2008, 504).</p><p>29 A narrativa seriada cinematográfica herda elementos de cada uma das três fases diferenciadas por Marlyse Meyer para os folhetins decimonônicos (MEYER, 2005): o</p><p>melodrama, da primeira fase, a dinâmica rocambolesca, de segunda, e o romance de vítima feminina, da terceira.</p><p>30 A discussão em torno do valor artístico ou não das narrativas seriadas, já presente na prática do folhetim e do cinema, acentua-se com a introdução do meio rádio pelas razões</p><p>mencionadas e pela ampliação de seu alcance de público. Ao refletir sobre essa discussão, Umberto Eco distingue dois processos dialeticamente dispostos, envolvidos na produção</p><p>e na recepção de mensagens seriadas em geral: a invenção e a inovação a partir de esquemas pré-dados (caso da poesia que segue modelos métricos e organizacionais, como o do</p><p>soneto), por um lado, e por outro, a repetição a partir da infinita variação de elementos dentro de esquemas composicionais fixos (como nas construções seriadas dos meios</p><p>massivos). Aquele, propondo a mensagem nova dentro de uma mesma dinâmica construtiva; este, propondo a mesma esquemática mensagem dentro de uma roupagem sempre</p><p>nova (ECO, 1998).</p><p>34</p><p>cubanas enfatizam o melodrama amoroso e começam a praticar o formato episódico: em</p><p>lugar de uma grande narrativa partida estrategicamente, as entregas organizam-se como</p><p>capítulos unitários diários - com começo, meio e fim -, que narram situações diferentes,</p><p>embora centradas sempre em personagens centrais que permanecem na trama ao longo</p><p>de todo o seriado e aos quais se juntam personagens secundários esporádicos. As</p><p>radionovelas cubanas vão influenciar toda a produção radiofônica latino-americana</p><p>através de traduções e adaptações.31</p><p>O surgimento da televisão conheceu condições comunicativas pouco favoráveis,</p><p>diversas das que conhecemos hoje: o alto custo dos aparelhos determinava uma recepção</p><p>elitizada. A TV só conseguiu abrigar mensagens populares, quando a fabricação dos</p><p>televisores permitiu uma redução de custo. Só então, o gênero primário foi incorporado</p><p>pelo gênero secundário popular da narrativa seriada. Os estúdios de Hollywood e suas</p><p>estrelas começaram, então, a trabalhar na produção de series televisivas.</p><p>Assim como o meio rádio, a televisão conta com um acolhimento menos</p><p>concentrado que o da sala de cinema. As mensagens são consumidas em ambiente</p><p>privado, geralmente em presença de mais de um indivíduo, o que pode interferir na</p><p>recepção. Como o rádio tem transmissão exclusivamente oral, mesmo em presença de um</p><p>grupo de receptores, o silêncio faz-se condição para a comunicação.32 Já no caso da TV,</p><p>devido ao apoio das imagens, o silêncio não é condição imperativa para a compreensão,</p><p>de modo que costuma haver</p><p>interferências na recepção. Assim, embora as primeiras séries</p><p>televisivas tenham sido adaptações das radionovelas, aos poucos, o meio foi criando</p><p>traços próprios: os ganchos internos, frente à falta de silêncio, investem mais em imagens</p><p>que em palavras e aumentam em número, já que tanto a continuidade narrativa como os</p><p>intervalos são mais longos que no rádio. A maior desconcentração do espectador</p><p>transforma alguns ganchos (ou hooks) em cliffhangers. Adota-se, para facilitar a</p><p>compreensão de complexidades crescentes da trama, um resumo dos acontecimentos</p><p>anteriores no começo das exibições (previously on).</p><p>O êxito da telenovela e sua produção ascendente impuseram uma necessidade de</p><p>diversificação. Machado aponta 3 tipos básicos de narrativa seriada televisiva: aquela que</p><p>31 O termo “radionovela” tem origem na tradução equivocada das produções cubanas: “novela”, em espanhol, significa “romance”, em português. O termo fazia menção ao</p><p>romance-folhetim de extração decimonônica. A proximidade dos idiomas manteve o termo que, em português, contudo, indica “uma história mais curta que um romance”. A</p><p>longa duração das radionovelas e, mais tarde, das telenovelas, deixa clara a imprecisão do termo que, no entanto, fixou-se (CAMPEDELLI apud DINIZ, 2009, 50).</p><p>32 Há que se considerar que o consumo do rádio em tempos de radionovela era diferente do de hoje. As pessoas à época tinham por hábito parar as suas atividades para acompanhar</p><p>os episódios (GOMES, 2016, 144).</p><p>35</p><p>tem enredo desenvolvido através do conjunto de capítulos (telenovela, minissérie); aquela</p><p>que apresenta os mesmos personagens em situações diferentes e de enredo fechado a cada</p><p>episódio seriado (com ou sem fio condutor geral ligado aos protagonistas), e por último,</p><p>aquela que se organiza como uma constelação de enredos independentes em episódios</p><p>unitários que possuem em comum apenas um estilo, um gênero ou uma temática</p><p>(MACHADO, 2000, 84). Como vimos, o segundo tipo já havia sido praticado pelo rádio</p><p>que aporta à TV, assim, essa herança. Trata-se talvez do formato de narrativa seriada mais</p><p>perene, pois com ele também se identificam as narrativas míticas de Sherazade e Hércules</p><p>e a saga folhetinesca de Rocambole.</p><p>Os altos custos da produção televisiva exigiram maior planejamento de</p><p>programação e converteram a TV no mais industrializado dos meios. A narrativa seriada</p><p>televisiva mostrou-se propícia à produção em série dos modelos produtivos em massa e</p><p>passou a ser o carro-chefe da TV. Tão forte se fez a sua presença no meio que originou</p><p>uma verdadeira “estética da repetição”, segundo Omar Calabrese (Apud MACHADO,</p><p>2000, 90), baseada na dinâmica combinatória de elementos variáveis e invariantes.</p><p>A importância dos anunciantes frente à programação cresceu em relação ao rádio:</p><p>os preços do espaço publicitário passaram a depender dos níveis de audiência; poderosos</p><p>anunciantes começam a interferir no plano ficcional interno das séries (merchandising).</p><p>As telenovelas arrebatavam multidões e as emissoras decidiam elementos de seus enredos</p><p>com base em pesquisas junto público e questões mercadológicas. Em função de uma</p><p>espectorialidade muito abrangente, às narrativas televisivas de primeiro tipo, conferia-se</p><p>maior padronização (mais do que no rádio, no cinema e no folhetim) através de temas e</p><p>estruturas de aceitação geral (melodramas com amor e sexo; comédias). Em virtude da</p><p>duração mais curta e do público inferior, as narrativas seriadas episódicas (segundo tipo)</p><p>dispunham de maior liberdade criativa, pois os riscos financeiros eram menores.</p><p>Serialidade contemporânea</p><p>As últimas décadas do século XX abriram caminho para uma nova realidade dos</p><p>meios de comunicação com a chamada Cultura das mídias (SANTAELLA, 2003),</p><p>definida pela viabilização tecnológica de um consumo não massivo. A TV paga e o</p><p>videocassete permitiram um consumo individualizado de conteúdos quando e onde o</p><p>espectador decidisse. A diversificação do consumo levou a uma tendência de</p><p>segmentação da produção de séries. Com o intuito de influir sobre a escolha do receptor,</p><p>36</p><p>eram oferecidos subgêneros como Sitcoms, Police procedural, Medical drama etc, na sua</p><p>maioria em formato de episódios seriados.</p><p>A Cultura das mídias, de curta duração, foi a antessala da Cultura cibernética, na</p><p>qual a liberdade de escolha do espectador intensificou-se (SANTAELLA, 2003). A</p><p>internet trouxe os serviços de streaming e a TV digital, que permite a retomada dos</p><p>conteúdos e dispensa, assim, um ambiente apropriado para a exibição. Além dos</p><p>movimentos do controle remoto, o espectador, sendo também internauta, vivenciou</p><p>grande empoderamento por obra do monitoramento ininterrupto dos seus acessos e em</p><p>virtude das suas manifestações em redes sociais. Agora, muito mais que nos meios</p><p>anteriores, é o público que determina o devir dos enredos e a continuidade das séries. Os</p><p>lucros associados às séries já não se subordinam à publicidade, mas às assinaturas e a</p><p>eventos e produtos derivados dos enredos, pois o universo ficcional se espraia por outros</p><p>meios e outras narrativas na realidade dos espectadores.33</p><p>O empoderamento do receptor exacerbou a demanda por diversificação das</p><p>ofertas de narrativa seriada. Para além da segmentação e livres das exigências dos</p><p>patrocinadores, as séries televisivas aventuraram-se em inovações temáticas e estruturais</p><p>que pudessem atrair a escolha e o acesso do internauta: universos ficcionais inauditos -</p><p>como em Stranger Things, que mescla os gêneros terror e ficção científica num espaço</p><p>temporal incomum (passado em lugar de futuro); séries históricas de culturas não centrais</p><p>– como Vikings; constelações narrativas de episódio unitário cujo princípio de coesão</p><p>exige interpretação – como nas distopias tecnológicas de Black Mirror; ambiguidades de</p><p>enredo derivadas de foco narrativo fragmentado – como em The Affair. O excesso de</p><p>oferta alimentou a criatividade e a Peak TV passou a abrigar, ao lado de séries</p><p>reafirmadoras dos gêneros estabelecidos, uma serialidade complexa, ainda sem</p><p>classificação, que poderíamos chamar de estética ou artística.</p><p>As transformações midiáticas afetaram a narrativa seriada e também sua</p><p>espectorialidade. O público, febrilmente aficionado às séries, vem desafiando o próprio</p><p>gênero, ao consumir os capítulos ou episódios sem intervalos, em verdadeiras maratonas</p><p>de exibição. Esse comportamento do espectador de séries tornou-se um fenômeno</p><p>mundial referido como binge watching e já divide opiniões, pois, por um lado, vemos</p><p>33 A produção de elementos culturais derivados de um produto cultural, como as séries hoje, vêm sendo designados como spin-offs. Quando há derivações produzidas em vários</p><p>meios, de modo articulado, temos um processo crossmedia. A narrativa cujo enredo se fragmenta por outras narrativas e meios, formando um todo dentro de um mesmo universo</p><p>ficcional, compõe uma narrativa transmídia (COSTA, 2012, 25-26).</p><p>37</p><p>canais de TV paga incluindo maratonas de séries em sua programação e, por outro, séries</p><p>em curso restringindo o acesso digital aos episódios a apenas uma vez por semana.</p><p>Praticar o binge watching favorece a narrativa seriada de primeiro tipo, dividida</p><p>por capítulos, sem necessidade de muitas reiterações internas. Há de fato, atualmente,</p><p>uma proliferação de enredos longos e complexos, permeados, no entanto, dos recursos de</p><p>retenção da serialidade: ganchos e cliffhangers, a cada entrega, conquistam intensamente</p><p>o espectador e aderem ao seu mundo, multiplicados por spin-offs, estratégias crossmedia</p><p>e narrativas transmídia no cinema, em livros, games, blogs e redes sociais. Estamos</p><p>testemunhando grandes transformações da narrativa seriada, com novos elementos</p><p>primários em gestação a caminho de serem absorvidos, eliminados ou reformulados.</p><p>Considerações finais</p><p>A narrativa</p><p>seriada sempre foi presidida por uma forte interação com o seu</p><p>público, desde os tempos mais remotos. Seu processo de recepção tem um forte peso</p><p>estrutural vinculado à combinação do gênero com o meio que o disponibiliza. É fascinante</p><p>perceber que embora esse processo varie de um meio para o outro, o gênero (secundário),</p><p>enquanto elemento estético-cultural e ideológico, tem incorporado os aportes dos gêneros</p><p>primários (impactados pelas transformações da vida social) e tem perdurado em seu</p><p>atributo central de narrativa aberta ao devir para um público ansioso pelos próximos</p><p>passos do enredo, arrebatado por perigos e emoções abissais e enredado pelos ganchos de</p><p>sua trama.</p><p>A incompletude do enredo, falto de planejamento global por ter as entregas</p><p>elaboradas durante a sua divulgação, ocorria no passado e ocorre hoje na maior parte das</p><p>narrativas seriadas. Tal abertura permite um envolvimento ainda maior com o público que</p><p>sempre teve o poder de encurtar ou prolongar as séries, dependendo da receptividade</p><p>obtida. Na serialidade da Peak TV, seja ela estética ou não, não é diferente.</p><p>Mas se identificamos características que se mantêm ao longo dos tempos na</p><p>narrativa seriada, percebemos também contrastes que chamam a atenção. As entregas</p><p>ficcionais que haviam sido colocadas a serviço da manipulação do público na era dos</p><p>mass media já não direcionam multidões. A audiência costumizada das séries digitais</p><p>permite ao espectador circular por grupos pontuais organizados ao sabor das preferências</p><p>ficcionais e dos períodos de binge waching.</p><p>A estética da repetição, também vinculada à Cultura de massa (ECO, 1989),</p><p>conquanto se mantenha nas séries episódicas, perde força frente à proliferação de</p><p>38</p><p>diferentes propostas de narração seriada hoje em dia. Se o jogo entre variantes e elementos</p><p>invariáveis na construção de enredos pendia para a reiteração estrutural - desde a ascensão</p><p>da comunicação de massa com a invenção da prensa gráfica -, a chegada da comunicação</p><p>digital talvez tenha invertido o sentido do jogo e a cultura da comunicação on demand</p><p>esteja acionando recursos criativos.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.</p><p>BORT GUAL, Iván, Nuevos paradigmas en los telones de relato audiovisual contemporâneo.</p><p>Tesis doctoral, Universitat Jaume I, Castellón, Espanha, 2008.</p><p>BURKE, Peter. História social da mídia: de Gutemberg à internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,</p><p>2006.</p><p>CHARTIER. Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa Oficial do</p><p>Estado de São Paulo/Editora UNESP, 1998.</p><p>COSTA, Sarah Moralejo da. Supernatural na web: produção e reprodução audiovisual em suporte</p><p>convergente. Dissertação de mestrado, Bauru, UNESP, 2012.</p><p>DINIZ, José Alencar. A recriação dos gêneros eletrônicos analógico-digitais: radionovela,</p><p>telenovela e webnovela. Tese de doutorado em Comunicação social. Universidade Católica do</p><p>Rio Grande do Sul, 2009.</p><p>ECO, Umberto. A inovação no seriado. In: Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro:</p><p>Nova Fronteira, 1989.</p><p>GOMES, Adriano L & RODRÍGUEZ, E. D. Rádio e memória. Natal: Editora da UFRN, 2016.</p><p>MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.</p><p>MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1975.</p><p>MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A.P.;</p><p>MACHADO, A.R.; BEZERRA, M.A. (orgs) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,</p><p>2005, pp 19-36.</p><p>MEYER, Marlyse. (1996) Folhetim: uma história. São Paulo: Cia da Letras, 2005.</p><p>NATIONAL FILM PRESERVATION FOUNDATION. The Active Life of Dolly of the Dailies:</p><p>Episode Five, “The Chinese Fan” (1914). Disponível em:</p><p>https://www.filmpreservation.org/userfiles/image/PDFs/DollyOfTheDailies_paper.pdf. Acesso</p><p>em: 14/10/2017.</p><p>SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano;</p><p>Revista Famecos, Porto Alegre, v. 10, nº22 dez. 2003.</p><p>SHEFFIELD, Rob. How We Went From Television's Golden Age to 'Peak TV' Blues. Rolling</p><p>Stone, 15 september, 2015</p><p>https://www.filmpreservation.org/userfiles/image/PDFs/DollyOfTheDailies_paper.pdf</p><p>https://www.filmpreservation.org/userfiles/image/PDFs/DollyOfTheDailies_paper.pdf</p><p>39</p><p>Tramas e dramas imagéticos: construção narrativa, sentidos e representações em</p><p>série norte-americana centrada em relacionamentos</p><p>Plots and imagetic dramas: narrative construction, meanings and representations in a</p><p>north-american series based on relationships</p><p>Fernanda Elouise Budag 34</p><p>Camilla Rocha 35</p><p>Resumo: Centramos nossa atenção na primeira temporada da série norte-americana The</p><p>Affair, de criação do produtor, escritor e diretor de televisão israelense Hagai Levi, para</p><p>pensarmos questões que atravessam o campo do roteiro. Nosso objetivo geral é identificar</p><p>variações e permanências na construção narrativa desse produto cultural contemporâneo,</p><p>ao mesmo tempo em que levantamos as representações construídas nesse espaço e os</p><p>sentidos que emergem de seus discursos. A série em questão, cujo mote é uma traição,</p><p>está em sua quarta temporada no momento nos Estados Unidos, no canal Showtime, e sua</p><p>primeira temporada está disponível atualmente no Netflix. Noah, um professor e escritor</p><p>que se ressente por depender financeiramente do sogro, trai sua esposa, Helen, com</p><p>Alison, que, por sua vez, trai o marido, Cole, com quem tem uma relação emocionalmente</p><p>distante após a perda do filho do casal. Em princípio, o frescor da série está no modo de</p><p>contar as histórias dos personagens no início da primeira temporada, as quais são narradas</p><p>a partir de duas perspectivas distintas. Uma mesma situação, portanto, é contada duas</p><p>vezes: uma do ponto de vista masculino, com o personagem Noah na posição de narrador,</p><p>e outra do ponto de vista feminino, com a personagem Helen na posição de narradora.</p><p>Em termos de um protocolo metodológico, empreendemos uma pesquisa bibliográfica</p><p>seguida de análise documental da série, a qual se dá desde o prisma da análise de discurso</p><p>francesa e dos preceitos dos estudos da narrativa. Mais detalhadamente, esse texto</p><p>midiático selecionado permite observações sobre o ponto de vista do qual uma história é</p><p>narrada (FRIEDMAN, 2002; LEITE, 2007) e, ainda, uma abordagem sobre o cronotopo</p><p>e o tempo diegético (BAKHTIN, 2014; MACHADO, 2010), uma vez que a série brinca</p><p>com a dimensão temporal ao fazer uso de flashforward/flashback para apresentar</p><p>consequências futuras de situações presentes. Desse cenário, interessam-nos as</p><p>representações (MOSCOVICI, 2013) veiculadas, como a representação de escritor ou as</p><p>representações de casamento e de família. Por fim, para além do texto e seu discurso em</p><p>si, é possível fazer emergir sentidos dos relacionamentos sociais que estabelecemos no</p><p>real concreto – que, ao fim e ao cabo, fornece a matéria-prima à diegese –, urgentes de</p><p>reflexões.</p><p>Palavras-chave: narrativa; discurso; representações; teleficção; roteiro.</p><p>Abstract: We focused our attention on the first season of the north-american series The</p><p>Affair, produced and written by Hagai Levi, a israeli television director, in order to think</p><p>about issues that cross the script. Our general objective is to identify variations and</p><p>34 Doutora em Ciências da Comunicação (ECA/USP), Professora e Pesquisadora da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM), onde coordena o Grupo de</p><p>Estudos Comunicação, consumo e marcas: aproximações na contemporaneidade. Integrante dos grupos de Pesquisa do CNPq “Midiato” (ECA/USP) e “Juvenália” (ESPM)-SP).</p><p>E-mail fernanda.budag@gmail.com.</p><p>35 Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCOM/ESPM (2015/2017). Doutoranda na mesma instituição (2017/2020). Integrante do grupo de pesquisa do CNPq</p><p>denominado “Comunicação, educação e consumo: as interfaces na teleficção”, coordenado pela profa. Dra.</p><p>Maria Aparecida Baccega. Participante da rede OBITEL Brasil. E-</p><p>mail camilla@costarocha.com.br.</p><p>40</p><p>permanences in the narrative construction of this contemporary cultural product, while</p><p>raising the representations built in this space as also the senses that emerges from their</p><p>discourses. The series in question, whose motto is a betrayal, is in its fourth season</p><p>currently in the United States, on the Showtime channel, and its first season is currently</p><p>available on Netflix. Noah, a teacher and writer who resents being financially dependent</p><p>on his father-in-law, betrays his wife, Helen, with Alison, who, in turn, betrays her</p><p>husband, Cole, with whom she has an emotionally distant relationship after the loss of</p><p>the son of couple. In principle, the coolness of the series is in the way of telling the</p><p>characters’ stories at the beginning of the first season, which are narrated from two</p><p>different perspectives. So the same situation is counted twice: one from the male point of</p><p>view, with the character Noah in the position of narrator, and another from the feminine</p><p>point of view, with the character Helen in the position of narrator. In terms of a</p><p>methodological protocol, we undertake a bibliographic research followed by</p><p>documentary analysis of the series, which takes place from the French discourse analysis’</p><p>perspective and the precepts of the narrative studies. More selectively, this selected media</p><p>text allows for observations on the point of view of which a story is narrated (Friedman,</p><p>2002; Mille, 2007) and an approach on chronotope and diegetic time (BAKHTIN, 2014),</p><p>since the series plays with the temporal dimension when making use of flashforward to</p><p>present future consequences of present situations. From this scenario, we are interested</p><p>in the representations (MOSCOVICI, 2013), such as the representation of the writer or</p><p>the representations of marriage and family. Finally, beyond the text and its discourse</p><p>itself, it is possible to emerge senses of the social relationships we establish in the</p><p>concrete real - which, after all, provides the raw material for diegese -, urgent for</p><p>reflection.</p><p>Keywords: narrative; discourse; representation; telefiction; plot.</p><p>Introdução</p><p>A série norte-americana The Affair, criada por Sarah Treem e Hagai Levi e</p><p>ganhadora do Globo de Ouro em 2015 na categoria melhor série dramática, desperta</p><p>nosso interesse investigativo uma vez que ao seu roteiro estão atreladas variações no</p><p>modo narrativo ficcional, especialmente caras aos pesquisadores de teleficção.</p><p>Em síntese o drama/romance, estreado em 2014 e já na quarta temporada no canal</p><p>Showtime,</p><p>explora os efeitos psicológicos e emocionais de se ter um caso</p><p>extraconjugal. Contada separadamente das perspectivas masculina e</p><p>feminina – usando as memórias distintas de cada um, a série acompanha</p><p>o drama de Alison (Ruth Wilson), uma garçonete em um restaurante</p><p>popular nos Hamptons, que tenta recolocar sua vida no lugar. Cole</p><p>(Joshua Jackson), seu marido, luta para manter o casamento estável, ao</p><p>mesmo tempo que busca controlar a situação financeira do rancho que</p><p>pertence à sua família há gerações. A vida do casal torna-se ainda mais</p><p>complicada quando Alison começa a ter um caso com Noah (Dominic</p><p>West), um professor de Nova York, aspirante a escritor. Helen (Maura</p><p>41</p><p>Tierney) é a melhor amiga do professor, mãe de seus filhos e sua esposa</p><p>há 17 anos.36</p><p>A partir do deslocamento do foco narrativo (feminino/masculino) articulado na</p><p>trama da série, objetivamos tanto identificar quais são as variações e as permanências nas</p><p>construções narrativas da primeira temporada de The Affair quanto levantar as</p><p>representações fundantes da ficção nas distintas perspectivas de Alison e Noah, tais como</p><p>as noções de família, casamento e profissão.</p><p>Empreendemos, em um primeiro momento, como protocolos metodológicos,</p><p>pesquisas bibliográfica e documental, para em seguida nos valermos da perspectiva</p><p>teórico-metodológica da Análise de Discurso de linha francesa (ADF) e dos preceitos de</p><p>análise de narrativas. Visamos, com isso, dar conta dos seguintes questionamentos: quais</p><p>os sentidos que orbitam ao redor dessas representações e em que medida as abordagens</p><p>sobre cronotopo e diegese nos permitem uma aproximação com tais representações?</p><p>Construção narrativa: cronotopo, foco narrativo e memórias</p><p>É possível afirmar que a série em questão inova ao proporcionar para o</p><p>telespectador uma história contada através de pontos de vista distintos, ou seja, os mesmos</p><p>fatos são narrados duas vezes e, ainda, por meio da aplicação do recurso de flashforward,</p><p>que aliás, conforme detalhamos mais à frente, primeiramente, figura como flashforward,</p><p>porque parece-nos uma narrativa contada de um presente que avança para o futuro, mas</p><p>depois passamos a entender que é, em verdade, um flashback, porque consiste numa</p><p>narrativa que se passa no presente e retoma o passado.</p><p>A cada episódio, em um primeiro momento, Noah conta sua versão dos fatos para,</p><p>em seguida, Alison trazer a sua história. Sobrepõe-se a esses diferentes pontos de vista</p><p>narrativos deslocamentos na esfera diegética do cronotopo. Isso porque, enquanto Noah</p><p>e Alison trazem à baila os detalhes de como começaram e desenvolveram o</p><p>relacionamento extraconjugal, ao telespectador é dado conhecer a investigação de um</p><p>crime – que teve lugar no mesmo “tempo” narrativo das versões dos personagens sobre o</p><p>seu affair, mas que compõe um outro “tempo” da história (o presente).</p><p>Assim, podemos concluir que em The Affair a relação entre tempo e espaço é</p><p>determinante não somente para o desenvolver da narrativa, como interfere no âmago do</p><p>36 ADORO CINEMA. The Affair. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2017.</p><p>42</p><p>enredo. Isso porque se de início temos a “brincadeira” com o foco narrativo, deslocando</p><p>o telespectador acerca das noções de verdade e de onipotência do narrador, ao mesmo</p><p>tempo a história ganha outro dinamismo quando no tempo presente emerge uma</p><p>investigação acerca de um crime ocorrido quando do affair narrado por Noah e Alison.</p><p>Para compreender melhor essa questão, valemo-nos da perspectiva bakhtiniana de</p><p>cronotopo, quando o autor afirma que:</p><p>No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e</p><p>temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-</p><p>se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço</p><p>intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história</p><p>[...] Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de gênero</p><p>são determinados justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o</p><p>princípio condutor do cronotopo é o tempo (BAKHTIN, 2014, p. 211-</p><p>212).</p><p>Ainda que diante da utilização do recurso de flashforward-flashback, o lugar-</p><p>tempo se faz determinante para o desenrolar da trama, que não prescinde de suas</p><p>determinações – o affair é localizado em um tempo-espaço específicos e o jogo narrativo</p><p>acontece nos deslocamentos dessa relação.</p><p>Há, enfim, um constante jogo com as temporalidades. De acordo com o que já</p><p>sinalizamos ao início, o telespectador de The Affair é conduzido ao entendimento de que</p><p>o tempo presente é aquele em que Noah e Alison se conhecem e se relacionam. No</p><p>entanto, com o desenrolar da narrativa, percebe-se que o tempo pretensamente presente é</p><p>o passado, ou seja, o eixo narrativo principal do affair está associado às tramas da</p><p>memória.</p><p>No que concerne ao foco narrativo, entendemos que The Affair trabalha com o</p><p>tipo que Leite (2007) denomina como onisciência seletiva múltipla: a cena provém</p><p>diretamente da subjetividade dos personagens, que expressam seus pensamentos,</p><p>sentimentos e percepções acerca dos acontecimentos que compõem o deslinde da trama.</p><p>Do ponto de vista narrativo, temos que isso representa o espraiamento da figura</p><p>central do narrador que deixa de ser</p><p>puramente onisciente, ou mesmo narrador-</p><p>testemunha e/ou protagonista, para encarnar, por meio do discurso indireto livre, as</p><p>percepções dos personagens em si mesmos narradores (LEITE, 2007). Como um dos</p><p>efeitos desse estilo narrativo elencamos a maior proximidade do leitor/telespectador ao</p><p>43</p><p>universo do personagem, que se apresenta quase que a corpo nu para o telespectador, ao</p><p>desnudar suas impressões, pensamentos e emoções.</p><p>Em The Affair o telespectador é constantemente levado a se aproximar e se</p><p>distanciar de Noah tanto quanto de Alison. Isso porque a narrativa a todo momento</p><p>explora as ênfases do certo/errado. Com o desenvolver da história o telespectador é</p><p>convocado a assumir a sua posição diante das ênfases morais trazidas pelas perspectivas</p><p>de Noah e Alison. Tanto um quanto o outro se vislumbram idôneos em suas escolhas e</p><p>condutas, colocando as ênfases de desvios comportamentais em cima de outrem.</p><p>Um exemplo disso é no próprio início do caso extraconjugal: quando da narração</p><p>de Noah, ao telespectador é dado a perceber uma conduta provocadora e insinuante por</p><p>parte de Alison, ao passo que quando ela narra a sua versão da história, é Noah quem a</p><p>procura e força um relacionamento. Uma das nossas hipóteses é que a construção da</p><p>narrativa tem por intenção evidenciar como a memória/lembrança é particular de cada</p><p>um. Afinal, mais do que uma narração, temos uma narração a partir da memória.</p><p>Assim, em sendo a memória, na trama, um eixo condutor principal, as</p><p>desconformidades entre o relato de um e o relato de outro personagem ocorrem porque</p><p>“[...] o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas,</p><p>[e] inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do</p><p>presente” (HALBWACHS, 2003, p. 29).</p><p>As memórias, inclusive, são materialmente expressadas na narrativa por meio de</p><p>diferentes aportes, como roupas, lugares, sequência dos fatos, entre outras variações.</p><p>Representativo disso, destacamos Alison com roupas mais curtas e provocantes na</p><p>memória de Noah, e com roupas mais casuais em suas próprias memórias. Na ocasião do</p><p>coquetel de premiação do sogro de Noah isso fica bem marcante. Segundo as memórias</p><p>de Noah, ele avista Alison pela primeira vez no evento na posição de garçonete,</p><p>segurando uma garrafa de vinho, com vestido curto e justo (Figura 1). Já de acordo com</p><p>as memórias de Alison, neste mesmo evento, ela estava com roupas que cobriam todo o</p><p>corpo e estava trabalhando na chapelaria lendo um livro no momento em que Noah se</p><p>aproxima (Figura 2).</p><p>Outras ocorrências dessas materializações das variações da memória percebemos</p><p>quando Noah lembra de uma fala de Alison em um local, enquanto esta, por sua vez,</p><p>recorda de sua fala a ele em outro lugar. Ou, ainda, quando Alison lembra de ter contado</p><p>44</p><p>algum fato a Noah antes de alguma situação específica, enquanto Noah conserva a</p><p>memória do conhecimento do mesmo fato após a situação em questão.</p><p>Por fim, importa destacar o modo peculiar com que The Affair conta a sua história.</p><p>Além de ser a partir do ponto de vista dos personagens, duas versões sobre os mesmos</p><p>fatos, com recurso de flashforward-flashback, a série explora o interstício entra a</p><p>imaginação do que aconteceu e o relato do acontecido para, nesse ponto, criar a história.</p><p>História que, em sua maior parte, ao menos na primeira temporada (recorte de nosso</p><p>corpus), fica em aberto para a interpretação de quem a assiste – tangenciando o conceito</p><p>de obra aberta, de Eco (2015). Nisso, em seu arranjo, pode chegar a confundir o receptor.</p><p>Nesse ponto, defendemos, então, que The Affair pode ser considerada uma narrativa</p><p>complexa aos moldes propostos por Mittell (2012). Não segue exatamente todos os</p><p>pontos elencados pelo autor, mas justificamos sua complexidade narrativa especialmente</p><p>por jogar com as temporalidades e por seu potencial de causar desorientação ao</p><p>espectador. Somamos a essas caraterísticas mais uma não citada por Mittell (2012) e que</p><p>enxergamos justamente como uma contribuição complexa de The Affair: o fato de assumir</p><p>a memória de dois narradores como eixo condutor.</p><p>Representações e sentidos</p><p>As representações compõem a linguagem midiática. Segundo Budag (2017, p.</p><p>194) as representações são “conceitos, imagens, ideias, posições e entendimentos de</p><p>mundo. E indo além, nada na realidade, mesmo fora da mídia, escapa às representações”.</p><p>Estamos ajustados para perceber e conhecer de acordo com o sensorium significativo</p><p>produzido pelas representações (MOSCOVICI, 2013).</p><p>Uma vez que compartilhamos da mesma inserção sócio-histórica-cultural,</p><p>assimilamos a realidade por blocos de sentidos, que formam, segundo Moscovici (2013),</p><p>as representações. Dessa maneira, as representações facilitam a comunicação dos sujeitos</p><p>e a assimilação cognitiva da realidade.</p><p>Figura 1 – Alison segundo memória de Noah</p><p>Fonte: The Affair, 2014.</p><p>Figura 2 – Alison segundo sua memória</p><p>Fonte: The Affair, 2014.</p><p>45</p><p>Para a análise da série The Affair, elegemos três eixos para exame das</p><p>representações nas perspectivas de Alison e Noah, a saber: família, casamento e profissão.</p><p>Para tanto, nos valemos dos preceitos da Análise de Discurso de linha francesa (ADF)</p><p>uma vez que interessa perceber os efeitos dos sentidos entre os locutores.</p><p>A ADF torna inconteste para o analista o seu papel: apreender o que advém do</p><p>texto, a partir dos filtros que a cada um, e de maneiras diferentes, perpassam. Ou seja,</p><p>consiste em deixar o texto contar o modo como a análise será realizada: “em suma, a</p><p>Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos,</p><p>como ele está investido de significância para e por sujeitos” (ORLANDI, 2013, p. 26).</p><p>As famílias de Noah e Alison têm em comum a ancoragem na tradição. Noah é</p><p>professor/escritor, casado com Helen há 17 anos, morador de Nova York e pai de quatro</p><p>filhos. Ele não tem rendimentos suficientes para sustentar a família, o que é providenciado</p><p>por Helen, com o dinheiro dos pais. Percebe-se uma rivalidade e inimizade entre Noah e</p><p>o sogro não somente por conta desse lastro financeiro ao qual Noah se submete, mas</p><p>também pelo fato de que o pai de Helen é um escritor bem sucedido (enquanto que Noah</p><p>é um “fracasso” porque seu livro não é best-seller).</p><p>A trama começa com a viagem de Noah e Helen com os filhos para passar as férias</p><p>de verão em Montauk, onde fica a casa de veraneio dos pais de Helen. A partir daí</p><p>percebemos a constituição da família de origem de Helen, muito similar com a família</p><p>que ela mesma forma ao lado de Noah. O fato de ela ser a provedora financeira da família</p><p>faz com que Noah seja alvo de críticas e cobranças de seus sogros, que não admitem que</p><p>sejam redesenhados os papéis de gênero. Nem o próprio Noah admite e se angustia ao</p><p>longo da trama com o fato de não desempenhar o papel de provedor da família.</p><p>Percebemos que a trama faz uso da assimilação das representações familiares –</p><p>incluído aí o papel designado para cada gênero, cultural, social e historicamente – para</p><p>construir pontos de tensão na narrativa a partir dos sentidos que orbitam em torno de uma</p><p>construção tradicional de família. O telespectador fica sabendo, com Noah, que Alison</p><p>propicia um alívio às tensões que ele enfrenta com a família de Helen (e com a própria</p><p>esposa que acaba sempre adotando uma postura de submissão diante de seus pais).</p><p>No caso de Alison, casada com Cole, a tradição familiar aparece lastreada em</p><p>outra direção. Eles moram nessa mesma citada pequena cidade de veraneio, Montauk,</p><p>sendo a mão de obra daquele polo turístico e não aqueles que desfrutam de suas benesses.</p><p>46</p><p>Cole e os irmãos tomam conta do rancho da família e têm na mãe viúva um forte lastro</p><p>emocional (ela desempenha o papel matriarcal em oposição à família de Helen em que</p><p>seu pai se coloca como o patriarca).</p><p>Alison é querida por todos e foi completamente acolhida</p><p>the dead gods in the debris of O Casarão (“the big</p><p>house”):</p><p>cyclical aspects of Lauro César Muniz’s TV work</p><p>Lucas Martins Néia</p><p>83</p><p>Pokémon GO: a abertura aos diálogos de uma experiência-</p><p>em-rede em narrativas transmídia</p><p>Pokémon GO: an opening to the dialogues of a network-</p><p>experience in transmedia storytelling</p><p>João Pedro de Azevêdo Machado Mota – Yan Tibet</p><p>95</p><p>“Meninos, eu vi”: o primeiro capítulo, quatro décadas –</p><p>a evolução narrativa de Lauro César Muniz</p><p>“Guys, I saw”: the first chapter, four decades –</p><p>the narrative evolution of Lauro César Muniz</p><p>Roberto Simão Pereira Junior</p><p>Lucas Martins Néia</p><p>105</p><p>As redes sociais como ferramenta transmidiática na</p><p>produção audiovisual</p><p>The social networks as transmídias tools in audiovisual</p><p>production.</p><p>Sillas Carlos dos Santos</p><p>Antonio Franscisco Magnoni</p><p>119</p><p>129</p><p>Robótica e Arte: estudo de caso do registro audiovisual da</p><p>construção de carrinhos com material reciclável em</p><p>ambiente escolar</p><p>Robotics and Art: case study of the construction of trolleys</p><p>with recyclable material in school environment</p><p>Carolina Gutierrez Ribeiro</p><p>Marcos Rogério Martins Costa</p><p>130</p><p>As representações da imagem da cidade através do cinema</p><p>The representations of the city's image by the cinema</p><p>Lucas Bandos Lourenço</p><p>144</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>VI</p><p>155</p><p>Luta Livre e a Arte em Desenhos de Didi Ferreira</p><p>Pro-Wrestling and the Art in Drawings by Didi Ferreira</p><p>Carlos Cesar Domingos do Amaral (USCS)</p><p>156</p><p>Do papel à tela de cinema: representações do cômico Polin</p><p>na cultura material impressa e na phonoscène pioneira de</p><p>Alice Guy</p><p>From paper to screen: representations of the comic Polin in</p><p>printed material culture and the pioneering phonoscène of</p><p>Alice Guy</p><p>Norberto Gaudêncio Junior</p><p>164</p><p>Circos, Círculos, Ventiladores e Picadeiros: As</p><p>Transformações da Vida como Metáfora do Movimento no</p><p>Filme O Palhaço.</p><p>Circles, Circles, Fans and Rides: The Transformations of</p><p>Life as a Movement Metaphor in the Film the Clown.</p><p>Patricio Dugnani</p><p>176</p><p>186</p><p>O Processo Criativo como Terapia Ocupacional: A Arte do</p><p>Fazer de</p><p>Nise da Silveira</p><p>The Creative Process as Occupational Therapy: The art of</p><p>doing by Nise da Silveira</p><p>Ana Luisa Fernandes</p><p>187</p><p>O sujeito, a abordagem e seus desdobramentos no roteiro</p><p>do documentário</p><p>The subject, the approach and its unfolding in the</p><p>documentary script</p><p>Ariane Daniela Cole</p><p>202</p><p>Carne Forte: ninguém é invisível</p><p>Strong Flesh: nobody is invisible</p><p>Marcio José Silva</p><p>215</p><p>224</p><p>Procura-se um autor de telenovela</p><p>Looking for a telenovela screenwriter</p><p>Gustavo Amaral</p><p>225</p><p>Estudo sobre product placement em séries de streaming</p><p>Study about product placement in streaming series</p><p>Vitor Vaz de Freitas</p><p>244</p><p>258</p><p>A animação Nausicaa do Vale do Vento: Um roteiro atual de</p><p>um mito antigo</p><p>259</p><p>The animation Nausicaa of the Valley of Wind: A current</p><p>script for an ancient myth.</p><p>Claudio Imamura</p><p>Regina Lara S. Mello</p><p>Entre Homens e Porcos: uma análise sobre “O Filme da</p><p>minha vida”.</p><p>Between Men and Pigs: an analysis on "The Movie of My</p><p>Life</p><p>Isabel Orestes Silveira</p><p>Nora Rosa Rabinovich</p><p>270</p><p>Corpo, performance e a adaptação da literatura no cinema</p><p>contemporâneo.</p><p>Body, performance and the adaptation of literature in</p><p>contemporary cinema.</p><p>Roberto Gustavo Reiniger Neto</p><p>278</p><p>290</p><p>Melodrama em Aquarius</p><p>Melodrama in Aquarius</p><p>Diogo Vasconcelos Barros Cronemberger</p><p>291</p><p>O sumiço da pasta de partituras como plano de Fletcher –</p><p>Explicando o Unifying Theory of Two Plus Two no filme</p><p>Whiplash</p><p>The disappearance of the music score folder as Fletcher’s</p><p>plan – Explaining the Unifying Theory of Two Plus Two in</p><p>the movie Whiplash</p><p>Rodrigo Rodrigues das Neves</p><p>302</p><p>Quando o "happy end" voltou ao ponto de partida: memória</p><p>e historiografia na obra de Oldřich Lipský</p><p>When the "happy end" returned to the starting point:</p><p>memory and historiography in the work of Oldřich Lipský</p><p>Verônica D’Agostino Piqueira</p><p>313</p><p>SESSÃO 2 REFLEXÕES TEMÁTICAS 321</p><p>Cristina Susigan (org.)</p><p>Carlos Alberto Negrini</p><p>Elidayana da Silva Alexandrino</p><p>Liliane Alfonso Pereira de Carvalho</p><p>323</p><p>Um corpo como campo de batalha:</p><p>resistências contemporâneas</p><p>A body as a battlefield: contemporary</p><p>resistances</p><p>326</p><p>Narrativas que se encontram: Imagens que</p><p>surgem da poética do encontro, da memória</p><p>e do acaso</p><p>340</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>VII</p><p>Narratives that found each other: Images</p><p>come of the poetics of encounter, memory</p><p>and random</p><p>Imaginário:</p><p>A construção de narrativas visuais na arte</p><p>popular brasileira.</p><p>Imaginary: The construction of visual</p><p>narratives in Brazilian popular art.</p><p>352</p><p>Patricio Dugnani (org.)</p><p>Marcos Nepomuceno Duarte</p><p>Norberto Gaudêncio Junior</p><p>Thiago Mori Neto</p><p>362</p><p>Ligia Lemos (org.)</p><p>Daniela Afonso Ortega</p><p>Lucas Martins Néia</p><p>Maria Immacolata Vassallo de Lopes</p><p>Mariana Marques de Lima</p><p>Roberto Simão Pereira Junior</p><p>Tissiana Nogueira Pereira</p><p>372</p><p>SESSÃO 3 RODADAS DE PROJETOS -</p><p>Resumos</p><p>387</p><p>Felipe Ponce, Vanessa Gonçalves e Fernando Berlezzi</p><p>388</p><p>Lívia Marcela da Silva Uchôa</p><p>388</p><p>Davi Lopes Ramos e Jean Lima Santana</p><p>389</p><p>Sebastião Sidnei de Oliveira</p><p>390</p><p>Gustavo Maximiliano e Vinícius Soares.</p><p>391</p><p>Carolina Nishikubo Lopes da Silva</p><p>392</p><p>Cristiano Belderrain Calegari</p><p>393</p><p>William Augusto Camara</p><p>393</p><p>Denise Barbosa Fejgelman</p><p>394</p><p>Noemi Zein Telles</p><p>394</p><p>Gustavo Maximiliano Silva Oliveira</p><p>395</p><p>Maria Ruth de Vasconcelos Barros e Pedro Carvalhaes</p><p>396</p><p>Gleison Mota dos Santos e Ricardo Delfin</p><p>396</p><p>Raphael Carminatto Souza</p><p>397</p><p>João Paulo Lopes de Meira Hergesel</p><p>398</p><p>Ana Patricia de Queiroz Carneiro Dourado</p><p>399</p><p>Caroline Favret Ramalho</p><p>400</p><p>Wllyssys Wolfgang Reis Dias Araujo / Geisla Fernandes /</p><p>Rony Saqqara</p><p>Formato e informações: minissérie</p><p>401</p><p>Juliana Benetti Victorio</p><p>401</p><p>Matheus de Andrade Faustino</p><p>402</p><p>Almir Guilhermino da Silva</p><p>402</p><p>Bruna Giovanna Malta Victal Teodoro</p><p>402</p><p>Rodrigo Rodrigues das Neves</p><p>403</p><p>Victor Cesar de Jesus Souza</p><p>404</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>VIII</p><p>DADOS DO EVENTO</p><p>26 e 27 de setembro de 2017</p><p>Universidade Presbiteriana Mackenzie</p><p>Campus Higienópolis, São Paulo - SP - Brasil</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>IX</p><p>https://glaudav.wixsite.com/roteiristas2017</p><p>https://glaudav.wixsite.com/roteiristas2017</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>X</p><p>PARCERIAS E APOIOS</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XI</p><p>APRESENTAÇÃO - site</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XII</p><p>PROGRAMAÇÃO GERAL</p><p>26 setembro 2017</p><p>M A N H Ã - RODADAS DE PROJETOS</p><p>h o r á r i o : 8 h 3 0 à s 1 2 h 3 0 / l o c a l : R W . s a l a _ _</p><p>T A R D E - PALESTRA 1</p><p>h o r á r i o : 1 4 h 0 0 à s 1 5 h 0 0</p><p>L o c a l : E d i f í c i o R W A u d i t ó r i o 1 1 º a n d a r</p><p>T A R D E - GTS / MESAS TEMÁTICAS</p><p>h o r á r i o : 1 5 h 0 0 à s 1 8 h 0 0</p><p>L o c a l : E d i f í c i o R W</p><p>N O I T E - WORKSHOPS 1</p><p>"VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS"</p><p>(com a presença dos roteiristas da ABRA)</p><p>h o r á r i o : 1 9 h 0 0 à s 2 1 h 3 0</p><p>27 setembro 2017</p><p>M A N H Ã - RODADAS DE PROJETOS</p><p>h o r á r i o : 8 h 3 0 à s 1 2 h 3 0 / l o c a l : R W . s a l a _ _</p><p>T A R D E - PALESTRA 2</p><p>h o r á r i o : 1 4 h 0 0 à s 1 5 h 0 0</p><p>L o c a l : E d i f í c i o R W A u d i t ó r i o 1 1 º a n d a r</p><p>T A R D E - GTS / MESAS TEMÁTICAS</p><p>h o r á r i o :</p><p>pela família de Cole –</p><p>ela não se identifica com a própria mãe, uma aventureira, nômade em termos de lar e de</p><p>relacionamentos. Para Alison, portanto, a família está muito mais atrelada ao senso de</p><p>comunidade do que ao DNA: “Você não entende essa cidade, detetive? Nós somos</p><p>família aqui. Podemos brigar, nos magoar, mas quando realmente importa, aparecemos.</p><p>Casamentos, funerais, independente do que for” (THE AFFAIR, 2014).</p><p>A segunda categoria que elegemos para o estudo das representações é o</p><p>casamento. Na percepção de Alison, o “casamento significa coisas diferentes para cada</p><p>um” (dando a entender que alguns o levam a sério e são fiéis, enquanto outros não) e não</p><p>tem “coisa pior do que se sentir sozinha no próprio casamento” (THE AFFAIR, 2014).</p><p>Notamos que a realidade do casamento de Alison (distanciamento de Cole e luto do casal</p><p>pela perda do filho) e a percepção dessa realidade, é que a conduzem para o caso</p><p>extraconjugal com Noah.</p><p>Em contrapartida, Noah não coloca um juízo negativo sobre o seu casamento e foi</p><p>depois que iniciou o caso com Alison que ponderou a respeito de seu laço marital:</p><p>Mas a gente abandona algumas liberdades pessoais, para viver com</p><p>mais segurança, em todos os níveis... nacional, municipal, marital.</p><p>Nenhum problema nisso. Eu gostava de ser casado. Quando os outros</p><p>reclamavam de suas esposas, eu só pensava que o coitado tinha feito</p><p>uma má escolha (THE AFFAIR, 2014).</p><p>A trama de The Affair se vale, portanto, das representações basilares dos</p><p>relacionamentos humanos (família e casamento) para expressar matizes de significação</p><p>diversas. A riqueza dessa narrativa reside justamente em abrigar a pluralidade de sentidos</p><p>em forma de pontos de vista diversos que compõem, ao fim e ao cabo, um manto de</p><p>arlequim de possibilidades para que compreendamos a existência humana como uma</p><p>história sempre aberta e plural, nunca fechada em uma só verdade.</p><p>Por fim, enquanto nosso terceiro e último eixo para o estudo das representações</p><p>na série (a profissão de escritor), cabe mencionar o papel representado por Noah na</p><p>narrativa, como autor/professor. Enquanto não consegue viver dos rendimentos de seus</p><p>livros, Noah se dedica a ensinar literatura para uma turma de adolescentes em uma escola</p><p>47</p><p>de Nova York. Nesse raciocínio, destacamos especialmente uma fala em que o</p><p>personagem manifesta a sua postura educadora também enquanto pai, em resposta à sua</p><p>sogra:</p><p>Não sei se faz muito sentido para você ou não. Mas Helen e eu estamos</p><p>tentando educar humanos decentes, bons cidadãos, não apenas idiotas</p><p>felizes, sem nada na cabeça, além de como conseguir mais, gastar mais,</p><p>produzir mais (THE AFFAIR, 2014)</p><p>Ainda que esse discurso esteja carregado das melhores intenções e permeado por</p><p>bom senso, não é compatível com a conduta do próprio Noah. Enquanto escritor, Noah é</p><p>um homem idealista e egocêntrico, que volta a vida da família ao redor de si enquanto</p><p>persevera na publicação de uma obra de sucesso. E, ainda, a sua trajetória é marcada</p><p>justamente por essa tentativa em produzir e ganhar mais. O motor de sua angústia e</p><p>insatisfação tem origem nesse descompasso financeiro para com a família da esposa.</p><p>Considerações finais</p><p>Enfim, o que a série parece querer nos dizer? Que significações coloca em</p><p>circulação para nos fazer pensar sobre nosso real concreto e sobre os relacionamentos que</p><p>estabelecemos nessa concretude? Trazemos nesse espaço final alguns últimos ensaios e</p><p>amarramos nossas principais constatações – algumas delas já assinaladas ao logo de</p><p>nossos escritos – a partir do que havíamos colocado como nosso objetivo (compreender</p><p>a construção narrativa).</p><p>Do arranjo com o qual trabalha, depreendemos que The Affair promove,</p><p>efetivamente, uma desconstrução da utópica possibilidade de conhecimento da totalidade</p><p>de um fato. A série parece querer deixar claro de uma vez por todas – a possíveis</p><p>espectadores leigos e desavisados – que tudo o que temos são sempre versões dos fatos.</p><p>Nessa linha de raciocínio, faz refletir sobre os julgamentos que fazemos, que ora pendem</p><p>para um lado, e ora tendem a favor do outro lado, justamente porque as construções dos</p><p>discursos são ambas convincentes.</p><p>Atravessando todas as representações que constrói, a série parece querer acentuar</p><p>a imperfeição dos seres e das relações. O que evidenciamos com discurso de Noah a seus</p><p>alunos em sala de aula:</p><p>E adultos são imperfeitos. Romeu e Julieta são crianças. São inocentes.</p><p>Nunca magoaram ou traíram alguém. Como são inocentes, o amor deles</p><p>é puro. E quando os adultos interferem, mesmo querendo ajudar, como</p><p>a enfermeira e o frei, eles acabam corrompendo esse amor puro. Então,</p><p>o que Shakespeare quer dizer é que o amor puro não se sustenta em um</p><p>mundo imperfeito (THE AFFAIR, 2014).</p><p>48</p><p>Tais imperfeições marcam a representação de família (e seus desentendimentos),</p><p>a representação de casamento (e suas traições e separações) e a representação de escritor</p><p>(que ao mesmo tempo que critica um estilo de vida, persegue-o também). Aliás, uma</p><p>série, como o é The Affair, presta-se mais do que outros produtos audiovisuais ficcionais,</p><p>como um filme, por exemplo, a dar profundidade e inclusive ambiguidade aos</p><p>personagens. Por mais que haja uma certa perfeição moral nos discursos de alguns</p><p>personagens, a série aparenta querer dar visibilidade à imperfeição de nós sujeitos atores</p><p>sociais e de nossas relações na concretude cotidiana não diegética.</p><p>Por fim, realçamos que enxergamos, de fato, em The Affair traços de narrativa</p><p>complexa, especialmente por brincar com o tempo na narrativa e desorientar quem a</p><p>assiste (MITTEL, 2012). Mas, acima de tudo, descortinamos um novo aspecto que ela</p><p>introduz e que sobreleva a complexidade: a assunção das memórias de dois narradores</p><p>distintos como eixos condutores da narrativa; que são efetivamente o que suscita a</p><p>brincadeira temporal e perturbação do espectador. Com isso, avistamos que o frescor</p><p>narrativo desse texto midiático está no deslocamento da posição hegemônica do narrador.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ADORO CINEMA. The Affair. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2017.</p><p>BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 7. ed. São Paulo:</p><p>Hucitec, 2014.</p><p>BUDAG, Fernanda Elouise. Intertextualidade, dialogismo e cultura material: um estudo de</p><p>narrativa ficcional audiovisual contemporânea. 2016. Tese (Doutorado) – Ciências da</p><p>Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.</p><p>ECO, Umberto. Obra aberta. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.</p><p>HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.</p><p>LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 11. ed. São Paulo: Ática, 2007.</p><p>MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão contemporânea. Matrizes, São Paulo, v.</p><p>5, n. 2, p. 29-52, jan./jun. 2012.</p><p>MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 10. ed.</p><p>Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.</p><p>ORLANDI, Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2013.</p><p>THE AFFAIR – 1a temporada. Estados Unidos: Paramount, 2014. 4 DVDs (500 min), som dolby</p><p>digital 5.1, color.</p><p>49</p><p>Personagens e construções de identidades</p><p>50</p><p>Algumas reflexões sobre humanos e máquinas na ficção cinematográfica</p><p>Some reflections on humans and machines in film fiction</p><p>Ana Lúcia Trevisan37</p><p>Elaine Cristina de Oliveira Prado38</p><p>Isabel Orestes Silveira39</p><p>Resumo: Se na mitologia a descoberta do fogo era um conhecimento perigoso para a</p><p>humanidade; na ficção cinematográfica, a exploração do tema robôs, como máquinas</p><p>capazes de tirarem o humano da ignorância, torna-se cada vez mais comum. Por isso, o</p><p>objetivo deste artigo é entrelaçar a literatura com a linguagem cinematográfica com a</p><p>finalidade de analisar os filmes Eu, Robô (2004), baseado no livro de ficção cientifica de</p><p>Isaac Asimov</p><p>e o filme Ex Machina: Instinto artificial (2015) e de problematizar o</p><p>significado de ser humano envolvido com a cultura, observando aspectos como emoção,</p><p>adaptação e diferentes modos de comunicação e criação, em contraste com as</p><p>inteligências artificiais.</p><p>Palavras-chave: mitologia, cinema, ficção, homem, máquina</p><p>Abstract: If in mythology the discovery of fire was a dangerous knowledge for mankind;</p><p>in cinematographic fiction, the exploration of the theme robots, as machines capable of</p><p>taking the human from ignorance, becomes more and more common. The purpose of this</p><p>article is to interweave literature with cinematographic language in order to analyze the</p><p>films Eu, Robô (2004), based on Isaac Asimov's book of scientific fiction and the film Ex-</p><p>Machina: Artificial Instinct (2015) and to problematize the meaning of being human</p><p>involved with the culture, observing aspects like emotion, adaptation and different modes</p><p>of communication and creation, in contrast to the artificial intelligences.</p><p>Key words: mythology, moving picture, fiction, man, machine</p><p>Introdução</p><p>Eu, Robô (2004) é um filme baseado no livro de ficção cientifica de Isaac</p><p>Asimov (1920-1992), escritor norte americano, considerado um dos mais importantes</p><p>escritores de ficção científica do século XX. No ano de 1950, publicou o livro “Eu, Robô”,</p><p>em que narra uma série de nove histórias, sobre o desenvolvimento dos robôs. O texto</p><p>37 * Ana Lúcia Trevisan possui doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo na área de Literatura Espanhola e Hispano-Americana. É professora do</p><p>Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisa temas como: os estudos literários (Literatura Brasileira e Hispano-americana, literatura</p><p>latino-americana contemporânea, relações dialógicas entre discurso histórico e literário e aos limites da narrativa fantástica.</p><p>38 * Elaine Cristina de Oliveira é graduada em Letras Português Inglês pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1983), graduada em Letras Clássicas Latim pela Universidade</p><p>de São Paulo (1985), mestrado em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutorado em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo</p><p>(2005). É docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Coordenadora do Curso de Letras e professora do programa de Pós-Graduação em Letras, da U. P. M.</p><p>39 * Isabel Orestes Silveira é graduada em Artes Plásticas e Pedagogia. Mestre pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Doutora em Comunicação e</p><p>Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Docente Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação</p><p>(FAPCOM). Pesquisadora do grupo Linguagem, sociedade e identidade: estudos sobre a mídia (UPM) e Processos de Criação (PUC-SP).</p><p>51</p><p>apresenta a criação de robôs que passam a evoluir até o estado de perfeição, chegando a</p><p>governar o mundo dos homens, conforme seus respectivos interesses. O autor se tornou</p><p>famoso pelas obras literárias de ficção, as quais fizeram sucesso entre os cientistas como</p><p>também para os leitores de ficção científica.</p><p>O argumento do autor se fundamenta em três princípios fundamentais:</p><p>1 - Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir</p><p>que um ser humano sofra algum mal. 2 – Um robô deve obedecer às</p><p>ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em</p><p>que tais ordens contrariem a Primeira Lei. 3 – Um robô deve proteger</p><p>sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com</p><p>a Primeira e a Segunda Leis. (ASIMOV, 2004, p.04)</p><p>O debate sobre a evolução da inteligência artificial e sua relação com o homem</p><p>pode ser aquecido no filme “Ex Machina: Instinto artificial” (2015) do diretor e roteirista</p><p>Alex Garland. Na análise desses filmes, pretende-se problematizar o significado de ser</p><p>humano em meio às interrelações da cultura, observando aspectos como emoção,</p><p>adaptação e diferentes modos de comunicação e criação, em contraste com as</p><p>inteligências artificiais.</p><p>Por meio da análise das narrativas fílmicas, é possível perceber a ressignificação</p><p>do debate sobre os limites do homem e da máquina. Observa-se que “[...] A ‘irrealidade’</p><p>da literatura fantástica se transforma, para o leitor, em símbolo ou alegoria, quer dizer, na</p><p>representação de realidades, de experiências que se pode identificar na vida. O importante</p><p>é isso: não é o caráter ‘realista’ ou ‘fantástico’ de um enredo que traça a linha fronteiriça</p><p>entre realidade e ficção. (LLOSA, 2003:14)</p><p>Sobre humanos e máquinas na ficção cinematográfica</p><p>O estudo de algumas obras cinematográficas, vinculadas ao gênero da ficção</p><p>científica, podem revelar reflexões sobre a cultura contemporânea, provocando algumas</p><p>perguntas sem respostas que acompanham a humanidade em temporalidades diversas.</p><p>Nesse sentido, os textos literários e as produções fílmicas podem formular indagações</p><p>inquietantes sobre a origem do Homem e do mundo conhecido, sobre o desejo da</p><p>eternidade, sobre a criação de outros seres ou, ainda, sobre as proposições de um mundo</p><p>utópico. As telas do cinema aguçam o imaginário social, sobre a potência das</p><p>inteligências artificiais e, cria-se por um lado especulações fantasiosas que se mesclam</p><p>ao real e ao virtual, mas que revelam o avanço da tecnologia na área da automação.</p><p>52</p><p>A estudiosa de Teresa López-Pellisa, em sua obra Patologías de la realidad virtual:</p><p>cibercultura y ciencia ficción (2015) cria uma denominação para um elemento recorrente</p><p>em certas obras de ficção cientifica, trata-se, segundo a autora, da “síndrome de pandora”.</p><p>Essa ideia remete a presença dos mitos de Pigmaleão e Galatea e da figura de Narciso. A</p><p>autora observa que o surgimento de uma mulher criada para agradar o seu criador retoma</p><p>uma discussão a respeito da criação dos simulacros que, por sua vez, mantem estreita</p><p>sintonia com o desejo de manipular a vida, de controlar o destino, as relações</p><p>sentimentais, o sexo e a reprodução. A literatura e o cinema têm proposto a discussão</p><p>sobre a humanização da máquina que, levada aos extremos, conduziria justamente a</p><p>desumanização dos sujeitos. Movimento contraditório e singular, que parece permear as</p><p>experiências virtuais no universo da arte.</p><p>Simulacros presentes nos filmes: “Eu, Robô e Ex Maquina”</p><p>Os aspectos tratados sobre mente-máquina em ambos os filmes simulam a</p><p>personalidade humana presente nas produções de Inteligência artificial (AI), propondo a</p><p>reflexão sobre até que ponto uma máquina se tornaria de fato humana. Nesse sentido, o</p><p>que de fato diferencia o humano das maquinas?</p><p>Esse questionamento apela para a problemática que se pretende tratar: seria</p><p>possível uma máquina programada para obter o máximo de informação, podendo até</p><p>mesmo ser capaz de detectar e corrigir erros, adquirir características e sentimentos</p><p>tipicamente humanos?</p><p>A intenção é pensar nos avanços e nas inovações tecnológicas que prometem</p><p>máquinas sofisticadas, inteligentes, que gerenciam a segurança das casas, controlam a</p><p>temperatura ambiente, a iluminação, realizam o trabalho braçal, desde a agricultura até</p><p>centros urbanos. Máquinas que preveem calamidades, espionam, calculam e controlam o</p><p>ir e vir dos humanos, o que estes fazem ou pretendem fazer, e detectam toda a</p><p>comunicação e relacionamentos interpessoais.</p><p>Se por um lado resolvem grandes problemas da humanidade, por outro será que</p><p>os humanos não seriam controlados por eles? Certa vez escreveu Asimov: “as fábricas do</p><p>futuro vão precisar apenas de um homem e de um cão. O homem para alimentar o cão e</p><p>o cão para não deixar os homens se aproximarem das máquinas”</p><p>As previsões científicas apontam para um futuro tecnológico em que</p><p>computadores serão cada vez mais capazes de armazenar dados e informações de forma</p><p>ilimitada e com potencial para realização de tarefas</p><p>cada vez mais complexas.</p><p>53</p><p>Nesse sentido cabe, mais uma vez, voltarmos nosso olhar para o ser humano e</p><p>para a sua inteligência que é capaz de criar as máquinas. Apesar da ambição inicial de</p><p>ampliar técnicas robóticas destinadas a realidade industrial, surge também o desejo de</p><p>criar um semelhante, algo que lhe seja igual, que lhe sirva e tenha capacidades cognitivas</p><p>unidas a tecnologia.</p><p>O termo robô teve origem na palavra checa robota, que significa</p><p>"trabalho forçado". O robô que há décadas permeia o imaginário</p><p>coletivo teve sua representação numa peça do dramaturgo Karel Capec,</p><p>na qual existia um autômato com forma humana, capaz de fazer tudo</p><p>em lugar do homem. A partir daí, passou a ser encarado como um</p><p>dispositivo autônomo ou semiautônomo que serviria para realiza</p><p>trabalhos de acordo com o controle do homem. Nessa via, os sentidos</p><p>de robô se ligam originalmente a máquinas mecânicas ou eletrônicas</p><p>que, algumas vezes, assume formas similares a humana, estando, em</p><p>sua gênese, dissociadas de sentimentos, afetos, sensações, dores,</p><p>intuições, entre outros (ROSÁRIO e AGUIAR, 2006)</p><p>Ainda não se conseguiu aperfeiçoar mecanismos como emoções e sentimentos</p><p>próprio da espécie humana para tais máquinas já inventadas. No entanto, a ficção</p><p>cientifica tem projetado inúmeros questionamentos sobre as consequências desta possível</p><p>criação futura.</p><p>No filme Eu robô, alguns simulacros são exibidos como o livre-arbítrio, a</p><p>criatividade, a existência da alma, a percepção e a consciência dentre outras simulações</p><p>pelas quais a máquina experimenta. O robô protagonista demostra sentimento, desejo,</p><p>afeto e valores que revelam subjetividades próprias do ser humano. O robô é criado para</p><p>ser livre.</p><p>O ano ficcional é 2035 e o detetive que investiga o suicídio ou assassinato do Dr.</p><p>Alfred Lanning (o cientista criador dos robôs) se apresenta pré-disposto a não tolerar tais</p><p>maquinas. Sonny é um dos robôs que é “capaz de sonhar” e foi criado para “guardar</p><p>segredos”; questiona sua própria identidade ao dizer: quem sou eu? Ele se torna alvo de</p><p>busca por ser suspeito do crime. As respostas que o robô diz, quando questionado, são</p><p>inusitadas para uma máquina. Ele responde que fugiu pois sentiu medo. Ele chama o seu</p><p>criador de ‘pai’.</p><p>Tal contexto fílmico nos remete ao mito de Frankenstein, o qual é passível de</p><p>múltiplas leituras pelo romance de Mary Shelley, que se concentra no monstro criado pelo</p><p>Dr. Victor Frankenstein, um cientista e pai-criador. A figura de Victor Frankenstein pode</p><p>também estar associada ao mito de Prometeu, mas o romance “consegue equilibrar</p><p>54</p><p>perspectivas contraditórias da natureza humana dentro de uma história. Frankenstein, o</p><p>personagem central, é tanto herói quanto pecador; a sua criação é tanto feito grandioso</p><p>quanto um crime hediondo” (HITCHCOK, 2010, p. 18)</p><p>O filme demostra que Sonny desenvolve pensamento e linguagem, desejo de</p><p>aprendizagem, noções do eu e do outro e, desejo de ser livre: caraterísticas humanas.</p><p>Já no filme Ex Machina o homem cria robôs femininas. Faz o receptor associar o</p><p>roteiro ao mito de Galatéia. Esse mito grego foi escrito por Ovídio em seu livro</p><p>Metamorphoses, por ocasião de seu exílio por volta do ano 8 a. C. Ovídio conta histórias</p><p>de transfiguração, de deuses e de homens, entre ficção e realidade, e nos apresenta</p><p>Pigmaleão, um homem culto e importante em Chipre e que também era escultor. Certa</p><p>vez imaginou em lavrar na pedra o corpo de uma mulher perfeita. Ao terminar à obra,</p><p>percebeu que esta se parecia com Vênus, considerada pelos antigos gregos e romanos</p><p>como a deusa do erotismo, da beleza e do amor. Pigmaleão, apaixonou-se perdidamente</p><p>pela pedra.</p><p>Na mitologia tudo ganha vida de tanto significar, tudo é simbólico, quer as</p><p>esfinges, quimeras, medusas e górgonas. O episódio de Pigmaleão é um dos tantos</p><p>exemplos que ilustram bem esse jogo entre desejo e representação do desejo, quando trata</p><p>de tentar encontrar um significado para o mito. Pigmaleão toma posse do mármore e,</p><p>como artista, ele imagina, esboça, dá forma. Faz surgir da pedra bruta um corpo de mulher</p><p>nua, bela e delicada como uma deusa (padrão de beleza clássica grega). Ocorre</p><p>imediatamente uma dinâmica pulsional do personagem que se vê apaixonado pela</p><p>presença corporal de Galatéia (nome que fora dado à escultura de pedra). O que gera</p><p>angústia no artista é o corpo criado que se encontra passivo, petrificado, não responde,</p><p>não age, não move. É inerte e submisso, e do seu amor, estão excluídas qualquer</p><p>satisfação física. Para Pigmaleão, resta o olhar que contempla. Contemplar é uma</p><p>modalidade de satisfação que o leva à fixação interna e duradoura, até que a deusa Vênus</p><p>concede vida à imagem criada e Pigmaleão se casa com sua própria criação e tem uma</p><p>filha com ela, a qual chamam Pafos.</p><p>A criação de robôs femininas no filme faz o espectador confundir as distinções</p><p>entre humanos e máquina e embaralha a noção do que é humano e do que é artificial.</p><p>Nathan constrói Ava com expressões e linguagens corporais realistas, e Caleb é</p><p>convidado a testar e avaliar não somente a capacidade de comunicação de Ava, mas se</p><p>55</p><p>ela possui uma consciência de si e do mundo e, se simula bem o comportamento humano</p><p>para além da comunicação.</p><p>“Tentar diferenciar entre simulação e realidade, é o Teste de Turing que você quer</p><p>que eu faça". Essa frase do filme aponta para um teste não ficcional que foi criado em</p><p>1950 pelo matemático Alan Turing que publicou um artigo questionando o fato se as</p><p>máquinas poderiam ou não pensar. Hoje em dia o texto que aplicado se chama teste de</p><p>Turing que busca diferenciar computadores e humanos. No filme Ava interage com Caleb</p><p>em várias sessões. Primeiramente conversam e o excesso de perguntas incomodada Ava</p><p>que deseja em troca, conhecer Caleb. Nas conversas Ava demostra sentimentos</p><p>complexos como raiva, tristeza, empatia e até mesmo brinca simulando zombar de Caleb,</p><p>o que o surpreende ao ponto deste reconhece: “é a melhor indicação de inteligência</p><p>artificial que eu vi até agora”.</p><p>O filme vai desenvolvendo um roteiro que aponta para uma máquina que possui</p><p>pensamento e desejo de seduzir Caleb e, de ser mais feminina ao colocar um vestido e</p><p>uma peruca, e esconder as partes metálicas de seu corpo. Ela tem conhecimento, mas não</p><p>experiência subjetiva de vida prática, por isso Caleb deseja que ela saia da prisão em que</p><p>vive. Nathan revela a Caleb que Ava foi programada para escapar dali, usando todos os</p><p>recursos humanos possíveis inclusive a sedução e isso de fato acontece, depois que Ava</p><p>mata seu criador.</p><p>A provocação proposta no filme sobre a possibilidade de haver ou não consciência</p><p>em máquinas permanece no imaginário coletivo social e ficcional.</p><p>Cabe, no entanto, valorizar algo humano que é especial e peculiar e diz respeito a</p><p>nossa biologia. Não há software sofisticado capaz de produzir consciência ou fenômenos</p><p>biológicos tipicamente humanos. No entanto, em ambos os filmes é interessante observar</p><p>como os robôs, quer sejam masculinos ou femininos, se assemelham aos personagens dos</p><p>mitos, os quais representavam um princípio integrador e sagrado para o homem antigo, e</p><p>podem nos dizer muito acerca da natureza humana. O cinema traz essa potência, dentro</p><p>da ideia da palavra narrada, visualizada e auditiva, plena de efeitos, e com o roteiro como</p><p>elemento de alto poder poético que reflete questões sobre o jogo simbólico e de</p><p>simulações.</p><p>Considerações finais</p><p>O desenvolvimento tecnológico possibilita, dentre tantos avanços, o despertar</p><p>criativo e o pretexto para o estímulo da imaginação. Autores de ficção cientifica se</p><p>56</p><p>baseiam em questões emblemáticas para escrever ou levar para as telas do cinema</p><p>assuntos instigantes como a criação de inteligências artificiais capazes de humanizar-se.</p><p>Os robôs se tornaram alvos de grande interesse e curiosidade, especialmente</p><p>quando vivenciam a rotina da vida,</p><p>juntamente com as pessoas comuns em meio a</p><p>sociedade, por isso, os roteiros cinematográficos alimentam o imaginário cultural.</p><p>Os filmes: Eu, robô e Ex Machina sutilmente revelam algumas questões humanas</p><p>que podem estar presentes nas máquinas, como as escolhas que fazemos quando levamos</p><p>em conta a moral e as escolhas que as máquinas fazem, as quais se baseiam no fato de</p><p>serem programadas através de cálculos de probabilidades.</p><p>O agir com ética, a consciência, a linguagem e pensamento, o espírito, alma e</p><p>corpo e toda a complexidade de Ser Humano é tão fascinante que ousamos dizer o</p><p>contrário: ao invés da tecnologia seduzir o enredo fílmico, é o humano a beleza maior que</p><p>torna possível muitas histórias e roteiros.</p><p>Este trabalho não tem a pretensão de esgotar tais assuntos que foram esboçados,</p><p>mas lança luz no fato de que a criatividade de inúmeros roteiristas ainda serão aguçadas</p><p>e visibilizadas nas telas, graças a influência mutua homem-máquina, pois essa parceria</p><p>temática pode aquecer a criatividade e alimentar a imaginação tanto de cientistas como</p><p>de autores e diretores.</p><p>Referências</p><p>ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. 2ª Edição. Tradução de Luiz Horácio da Matta. Rio de janeiro:</p><p>Ediouro, 2004.</p><p>HITCHCOCK, S. T. Frankenstein: as muitas faces de um monstro. Trad. de Henrique A. R.</p><p>Monteiro. São Paulo: Larousse, 2010.</p><p>LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo – SP. Ed. Arx, 2004.</p><p>LÓPEZ-PELLIZA, T. Patologías de la realidad virtual: cibercultura y ciencia ficción. Madrid</p><p>FCE, 2015.</p><p>ROSÁRIO, Nísia Martins do; AGUIAR, Lisiane Machdado. A configuração da subjetividade</p><p>robótica pelo olhar cinematográfico. Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos.</p><p>Disponível em: http://intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1299-1.pdf. Acesso em:</p><p>05/10/2017.</p><p>http://intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1299-1.pdf</p><p>http://intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1299-1.pdf</p><p>57</p><p>O imaginário feminino transgressor de Hayao Miyazaki versus o</p><p>mercado de animação40</p><p>Hayao Miyazaki's transgressive female imaginary versus the animation market</p><p>Lilia Nogueira Calcagno Horta41</p><p>Rachel Nogueira Calcagno Horta 42</p><p>Resumo: A companhia Walt Disney, conhecida pelo pioneirismo no campo da animação,</p><p>foi responsável por grande parte da formulação dos princípios de longa-metragem</p><p>animados. Esse novo modelo linha de produção serviu de exemplo para diversos estúdios</p><p>estrangeiros bem como seus enredos, que serviram como base para desenvolvimento do</p><p>imaginário social a respeito do comportamento ou características específicas dos</p><p>indivíduos, principalmente no que se refere à suas personagens femininas - são belas,</p><p>delicadas e muitas vezes passivas-. A maioria das produções culturais voltadas ao</p><p>entretenimento tendem a seguir esse mesmo padrão da companhia americana, ao invés de</p><p>atentar-se para a provocação de questionamentos a respeito da sociedade em seus</p><p>espectadores. A falta de tempo e a produção em grandes escalas contribuem para que os</p><p>conteúdos fílmicos se comprimam em um fluxo exaustivo e vazio no qual é raro encontrar</p><p>alguma produção que destoe desses princípios, o que também ocorre no Japão. Entretanto</p><p>há exceções. Hayao Miyazaki, diretor de animação, fundador do Estúdio Ghibli e diretor</p><p>do filme japonês com o maior ranking de bilheteria de todos os tempos no Japão, é</p><p>responsável não só pela criação de heroínas, mas enredos que contêm mulheres fortes,</p><p>inteligentes e independentes, tanto principais quanto coadjuvantes, promovendo</p><p>pensamentos críticos referentes ao papel das mulheres. Este artigo tem como objetivo</p><p>traçar um argumento crítico em relação às produções culturais do ramo da animação e as</p><p>obras de Hayao Miyazaki, dando ênfase nas questões relacionadas às personagens</p><p>femininas abordadas nos enredos do diretor. Para tal, utilizaremos autores como Azuma,</p><p>Barbosa Júnior, Coutinho, Horta, Martel e o próprio Miyazaki para nos elucidar a respeito</p><p>do mercado de animação. Barbara Sato, Yumi dos Santos, Sasaki, Eisenstadt, Teixeira,</p><p>Neri, para discorrer a respeito das mulheres japonesas e a transgressão presente nas</p><p>representações femininas estéticas do diretor à fim de compreendermos seu imaginário</p><p>feminino.</p><p>Palavras-chave: Hayao Miyazaki; Mercado de animação; Imaginário feminino;</p><p>Transgressão.</p><p>Abstract: The Walt Disney company, known for pioneering animation, was responsible</p><p>for formulating much of animated feature films principles. This new model production</p><p>line served as an example for several foreign studios as well as their plots, which served</p><p>as a base for the development of a social imaginary regarding behaviors or specific</p><p>characteristics of individuals, especially in respect of their female characters - beautiful,</p><p>40 O artigo é um trabalho resultado da dissertação de mestrado da autora: HORTA, Lilia. Mulheres e memórias em Miyazaki: o consumo da estética híbrida e transgressora do</p><p>cinema de animação de Hayao Miyazaki. 2017. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo) - Escola Superior de Propaganda e Marketing.</p><p>41 HORTA, Lilia. Pesquisadora com estudos voltados para a obra de Miyazaki, com enfoque nas representações femininas no campo da comunicação e do consumo. Mestre em</p><p>comunicação e praticas do consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. lilia@liliahorta.com.br</p><p>42 HORTA, Rachel. Mestranda em Administração de Empresas na Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. rachelnchorta@gmail.com.</p><p>58</p><p>delicate and often passive. Most of the cultural productions entertainment-oriented tend</p><p>to follow the same pattern as the American company, rather than attempting to provoke</p><p>questions about society in its viewers. The lack of time and production at large scales</p><p>contributes to the fact that the film content is compressed into an exhaustive and empty</p><p>flow in which it is rare to find any production that departs from these principles, which</p><p>also occurs in Japan. However there are exceptions. Hayao Miyazaki, director of</p><p>animation, founder of Ghibli Studio and director of the Japanese film with the highest</p><p>box office ranking ever in Japan, is responsible for, not only, the creation of heroines, but</p><p>plots that contain strong, intelligent and independent women, promoting critical thoughts</p><p>about the women role. This article aims to draw a critical argument about cultural</p><p>productions from the animation market and Hayao Miyazaki’s works, emphasizing</p><p>questions related to the female characters addressed in the director's movies. To do this,</p><p>we will use authors such as Azuma, Barbosa Júnior, Coutinho, Horta, Martel and</p><p>Myiazaki himself to elucidate us about the animation market. Barbara Sato, Yumi dos</p><p>Santos, Sasaki, Eisenstadt, Teixeira, Neri, to discuss japanese women and the</p><p>transgression in the female representations aesthetic of the director in order to</p><p>understand his feminine imaginary.</p><p>Key words: Hayao Miyazaki; Animation; Female imaginary; Transgression.</p><p>O mercado de animação e o esvaziamento de conteúdos</p><p>Produções culturais do entretenimento seguem padrões estabelecidos pelo</p><p>mercado. Os estilos e tendências são exaltados, perdendo os possíveis questionamentos e</p><p>críticas dos espectadores sobre a sociedade em que se vive.</p><p>A produção em grande escala advinda da revolução industrial, afetou também o</p><p>mercado de animação. Para Coutinho (2016), a partir de 1980 a fase de crescimento</p><p>mundial contínuo difundiu bens e serviços do complexo eletrônico preenchendo as</p><p>condições econômicas schumpeterianas43, produzindo para o autor, um verdadeiro</p><p>vendaval de destruição criativa.</p><p>Devido a expansão do complexo eletrônico nos anos 90, Coutinho (2016)</p><p>designou sete tendências da inovação na economia capitalista. Dentre elas uma das mais</p><p>importantes foi a do aprofundamento da internacionalização. Para o autor, essa tendência</p><p>permitiu que a relação entre</p><p>os países funcionasse em crescente interdependência e fez</p><p>com que ocorresse a queda generalizada das barreiras econômicas, proporcionando</p><p>abertura das nações para investimentos e mistura de culturas, como aconteceu com a</p><p>produção cultural japonesa. O país passou a adotar medidas para aprimorar seu mercado:</p><p>43 Josephe Schumpeter autor seminal da Teoria do Desenvolvimento Econômico, 1934. O termo fala sobre as condições que o autor defende para a inovação disruptiva alavancar</p><p>a economia.</p><p>59</p><p>[…] o Japão constatou que seu mercado interno estava saturado, e</p><p>acontece que o país precisava investir e inovar para se desenvolver, ao</p><p>passo que sua economia estagnava[...]. Assim foi que adotou, no início</p><p>da década de 1990, uma nova estratégia, consistindo em reafirmar sua</p><p>identidade asiática – uma estratégia batizada de “Retorno à Ásia”.</p><p>(MARTEL, 2012, p. 244)</p><p>Com a globalização, a nação nipônica foi influenciada pelo ocidente nas mais</p><p>diversas áreas, inclusive no mercado de animação. A Walt Disney Company (companhia</p><p>americana), reconhecida por seu pioneirismo na animação foi responsável pela</p><p>serialização e normatização do mercado da animação, através de suas descobertas</p><p>técnicas e formulação de princípios tradicionais. Industrializou e subdividiu seus produtos</p><p>culturais, criando mais cargos para profissionais do ramo, tornando-se um modelo de</p><p>empresa para os estúdios estrangeiros. (BARBOSA JÚNIOR, 2005; MARTEL, 2012).</p><p>Apesar de adorar diversas técnicas da companhia americana, o Japão, decidiu</p><p>seguir com uma estética diversificada, propriamente nipônica - como apontada por Martel</p><p>(2012). Podemos citar, por exemplo, o incentivo às animações que continham somente</p><p>oito desenhos por segundos e os animes - Azuma (2009). A estratégia permitiu que o pais</p><p>se recuperasse em relação ao isolamento mercadológico cultural.</p><p>O governo passou a incentivar produções culturais que incluíam valores</p><p>tradicionais orientais frente aos discrepantes morais do ocidente. Porém mesmo</p><p>possuindo essa estética própria, os japoneses caíram no fluxo da serialização e também</p><p>comprimiram seus conteúdos em prol da grande demanda dinâmica do mercado.</p><p>(HORTA, 2017)</p><p>Ao contraste das produções do mercado de animação, Hayao Miyazaki, diretor de</p><p>arte e animação, fundador do Estúdio Ghibli, é responsável por filmes que contrariam</p><p>regras do mercado, mas que mesmo assim possui sucesso no ramo:</p><p>Em uma lista de empresas produtoras de animês contendo longas-</p><p>metragens com o maior faturamento de bilheteria em proporções</p><p>mundiais, dentre três primeiros filmes estão: A Viagem de Chihiro</p><p>(2001), O Castelo Animado (2004) e Ponyo: Uma Amizade que Veio</p><p>do Mar (2008), do Estúdio Ghibli, arrecadando, respectivamente,</p><p>$274,925,095, $235,184,110 e $201,750,93732. [...] Na escala</p><p>doméstica, o filme A Viagem de Chihiro (2001), é o filme (não apenas</p><p>animação) com maior bilheteria de todos os tempos – contando com</p><p>faturamentos estrangeiros. (HORTA, 2017)</p><p>Com uma visão crítica a respeito da serialização e linhas de produção de filmes</p><p>animados, o diretor chega a falar em seu livro Starting Point de 1996, que o motivo dos</p><p>excessos de produções vem da receita da indústria do entretenimento.</p><p>60</p><p>A grande diferença entre as produções se encontra na prioridade dos estúdios,</p><p>como exemplo Hayao utiliza de técnicas manuais, conceitua personagens femininas e cria</p><p>enredos significativos, com cenas longas e vazias, o que é totalmente distinto à Disney e</p><p>algumas produções do próprio mercado japonês, que prezam por uma história concisa e</p><p>não muito diferente de um filme para o outro, sendo categorizadas para o diretor como</p><p>apenas business:</p><p>Temos uma palavra para isso em japonês. É ma. Vazio. Está lá</p><p>intencionalmente. [O diretor bate palmas] O tempo entre as minhas</p><p>palmas é o ma. Se você apenas tem a ação corrida, sem parar com</p><p>nenhum espaço de respiração em tudo, aí, é o que você faz é apenas</p><p>busyness [negócios]. (MIYAZAKI, 2002).</p><p>A mercantilização dos produtos da Disney debilita a criatividade, reduzindo seus</p><p>enredos a uma formula que não pode ser rejeita pela indústria e seus espectadores. Os</p><p>cinemas precisam estar lotados. As produções culturais não possuem tanto sentido quanto</p><p>deseja um criador/diretor. A arte de criar uma crítica social está em segundo plano, já que</p><p>a lucratividade é essencial e preponderante a qualquer situação.</p><p>Estamos vivendo em uma sociedade que é rica, porém pobre. Nós</p><p>somos capazes de ouvir grandes quantidades de música e um grande</p><p>número de vídeos. Entretanto, apenas uma pequena fração destes</p><p>consegue nos mover 44. (MIYAZAKI, 1996, p. 51, tradução nossa)</p><p>Desta maneira interpreta-se que não adianta introduzir técnicas avançadas e</p><p>industrializar o campo da animação – como exemplo da Disney -, se os produtores não</p><p>entenderem o sentido pelo qual seus filmes são fabricados e o público à qual se destina.</p><p>As películas se tornam cópias frívolas umas das outras e o papel de transmitir a mensagem</p><p>se desloca para segundo plano, ou se vê anulado, servindo apenas como mero</p><p>entretenimento.</p><p>Três personagens e um imaginário feminino transgressor</p><p>A companhia Disney além de servir como modelo de empresa para as produtoras</p><p>de filmes de animação do mercado em âmbito mundial (BARBOSA JÚNIOR, 2005),</p><p>também construiu através de seus enredos a base para desenvolver o imaginário social a</p><p>respeito do comportamento ou características específicas dos indivíduos, principalmente</p><p>no que se refere as personagens femininas.</p><p>44 We are now living in a society that is wealthy yet poverty-stricken. We are able to listen to large amount of music and a large numbers of videos. But only a small fraction of</p><p>these move us.</p><p>61</p><p>Suas personagens femininas são conhecidas por traços delicados que exaltam sua</p><p>beleza e majoritariamente - com exceções para filmes mais recentes como Valente (2012)</p><p>e Frozen: uma aventura congelante (2013) dentre outros – são limitadas a serem salvas</p><p>por um príncipe encantado.</p><p>Já nas produções culturais japonesas podemos observar esse viés romantizado da</p><p>figura feminina dialogando com o papel social construído em torno das mulheres orientais</p><p>que, segundo Barbara Sato (2003), são identificadas como particularmente dóceis e</p><p>orientadas para a família. Entretanto, em contrapartida, existem os modelos sexualizados</p><p>e vulgarizados, onde mulheres aparecem com suas partes do corpo expostas, se tornando</p><p>uma espécie de objeto de desejo masculino.</p><p>Miyazaki consegue se desvencilhar desses dois modelos ao retratar a mulher sem</p><p>vulgariza-la ou romantiza-la, dotando-as de múltiplas características, com dúvidas,</p><p>ambiguidades, construindo-as de maneira tão complexa como mulheres da vida real.</p><p>Tolhe-se os clichês e aniquila-se maniqueísmos.</p><p>A partir dos filmes roteirizados e dirigidos pelo diretor, foram escolhidos três</p><p>exemplos femininos para demonstrar o imaginário transgressor construído através de suas</p><p>personagens femininas. As personagens são Ponyo e Lisa do filme Ponyo: Uma Amizade</p><p>que Veio do Mar (2006), e Yubaba, de A Viagem de Chihiro (2001), respectivamente</p><p>uma criança, uma adulta e uma idosa. Essa escolha permite abranger, mesmo que de</p><p>maneira reduzida o leque de variedade das personagens e fases da vida retratadas por</p><p>Miyazaki.</p><p>Lisa</p><p>Lisa é a mãe de Sōsuke, um garotinho de 5 anos, no filme Ponyo: Uma Amizade</p><p>que Veio do Mar (2006). A personagem é casada, porém seu marido está quase sempre</p><p>ausente e passa pouco tempo com sua família, deixando-a com a responsabilidade de criar</p><p>seu filho sozinha. Além de cuidar da casa e do filho, a protagonista também trabalha</p><p>integralmente em um asilo, cuidando de idosos.</p><p>O fato de Lisa trabalhar em tempo integral, o que a retiraria de uma esfera</p><p>doméstica, forçando-a a frequentar novos lugares, lugares urbanos, subverte a noção de</p><p>que,</p><p>por norma, a mulher deveria casar-se e cuidar do lar integralmente. Tal filosofia</p><p>implantada pelo sistema familiar patriarcal fora consolidada na modernização japonesa,</p><p>mais especificamente na era Meiji (1868-1912). De acordo com Barbara Sato (2003), esse</p><p>período tinha como base ideológica a frase “boa esposa e mãe sábia” e possuía um código</p><p>62</p><p>civil que trabalhava em favor do homem, fornecendo proteção limitada para as mulheres</p><p>em arenas sociais e domésticas. Para enfatizar tal espírito que pairava sobre as mulheres</p><p>nesta época, Sato (2003, p. 83, tradução nossa) cita uma frase do historiador e estudioso</p><p>de mulheres, William Chafe, afirmando que “o papel de mãe e dona de casa representava</p><p>o único caminho para a realização feminina”</p><p>O sistema familiar do período Meiji, apesar de dissolvido, permaneceu em vigor</p><p>como base de entendimento dos japoneses a respeito da família, como memória. As</p><p>mudanças entre as datas 1945 e 1975, no período pós-guerra, continuaram a favorecer as</p><p>esposas que trabalhavam exclusivamente em seus respectivos lares. “Segundo o sistema</p><p>tributário japonês, caso a mulher possua uma renda anual de mais de 1.030.000 ienes</p><p>(aproximadamente 10.000 dólares), o casal perderá a isenção de dependente e será</p><p>retirado o salário família do marido.” (SANTOS, 2008, p. 55). Desta forma, o Estado</p><p>corrobora para que a mulher permaneça ainda em ambiente doméstico. Outro exemplo</p><p>que a autora Yumi dos Santos (2008, p. 55) fornece é:</p><p>No sistema de pensões, com o qual todos os japoneses têm</p><p>obrigatoriedade de contribuir, a dona de casa que possui uma renda</p><p>inferior a 1.300.000 ienes (ou aproximadamente 13.000 dólares) por</p><p>ano goza de isenção, sem, por isso, perder o direito de beneficiar-se da</p><p>aposentadoria, do seguro de saúde e da pensão de viuvez.</p><p>Entende-se, assim, que as leis compelem barreiras entre as mulheres e a</p><p>independência econômica, já que as donas de casa são privilegiadas e em contrapartida a</p><p>mulher trabalhadora deve controlar constantemente seus ganhos para que não extrapolem</p><p>o teto salarial permitido, o que muitas vezes as fazem optar por conseguir um emprego</p><p>somente em período parcial.</p><p>Além de ser retratada como uma trabalhadora árdua, Lisa, -desconstruindo a ideia</p><p>de que as mulheres devem apenas cuidar da casa-, também não possui características que</p><p>se esperam de uma mãe: prudência, serenidade, calma e doçura.</p><p>Sua personalidade é forte. No filme, ela é vista assumindo vários riscos, o diretor</p><p>a retrata como uma mulher muito corajosa chegando até a beirar o limite de imprudência,</p><p>como por exemplo, quando a personagem encontra um obstáculo no caminho do trabalho</p><p>para sua casa durante uma tempestade terrível e mesmo sendo alertada para não</p><p>atravessar, ela o faz, ou quando ela deixa seu filho de cinco anos sozinho em casa para</p><p>resolver outros problemas.</p><p>63</p><p>A relação mãe-filho também é demonstrada de maneira inusitada, é estabelecida</p><p>linearmente. A personagem possui confiança plena em seu filho. Apesar de ele possuir</p><p>apenas cinco anos de idade, as decisões que são tomadas por ele são acolhidas. No filme</p><p>os dois acatam as decisões um do outro esperando o melhor, além da demonstração</p><p>constante de afeição e carinho demonstrada de forma saudável.</p><p>Miyazaki nos mostra, com a personagem Lisa, que a mãe pode sim ser amiga de</p><p>seu filho, trabalhar tempo integral, ter atitudes fortes e impulsivas consideradas</p><p>imprudentes, se ela achar que isso é a decisão mais correta de se fazer.</p><p>Ponyo</p><p>Ponyo inicia o filme em forma de peixe e, no decorrer da trama, transforma-se em</p><p>humana, após tomar uma poção escondida em uma sala da casa de seu pai Fujimoto, no</p><p>oceano. O motivo de se transformar em garota é devido ao fato de ter conhecido Sōsuke,</p><p>um menino de 5 anos, por quem havia se apaixonado à primeira vista. Entretanto, para se</p><p>tornar humana por completo, Ponyo deveria encontrar o verdadeiro amor e largar a magia</p><p>para sempre; caso contrário, se esse amor não fosse verdadeiro, ela viraria espuma do</p><p>mar.</p><p>A curiosidade de Ponyo a leva à sua aventura, desrespeitando as normas do pai</p><p>que proibiam a garota de fazer contato com os humanos. Para ele, todos dessa espécie</p><p>eram considerados perigosos. Ao chegar à superfície do mar, ela segue em direção à praia</p><p>e consequentemente encontra os “perigosos” humanos, aquela espécie sobre a qual seu</p><p>pai havia lhe advertido. Porém, a peixinha acaba se encantando por eles, em especial</p><p>Sōsuke, que desperta algo nela que alterará o rumo de sua vida para sempre.</p><p>Esse caráter inconformista, desobediente, que desrespeita regras e deseja seguir</p><p>apenas suas próprias vontades, confere à personagem algo um pouco distante dos valores</p><p>impregnados na fundação da sociedade japonesa. Ao desrespeitar seu pai, Ponyo quebra</p><p>o senso de hierarquia e também de coletividade, pois está pensando apenas em seus</p><p>desejos individuais.</p><p>Conforme os estudos de Elisa Sasaki (2011), valores como harmonia,</p><p>coletividade, hierarquia, respeito aos mais velhos e outros que ainda se encontram na</p><p>sociedade japonesa, foram construídos no decorrer da história do país e incorporados</p><p>pelos governantes ao longo do tempo. Em consonância com esse assunto, Eisenstadt</p><p>(2010, p. 19), afirma que:</p><p>64</p><p>O cerne dessa concepção de identidade coletiva se cristalizou relativamente cedo,</p><p>provavelmente no século VIII, advindo do encontro do Japão com outras sociedades e</p><p>civilizações (budismo e confucionismo) – especialmente axiais – e suas premissas</p><p>universalistas.</p><p>Desta forma, podemos compreender que a filosofia confucionista e a religião</p><p>budista por tanto foram extremamente importantes para a criação da identidade coletiva</p><p>japonesa, e noções de valores, principalmente em relação à coletividade.</p><p>Segundo os estudos de Sasaki (2011, p. 14), “Confúcio acreditava que a ordem</p><p>social ideal deveria ser alcançada não pela execução da lei, mas pelo exemplo moral dos</p><p>que tinham autoridade”. Desta forma, entendemos que a sociedade deveria se organizar</p><p>em um sistema que implica certa obediência perante todos os integrantes, funcionando</p><p>assim como algo coletivo.</p><p>Quando Ponyo desobedece a seu pai, é como se tivesse feito um ato imoral já que,</p><p>segundo Sasaki (2011, p. 14), “a fonte da moralidade de cada indivíduo estava na piedade</p><p>filial, o respeito e obediência de uma criança em relação aos seus pais, do subordinado ao</p><p>seu superior, isto é, respeito e obediência à hierarquia”.</p><p>Perante o confucionismo e o budismo, o senso de hierarquia deve ser respeitado.</p><p>O pai da personagem, por ser mais velho que ela e do sexo masculino, encontra-se acima</p><p>dela na cadeia de obediência e, portanto, saberia o que é melhor para sua filha, mesmo</p><p>que a vontade pessoal de Ponyo fosse contrária ao posicionamento dele.</p><p>Com a obra, especialmente com essa personagem, Miyazaki demonstra que,</p><p>mesmo sendo criança, pode-se ser capaz de fazer escolhas, assumir riscos e entender as</p><p>consequências. Desta forma, Ponyo quebra esse halo protetor entre pai e filha, ao tomar</p><p>sua decisão sozinha.</p><p>O importante é viver em harmonia, em paz consigo mesmo e com as pessoas ao</p><p>seu redor, mesmo que para isso você tenha que quebrar algumas regras. Apesar da pouca</p><p>idade ou de parecer egoísta, sua atitude extrapolou para além do próprio beneficio, pois</p><p>com o laço que cria com Sōsuke, ela une duas espécies que antes se viam como inimigas:</p><p>os animais marinhos e os seres humanos.</p><p>Yubaba</p><p>Envelhecer no Japão é um processo natural. Ser velho é sinônimo de sabedoria e</p><p>conhecimento em todas as áreas. Uma pesquisa fora realizada em 2006 com o intuito de</p><p>65</p><p>saber o que os japoneses entendiam como o “sucesso na velhice”. Quatro cidades</p><p>japonesas foram entrevistadas, totalizando um número de 5.207 idosos entrevistados.</p><p>A pesquisa teve como resultado positivo do questionário para questões referentes</p><p>a um âmbito coletivo em especial atenção com famílias, amigos e saúde:</p><p>Os itens importantes para os idosos japoneses foram: saúde até a morte,</p><p>satisfação com a vida, hereditariedade, atenção dos amigos e familiares,</p><p>ajustes às mudanças associadas ao envelhecimento, capacidade de</p><p>autocuidado até próximo da morte e não ter doenças crônicas.</p><p>(TEIXEIRA; NERI, 2008, p. 89).</p><p>Já os itens que foram rejeitados estavam todos associados a uma esfera individual,</p><p>por exemplo: satisfação das necessidades próprias, não sentir solidão, sentir-se bem</p><p>consigo mesmo, agir conforme valores próprios. Os valores culturais dos japoneses</p><p>idosos, portanto são referentes à valorização e à harmonia entre eles mesmos e o próximo,</p><p>deixando de lado os valores pessoais propriamente ditos. A esse respeito, podemos inferir</p><p>que a velhice modelo para os japoneses é tangida pela busca da iluminação pessoal</p><p>considerando a harmonia e boa convivência com as pessoas ao seu redor. Olhando sempre</p><p>para a esfera individuo – grupo, e não somente para quesitos pessoais, alcançando</p><p>serenidade, tranquilidade e confiança para lidar com as questões que a vida lhes traz.</p><p>A personagem escolhida para demonstrar a quebra para com o que se espera de</p><p>uma mulher idosa japonesa fora a personagem Yubaba antagonista principal do filme A</p><p>Viagem de Chihiro (2001). Não se espera de uma senhora velha que ela seja mãe a essa</p><p>altura da vida – devido à infertilidade da mulher 45 –, nem que ela tome atitudes que visem</p><p>apenas o próprio bem, considerado egoísta e ganancioso, nem que ela aparente ter alguma</p><p>forma de insegurança, e a personagem rompe com todos esses aspectos.</p><p>Yubaba é dona da casa de banhos e coordena inúmeros funcionários; entretanto,</p><p>não hesita em demonstrar seu poder. Sem dúvida ela é uma personagem sábia, como a</p><p>maioria das personagens retratadas por Miyazaki, entretanto, sua sabedoria não é voltada</p><p>para uma coletividade ou assuntos relacionados a uma harmonia em grupo, mas sim para</p><p>um desejo individual, opondo-se, assim, ao que se espera de uma senhora japonesa de</p><p>idade.</p><p>45 O climatério ou menopausa é conhecido como o encerramento da vida reprodutiva feminina é uma etapa marcante do envelhecimento feminino caracterizada pela interrupção</p><p>definitiva dos ciclos menstruais. Inicia-se entre 35 e 40 anos, estendendo-se até os 65 anos. Disponível em: . Acesso</p><p>em: 23 set. 2016.</p><p>66</p><p>A personagem também não passa de maneira alguma a impressão de serenidade;</p><p>ela se enfurece diversas vezes com as pessoas e chega até a cuspir fogo pela boca na</p><p>narrativa. Além disso, não sabe lidar com seu filho. No que tange à sabedoria em relação</p><p>à criação e educação de seu filho Boh, a personagem possui diversas falhas. Por incrível</p><p>que pareça, ela, apesar de sua fama de “má” entre seus ajudantes, demonstra extremo</p><p>apreço e amor pelo seu filho, mostrando-nos outra faceta de sua personalidade. O carinho</p><p>é tão grande que, quando ele chora, ela faz todo o possível para que ele pare de chorar,</p><p>dando para a criança presentes, guloseimas e o que tivesse ao seu alcance.</p><p>O diretor faz-nos refletir a respeito de uma “maneira outra” de ser velha. Assim,</p><p>como Yubaba, uma senhora de idade poderia sentir-se insegura consigo mesma. Apesar</p><p>de sábia, ela poderia não saber todas as respostas para as questões da vida tanto num</p><p>âmbito pessoal, quanto coletivo. Também poderia, às vezes, tomar atitudes egoístas ou</p><p>visando apenas o próprio sucesso, que não seria considerada uma pessoa má por isso.</p><p>Com a obra, percebemos que não só existe um tipo de velhice, mas vários tipos.</p><p>Devemos assim aprender como coexistir com as diferenças e não esperar um</p><p>comportamento padronizado de uma senhora idosa.</p><p>Considerações finais</p><p>Mesmo que seja difícil, há espaço no mercado de produção cultural para novas</p><p>representações que questionem e rompam com aspectos já cimentados pela sociedade,</p><p>desconstruindo imaginários solidificados, permitindo abordar novas concepções e</p><p>maneiras de ser, principalmente no que se refere à personagens femininas.</p><p>Hayao Miyazaki, conseguiu romper com varias convicções e mesmo assim</p><p>alcançou sucesso. Com esses exemplos retirados da rica obra do diretor, podemos ver que</p><p>é possível sim formular películas com personagens redondas e complexas que requeiram</p><p>e provoquem um pensamento critico a respeito de diversos questionamentos mesmo</p><p>estando inserido em um contexto mercadológico que geralmente se vê esvaziado de</p><p>conteúdo, engessado e repetitivo.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>AZUMA, Hiroki. Otaku: Japan’s database animals. Minneapolis: University of Minnesota press,</p><p>2009.</p><p>BARBOSA JÚNIOR, Alberto. Arte da Animação: Técnica e Estética Através da História. São</p><p>Paulo: Senac SP, 2005.</p><p>COUTINHO, Luciano. A terceira revolução industrial e tecnológica. As grandes tendências das</p><p>mudanças. Economia e Sociedade, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 69-87, out. 2016. ISSN 1982-3533.</p><p>67</p><p>Disponívelem:. Acesso em: 05 out. 2017.</p><p>EISENSTADT, Shmuel. Modernidade japonesa: a primeira modernidade múltipla não ocidental.</p><p>Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 1, p. 11-54, 2010. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 5 ago. 2016.</p><p>HORTA, Lilia. Mulheres e memórias em Miyazaki: o consumo da estética híbrida e transgressora</p><p>do cinema de animação de Hayao Miyazaki. 2017. 184 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação</p><p>e Práticas de Consumo) - Escola Superior de Propaganda e Marketing. Disponível em</p><p>. Acesso em: 05 out.</p><p>2017.</p><p>MARTEL, Frédéric. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro:</p><p>Civilização Brasileira, 2012.</p><p>MIYAZAKI, Hayao. HAYAO Miyazaki interview. Rogerebert.com. 12 set 2002. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 2 fev. 2016.</p><p>_________________. Starting Point. San Francisco US: VIZ Media, 1996.</p><p>SANTOS, Yumi. Mulheres chefes de família entre a autonomia e a dependência: Um estudo</p><p>comparativo entre Brasil, França e Japão. 2008. 295 f. Tese (Doutorado) – Universidade de São</p><p>Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2016.</p><p>SASAKI, Elisa. Valores culturais e sociais nipônicos. Trabalho apresentado no IV Encontro sobre</p><p>Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 1 ago. 2016.</p><p>SATO, Barbara. The New Japanese Woman: Modernity, Media, and Woman in interwar Japan.</p><p>US: Duke University Press, 2003.</p><p>TEIXEIRA, Ilka; NERI, Anita. Envelhecimento bem-sucedido: uma meta no curso da vida.</p><p>Psicol. USP, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 81-94, jan./mar. 2008. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 11 set. 2016.</p><p>Filmografia</p><p>A VIAGEM de Chihiro. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2001. 125 min.</p><p>PONYO: Uma Amizade Que Veio de Mar. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli,</p><p>2008. 101 min.</p><p>https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643306/10830</p><p>https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643306/10830</p><p>https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643306/10830</p><p>68</p><p>(R)evoluções narrativas audiovisuais</p><p>69</p><p>O consumo das narrativas na pós-modernidade e os sujeitos como</p><p>coprodutores de histórias</p><p>Literature consumption and lectors as coproducers of stories</p><p>Dora Carvalho</p><p>Resumo: Este trabalho discute os aspectos teóricos construídos por autores da pós-</p><p>modernidade, como Umberto Eco, Frédric Jameson, Paul Virilio e David Harvey,</p><p>sobre</p><p>como os sujeitos estão inseridos nas narrativas midiáticas da atualidade. Trataremos dos</p><p>efeitos que os sujeitos têm sobre a construção dos enredos sejam para livros, televisão,</p><p>cinema e internet e a maneira como os processos identitários se tornam fundamentais</p><p>quando se trata de indicar as variadas formas de consumo de diversos gêneros e</p><p>linguagens. O objetivo é delinear como a produção cultural, em escala global, de</p><p>reprodução de signos, representações, formas estéticas dão lugar a novas narrativas</p><p>sociais, que nascem da absorção de variados contextos e resultam em metanarrativas</p><p>fragmentadas e descoladas de suas paisagens originais, sem delimitações de fronteiras,</p><p>com múltiplas referências e com o local fazendo parte do global. Esse processo de</p><p>interagir com o simbólico na forma de narrativas amplifica as formações discursivas das</p><p>produções midiáticas, induzindo ao consumo de diferentes formatos de literatura. A</p><p>contextualização das condições sociais de produção cultural é parte determinante para o</p><p>entendimento de como as formas simbólicas são interpretadas e constituídas e depende</p><p>fortemente de contextos sócio-históricos específicos. É uma situação de produção</p><p>cultural, em escala global, de reprodução de signos, representações, de formas estéticas,</p><p>linguagens, gêneros e multiplataformas. Na cena midiática atual, segundo Canclini</p><p>(2008), a formação de identidade no contexto cultural e comunicacional é também uma</p><p>“co-produção”. Abre-se, então, espaço para novos agentes culturais e oferta maciça de</p><p>conteúdo. A convergência digital dos meios reorganiza os modos de acesso aos bens</p><p>culturais e as formas de comunicação, pois se apoia também no acesso a diferentes formas</p><p>culturais. É preciso lembrar ainda que a cultura dos que são vizinhos e dos que estão</p><p>distantes se sobrepõem em um emaranhado de narrativas, gerando novos textos e com</p><p>múltiplas referencias.</p><p>Palavras-chave: comunicação; consumo; narrativas; processos identitários</p><p>Abstract: This paper discusses the theoretical aspects constructed by authors of</p><p>postmodernity, such as Umberto Eco, Frédric Jameson, Paul Virilio and David Harvey,</p><p>about how subjects are inserted in current media narratives. We will deal with the effects</p><p>that the subjects have on the construction of the plots for books, television, cinema and</p><p>the internet and the way in which the identity processes become fundamental when it</p><p>comes to indicate the varied forms of consumption of diverse genres and languages. The</p><p>objective is to delineate how cultural production, on a global scale, of reproduction of</p><p>signs, representations, aesthetic forms give rise to new social narratives, born of the</p><p>absorption of diverse contexts and result in fragmented and detached metanarratives of</p><p>their original places, without delimitations and with multiple references and what is local</p><p>became part of the global. This process of interacting with the symbolic in the form of</p><p>narratives amplifies the discursive formations of the media productions, inducing the</p><p>consumption of different formats of literature. The contextualization of the social</p><p>conditions of cultural production is a determining part of the understanding of how</p><p>symbolic forms are interpreted and constituted and strongly depends on specific socio-</p><p>70</p><p>historical contexts. It is a situation of cultural production, on a global scale, of</p><p>reproduction of signs, representations, aesthetic forms, languages, genres and</p><p>multiplatforms. In the current media scene, according to Canclini, the formation of</p><p>identity in the cultural and communicational context is also a "co-production". There is</p><p>space for new cultural agents and a massive offers of content. The digital convergence of</p><p>the media reorganizes modes of access to cultural goods and forms of communication, as</p><p>it also relies on access to different cultural forms. We must also remember that the culture</p><p>of those who are neighbors and those who are distant overlap in a tangle of narratives,</p><p>generating new texts and multiple references.</p><p>Key words: communication; consumption; narratives; identity process</p><p>Os sujeitos e a necessidade da narrativa</p><p>O romance de folhetim foi o fundador das narrativas as quais estamos mais</p><p>acostumados a ver hoje seja na televisão, nos livros, na publicidade, no YouTube, no</p><p>Netflix ou nas plataformas de streaming disponíveis no mercado. Desde que Charles</p><p>Dickens, Anthony Trollope e George Eliot criavam suspense entre uma publicação e outra</p><p>de capítulos de seus enredos, linhas narrativas passaram a se entrelaçar com as afinidades,</p><p>anseios e gostos do leitor. E, desde então, os autores e roteiristas passaram a adotar a</p><p>ironia de criticar uma sociedade assoberbada pelo consumismo industrial (MARTIN,</p><p>2014, p. 24). O que vamos ver neste trabalho são os olhares de autores cujos pressupostos</p><p>teóricos nos indicam de que maneira essas narrativas perpassam os sujeitos e como o</p><p>indíviduo também influencia todo o processo cultural da atualidade.</p><p>Para começar, Umberto Eco (1994) nos diz que “numa história sempre há um</p><p>leitor, e esse leitor é um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma</p><p>história, como também da própria história”. Isso porque, segundo ele e Ortega y Gasset,</p><p>para compreender algo do ser humano, seja de forma pessoal ou coletiva, é preciso contar</p><p>uma história. Pela perspectiva do indivíduo, há sempre uma narrativa a ser contada, pois</p><p>a vida é uma dialética entre o eu e a situação em que o sujeito se encontra: “eu sou eu e</p><p>minhas circunstâncias”, segundo Gasset. A partir do próprio ponto de vista “o homem vê</p><p>a sociedade; o que crê, o que sente, o que prefere” (ORTEGA y GASSET, 2001, p, 95).</p><p>Ainda para Eco, o mundo ficcional tem a mesma função de um brinquedo infantil.</p><p>Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias</p><p>e têm contado histórias desde o início dos tempos (ECO, 1994, p, 93). O mundo ficcional</p><p>se apoia no mundo real. Quando se trata de ficção, o leitor usa o que se pode chamar de</p><p>“preterição”, ou seja, deixa de lado ou despreza alguns fatos que não têm coerência com</p><p>o mundo real. Porém, o mesmo ocorre nas verdades ficcionais. O leitor acredita na</p><p>71</p><p>realidade transmitida pela TV, por exemplo, porque em certos momentos faz o mesmo</p><p>acordo de suspensão da descrença. Isso acontece porque o leitor está diretamente ligado</p><p>às condições sociais e contextos culturais aos quais está conectado e se utiliza das</p><p>narrativas de vida inseridas na própria cultura para elaborar sua própria história e as</p><p>articula com as de outros grupos sociais.</p><p>O homem sempre esteve ligado a uma “grande narrativa”, ou “sistemas seculares</p><p>de crenças que têm uma função mobilizadora e legitimadora”, analisa Thompson (2007).</p><p>Esses elementos estão aglutinados na esfera do simbólico:</p><p>O que entendo com isso é que as formas simbólicas são expressões de um sujeito</p><p>e para um sujeito (ou sujeitos). Isto é, as formas simbólicas são produzidas, construídas e</p><p>empregadas por um sujeito que, ao produzir e empregar tais formas, estão buscando certos</p><p>objetivos e propósitos e tentando expressar aquilo que ele “quer dizer” ou “tenciona” nas</p><p>e pelas formas assim produzidas. O sujeito-produtor também tenta expressar-se para um</p><p>sujeito ou sujeitos que, ao perceber e interpretar formas simbólicas, percebem-nas como</p><p>a expressão de um sujeito, como uma mensagem a ser entendida (THOMPSON, 2007, p,</p><p>183-184).</p><p>Isso pode nos dizer que os sentidos aos quais o sujeito-produtor dá as suas</p><p>expressões simbólicas podem ter uma imensa gama de ramificações, mesmo que existam</p><p>regras e códigos preestabelecidos. Embora possam fazer parte, tacitamente, do cotidiano</p><p>dos envolvidos, os empregos das manifestações verbais, por exemplo, ganham novos</p><p>contornos, conforme o momento e situação em que são utilizados.</p><p>Para Thompson, a contextualização das condições sociais de produção cultural é</p><p>parte determinante para o entendimento</p><p>de como as formas simbólicas são interpretadas</p><p>e constituídas, dependendo de contextos sócio-históricos específicos. E o mais</p><p>importante: “ao receber e interpretar formas simbólicas, os indivíduos estão envolvidos</p><p>em um processo contínuo de constituição e reconstituição do significado, e esse processo</p><p>é, tipicamente, parte do que podemos chamar de reprodução simbólica dos contextos</p><p>sociais” (THOMPSON, 2007, p, 202). Não à toa, falamos tanto hoje da influência do</p><p>espectador nas obras abertas para televisão, sagas de livros, games ou até mesmo fan-</p><p>fictions que vão sendo criadas e recriadas conforme a onda de sucesso. Para isso, é preciso</p><p>haver um processo de reconstituição das referências dos sujeitos. Isso pode ocorrer</p><p>porque, conforme Duch e Chillón (2012), há uma memória individual e coletiva</p><p>embutidas nesses contextos sociais, formando a chamada memória cultural, com seus</p><p>72</p><p>ritos, representações, símbolos, ícones, monumentos, festas tradicionais, mitos,</p><p>identidades, que podem ajudar ou não o sujeito a se conectar com um ou outro tipo de</p><p>forma simbólica e fundamenta seus discursos, sendo todos os indivíduos “herdeiros de</p><p>um legado social, graças ao trabalho interpretador da memória” (DUCH e CHILLÓN,</p><p>2012, p, 405).</p><p>Esse processo de interagir com o simbólico na forma de narrativas amplifica as</p><p>formações discursivas das produções midiáticas, induzindo ao consumo. Campbell</p><p>(2001) explica que o legado da sociedade moderna para a contemporânea é a mudança na</p><p>maneira com que o indivíduo lida com os próprios desejos e obtém prazer com as</p><p>experiências do dia a dia. A transformação se deu na forma com os modos de desejar e</p><p>sonhar se fundem, com um elemento de sonho entrando no próprio desejo. A atividade</p><p>de consumo se dá hoje não pela seleção, compra ou uso dos produtos, mas na idealização</p><p>e projeção de um prazer imaginado anteriormente, que possa gerar identificação por parte</p><p>do consumidor potencial e que possa ser associado a um sonho. Tão logo ocorra esse</p><p>processo, o produto será desejado:</p><p>O consumidor moderno desejará um romance em vez de um produto habitual</p><p>porque isso o habilita a acreditar que sua aquisição, e seu uso, podem proporcionar</p><p>experiências que ele, até então, não encontrou na realidade (CAMPBELL, 2001, p, 129-</p><p>131).</p><p>Na atualidade, os textos direcionados ao público jovem, nas obras literárias, para</p><p>televisão, para o cinema e streaming, fazem com que os autores estejam em constante</p><p>diálogo com os movimentos juvenis, os interesses vigentes e as mudanças rápidas de</p><p>gostos, costumes e desejos de momento. O mercado literário/narrativas alimenta o</p><p>impulso por novidades e se retroalimenta das tendências ditadas pela juventude, em um</p><p>fluxo contínuo. Como explica a crítica literária Beatriz Sarlo (2006), “os jovens</p><p>encontram no mercado de mercadorias e bens simbólicos um depósito de objetos e</p><p>discursos fast preparados especialmente para eles”. Na visão da autora, a renovação</p><p>incessante necessária ao mercado capitalista captura o mito da novidade permanente, algo</p><p>que também impulsiona a juventude. “Nunca as necessidades do mercado estiveram</p><p>afinadas tão precisamente ao imaginário de seus consumidores” (SARLO, 2006, p. 40 -</p><p>41).</p><p>Estamos diante da circulação de imagens de consumo, com relevância para bens</p><p>simbólicos, informação, lazer, sugestões de prazeres e desejos alternativos</p><p>73</p><p>(FEATHERSTONE, 1995, p. 38-41) para marcar gostos e estilos de vida. É uma situação</p><p>de produção cultural, em escala global, de reprodução de signos, representações, de</p><p>formas estéticas em decadência que dão lugar a novas narrativas sociais, que nascem da</p><p>absorção de diversos contextos e resultam em metanarrativas fragmentadas e descoladas</p><p>de suas paisagens originais, sem delimitações de fronteiras (CONNOR, p. 184-189).</p><p>O autor Fredric Jameson (2006), na obra A virada cultural – Reflexões sobre o</p><p>pós-modernismo, diz que uma das características que podem ser atribuídas ao pós-</p><p>modernismo é a não separação do que se chama de alta cultura ou cultura de elite do que</p><p>acontece no ambiente ao seu redor. Segundo ele, é também um conceito atrelado a um</p><p>período histórico, a partir do súbito desenvolvimento pós-guerra, em especial dos Estados</p><p>Unidos, ou ainda na França, a partir dos anos de 1950. A década de 60, foi notadamente</p><p>a época de maior transição, em que surge uma nova ordem social e a literatura e os enredos</p><p>passaram a mostrar os caminhos pelos quais a sociedade iria seguir. Com seus novos</p><p>maneirismos, os textos indicavam, na forma de pastiches do passado modernista, uma</p><p>imitação, por vezes, “pálida, que perdeu o senso de humor e o impulso satírico da</p><p>paródia”, os novos rumos de uma sociedade cada vez mais de cultura massificada.</p><p>Jameson aponta ainda a “morte do sujeito”, aquele conhecido como indivíduo</p><p>burguês, ou seja, da ideia do individualismo do período modernista. Hoje, “na era do</p><p>capitalismo corporativo, do chamado homem organizacional, das burocracias, tanto dos</p><p>negócios como do Estado, da explosão demográfica”, o antigo “sujeito individual não</p><p>existe mais”, explica o autor. Falamos constantemente na atualidade de um sujeito sempre</p><p>conectado e interconectados uns com os outros, o que Maffesoli (2007) chama de</p><p>“subjetividade de massa”, em que o indivíduo só se realiza plenamente integrando-se ao</p><p>grupo. “As figuras da vida cotidiana: gurus, heróis, cantores, desportistas e stars de todos</p><p>os tipos constituem verdadeiros pontos de convergência (…) e tornam a figura do eu</p><p>incongruente, já que todos estão em uma espécie de mundo onírico coletivo”</p><p>(MAFFESOLI, 2007, p. 131-132).</p><p>Presente e passado se fundem nesse universo aparentemente de sonhos e/ou ideais.</p><p>Há uma constante necessidade de captura de um passado que sequer possa ter existido,</p><p>porque ele está nesse imaginário coletivo do que pode ter sido um tempo anterior longíquo</p><p>no espaço. E é por meio da figura do pastiche que ocorre uma busca incessante de</p><p>elementos que ajudem o sujeito a reviver, nem que seja por meio de uma estética, aspectos</p><p>de um tempo nostálgico, vivido na forma de representações e “na figura de signos que</p><p>74</p><p>sabemos ler e reconhecer” (MAFFESOLI, 2007, p. 214). “A emoção lírica, em seus</p><p>aspectos cotidianos – fait divers, momentos festivos, histerias e efervescências múltiplas</p><p>– prende a pessoa à comunidade” (idem, p. 151).</p><p>O espaço narrativo dos sujeitos na pós-modernidade</p><p>As transformações drásticas da relação do homem com o tempo e o espaço podem</p><p>ser alguns dos indicadores dessa perda de referencial dos sujeitos individuais e a constante</p><p>necessidade de procurar referenciais identitários, sobretudo, nas narrativas</p><p>contemporâneas. Esses são aspectos da pós-modernidade que também estão ligados a</p><p>relação das pessoas com a cidade. Há uma ampliação, que beira o impossível, do que</p><p>Jameson chama de hiperespaço. A arquitetura dos espaços opera uma ampliação dos</p><p>sentidos, dos corpos até novas e inimagináveis dimensões. Isso implica,</p><p>contraditoriamente, na contenção dos movimentos, já que as máquinas de transporte</p><p>(elevadores, escadas rolantes etc) fazem pelas pessoas. A expressão do homem nos</p><p>espaços, suas narrativas pessoais, passa a ser feita por equipamentos e tira do sujeito seu</p><p>referencial de localização e de se organizar em um mapa próprio. Pois está sempre</p><p>mergulhado em uma infinidade de edifícios, lojas, mercadorias, logotipos, propagandas,</p><p>difusão de informações por imagens, sejam elas artísticas, informativas ou publicitárias,</p><p>em movimentos infinitos, que atravessam os sujeitos onde quer que eles estejam.</p><p>A morte da ideia de sujeito individual e a perda de referencial de localização são</p><p>os primeiros indícios de esfacelamento social, onde as pessoas passam a fazer parte de</p><p>uma grande massa que “circula em pontos de chegada e de saída”, segundo Virilio (1993).</p><p>E chegar passa a ser ainda mais importante, pois, com os meios de comunicação</p><p>instantânea (satélite, TV, cabos e fibra ótica, telemática…) a “chegada suplanta a partida:</p><p>tudo chega sem que seja preciso partir”. O uso das superfícies das cidades parece estar</p><p>sempre em comutação, já que os espaços vão se distorcendo e há apenas necessidade de</p><p>ir de um ponto a outro. Aos poucos, na análise de Virillio, os espaços vão se</p><p>transformando em um borrão, pois são locais de incessantes tráfegos e não de</p><p>permanência.</p><p>O autor fala em uma completa perda da noção de dimensão. O ponto de vista em</p><p>perspectiva, o olhar, é substituído pela instantaneidade eletrônica. O olhar ultrapassa os</p><p>espaços, as distâncias, em uma falsa sensação de falta de obstáculos. Tudo é substituído</p><p>pelas “videoperformances da transmissão de imagens, a representação instantânea de</p><p>dados” (Virilio, 2006). Aos poucos, ocorre uma única fundição temporal, pois tudo é mais</p><p>75</p><p>veloz, por meio da teleobservação. As três dimensões do espaço são substituídas por duas</p><p>dimensões de uma tela ou várias simultaneamente e passa para uma esfera de</p><p>representação, como nos diz Virilio:</p><p>Privado de limites objetivos, o elemento arquitetônico passa a estar à deriva, a</p><p>flutuar em um éter eletrônico desprovido de dimensões espaciais, mas inscrito na</p><p>temporalidade única de uma difusão instantânea. (VIRILIO, 2006, p, 10).</p><p>Ainda no tocante ao espaço, Harvey (2009) nos lembra que o “incentivo à criação</p><p>do mercado mundial, para a redução de barreiras espaciais e para a aniquilação do espaço</p><p>através do tempo, é onipresente”. Da mesma maneira, é feita a a organização de</p><p>produções eficientes, sistemas e redes de transportes, de consumo e a segregação de</p><p>populações empobrecidas dos espaços próximos aos centros das cidades, numa tentativa</p><p>de disciplinamento das áreas urbanas e controle social. “As ordenações simbólicas do</p><p>espaço e do tempo fornecem uma estrutura para a experiência mediante a qual</p><p>aprendemos quem ou o que somos na sociedade”, explica o autor (HARVEY, 2009, p,</p><p>198). Isso nos ajuda a perceber também o que se espera das narrativas atuais.</p><p>O corpo disperso no espaço midiático-econômico</p><p>Esse processo de ordenação se dá por meio de organização de fluxos e interações</p><p>físicas, que ocorrem ao longo dos espaços, pela representação feita por meio de signos e</p><p>significações, códigos e conhecimentos, que fazem o que o sujeito imagine/crie novos</p><p>sentidos para as práticas espaciais, segundo Harvey. Esse controle dos espaços está</p><p>diretamente atrelado à maneira como alguns indivíduos ou grupos poderosos, por</p><p>exemplo, dominam as populações menos favorecidas. A partir do momento em que há</p><p>uma aniquilação do espaço físico real e ele passa a ser produzido para atender interesses</p><p>desse ou daquele grupo social, ocorre uma alteração de distâncias e condições de</p><p>apropriação. Isso porque a modificação do tempo e do espaço sempre oferece a</p><p>possibilidade de ganhos monetários maiores, por meio do lucro, já que a transferência de</p><p>mercadorias sempre envolve as variáveis tempo e espaço. “As definições de “organização</p><p>espacial eficiente e de tempo de giro socialmente necessário são formas fundamentais que</p><p>servem de medida à busca do lucro – e ambas estão sujeitas a mudanças” (HARVEY,</p><p>2009, p, 209).</p><p>Há contínuos esforços para a redução desse tempo de giro, acelerando processos</p><p>sociais. Apesar de existirem diversas barreiras a essa aceleração, tais como dificuldades</p><p>76</p><p>de produção, ausência de mão de obra, baixa oferta de insumos, crises econômicas, “há</p><p>toda uma história de inovações técnicas e organizacionais que ajudam a minimizar esses</p><p>bloqueios. As mais pertinentes para serem destacadas neste momento são: aceleração de</p><p>processos físicos (engenharia genética, bioengenharia, robotização e informatização da</p><p>produção), a obsolecência planejada do consumo, com modismos, novas tecnologias e</p><p>publicidade geradora de novos desejos e apelos a aquisição de novidades. Esses são</p><p>fatores de geração de conflitos, já que os sujeitos vivem em situações de tempo e espaço</p><p>distintas, diz Harvey, sobretudo se levarmos em conta a complexidade das grandes</p><p>metrópoles globais. A partir dessa relação conflituosa, há também a possibilidade de</p><p>emergência de novas dinâmicas culturais e sociais. O que temos visto é justamente essa</p><p>ascensão: novas maneiras de ler – com a leitura multiplataforma: livro em papel, tablets,</p><p>celulares, audiobooks – diferentes modos de consumo de televisão, com maratona de</p><p>séries em apenas um final de semana. Tudo isso gera uma necessidade permanente de</p><p>produção, afinal, é preciso consumir mais.</p><p>Como explica Milton Santos (2012), vemos hoje um processo de</p><p>internacionalização das cidades, reforçando a perspectiva de demarcação dos espaços, de</p><p>acordo com interesses de determinados grupos sociais e pela complexidade de suas</p><p>atividades. A ordenação da produção e divisão internacional da força de trabalho, com</p><p>vistas à redução de custos produtivos e aceleração dos lucros, tem como ponto crítico a</p><p>“artificialização do meio de vida e trabalho e induz a conformação das mentes para a</p><p>aceitação das novas condições de existência, a começar pela imersão pelo consumo”. São</p><p>as grandes cidades, na condição de mundializadas, a servir, como foi dito anteriormente,</p><p>de ponto de tráfego das estruturas necessárias para a manutenção das estratégias de</p><p>produção do capitalismo. É onde tudo passa a ser ordenado para acelerar cada vez mais o</p><p>fluxo de mercadorias e pessoas; um lugar não de permanência ou convívio e, sim, pontos</p><p>de baldeação. Esse ponto é importante no nosso estudo à medida que vemos que as</p><p>produções locais são fortemente influenciadas pelas práticas midiáticas globais, como</p><p>poderemos confrontar mais adiante na nossa pesquisa. Entretanto, é possível observar</p><p>uma mescla do global com o local e a formação de elementos que denotam certa rebeldia</p><p>em relação ao que é chamado de mainstream (dominante).</p><p>Segundo Peter Pál Pelbart, todo esse processo do capitalismo impregnou a tal</p><p>ponto a esfera cultural e subjetiva, que há hoje uma descontextualização dos objetos,</p><p>77</p><p>privilégio da superfície, império do simulacro e a fabricação social e histórica das</p><p>subjetividades. Para o autor:</p><p>O capitalismo desterritorializa os sujeitos de suas esferas natais, fazendo com que,</p><p>às vezes, eles se reterritorializem sobre referências identitárias arcaicas ou midiáticas, ao</p><p>mesmo tempo essa nomadização generalizada pode significar uma refluidificação aberta</p><p>a novas composições, a novas valores e sensibilidades. É nesse vetor, molecular,</p><p>subrepresentativo, coletivo, que podem surgir novos agenciamentos de desejo os mais</p><p>inusitados, polifônicos, heterogêneos (PELBART, 2000, p, 14).</p><p>O autor reforça de forma mais contundente e crítica que a subjetividade hoje está</p><p>presa a uma inércia petrificante, a uma hipnose telemidiática, de uma infantilização</p><p>maciça e uma homogeneização sem precedentes. E as cidades, com suas superpopulações</p><p>e condições sociais díspares, fomenta e acentua excessos e dispersões, formando uma</p><p>espécie de borrão social e cultural. Porém, é necessária uma lente de observação com</p><p>maior acuidade para tentarmos identificar esses elementos difusos, focos determinantes</p><p>de surgimento de manifestações sociais que trazem novas dinâmicas ou são pontos de</p><p>fuga nesses processos de aparente imobilidade.</p><p>A leitura de imersão nas imagens midiáticas</p><p>A imagem, cena, aparência ou conjunto de aparências (BERGER, 1999, p. 15-16)</p><p>são fatores que também nos ajudam a contextualizar as práticas de leitura</p><p>contemporâneas. É necessário levar em consideração todo o contexto em torno do</p><p>momento de contemplação das imagens na atualidade, já que também são formas de</p><p>apreensão midiática e, por que não dizer, de leitura e sua repercussão interna, quase</p><p>emocional, provocada pela fotografia, ou imagem poética (BACHELARD, 1978, p. 183).</p><p>Nem sempre o primeiro contato com uma obra se dá do leitor</p><p>1 5 h 0 0 à s 1 8 h 0 0</p><p>L o c a l : E d i f í c i o R W</p><p>N O I T E - WORKSHOPS 2</p><p>"VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS"</p><p>( c o m a p r e s e n ç a d o s r o t e i r i s t a s d a A B R A )</p><p>h o r á r i o : 1 9 h 0 0 à s 2 1 h 3 0</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XIII</p><p>PALESTRA 26/09/2017</p><p>PALESTRA 27/09/2017</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XIV</p><p>WORKSHOPS VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS</p><p>ROTEIRISTAS PRESENTES</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XV</p><p>PROGRAMAÇÃO GTs</p><p>26/09/2017</p><p>Encontro de Escrituras - Lenize Villaça Cardoso</p><p>Narrativas em série: estruturação em movimento - Cristine Fickelscherer de Mattos</p><p>Artur Henrique da Costa Pinto Hook, cliffhanger e suas aplicações na narrativa em séries</p><p>Cristine Fickelscherer de Mattos Produção e recepção de séries contemporâneas: aspectos do enredo</p><p>Fernanda Elouise Budag e</p><p>Camilla R Netto da Costa Rocha</p><p>Tramas e dramas imagéticos: construção narrativa, sentidos e representações em</p><p>série norte-americana centrada em relacionamentos</p><p>João Paulo Lopes de Meira Hergesel RevoltZ: escrevendo ficção seriada para adolescentes</p><p>Luís Enrique Cazani Júnior</p><p>Edgar Allan Poe e a ficção seriada televisiva The Killing, The Fall, Stranger Things e</p><p>How to Get Away with Murder</p><p>Yasmin Patricia de Oliveira Entre a realidade e a ficção: Da narrativa jornalística ao roteiro de Narcos</p><p>Personagens e construção de identidades - Helena B. Couto Pereira</p><p>Carolina de Oliveira Silva</p><p>Lou, uma protagonista desagradável. Reflexões sobre o feminino em “O monstro</p><p>dentro de você” (2016)</p><p>Helena Bonito Couto Pereira Seis personagens encontram um ator: Paulo José</p><p>Ana Lucia Trevisan, Elaine Prado e</p><p>Isabel Orestes da Silveira</p><p>Algumas reflexões sobre humanos e máquinas na ficção cinematográfica</p><p>Luiza Lusvarghi</p><p>O charme nada discreto da Femme Fatale: a personagem feminina noir nas</p><p>narrativas criminais contemporâneas</p><p>Maria Aparecida Ruiz e Nora Rosa</p><p>Rabinovich</p><p>As narrativas da dualidade: uma análise possível do filme “Relatos Selvagens”</p><p>Rachel Nogueira Calcagno Horta e</p><p>Lilia Horta</p><p>Imaginário transgressor feminino de Hayao Miyazaki</p><p>(R)evoluções narrativas audiovisuais - Daniel De Thomaz</p><p>Daniel De Thomaz Paratextualidade aplicada à adaptação audiovisual</p><p>Dorama de Miranda Carvalho</p><p>O consumo das narrativas na pós-modernidade e os sujeitos como coprodutores de</p><p>histórias</p><p>Lucas Martins Néia</p><p>Baile dos Deuses Mortos nos escombros d’O Casarão: aspectos cíclicos da obra de</p><p>Lauro César Muniz para a TV</p><p>João Pedro de Azevêdo Machado</p><p>Mota</p><p>Pokémon GO: a abertura aos diálogos de uma experiência-em-rede em narrativas</p><p>transmídia</p><p>Roberto Simão Pereira Junior</p><p>“Meninos, eu vi”: o primeiro capítulo, quatro décadas – a evolução narrativa de</p><p>Lauro César Muniz</p><p>Sillas Carlos dos Santos As redes sociais online como ferramenta transmidiática na produção audiovisual</p><p>Diálogos Pertinentes: Audiovisual e Educação - José Estevão Favaro</p><p>Elisabeth Klingohr Garcia e Marcos</p><p>Rogério Martins Costa</p><p>Halloween na rede pública de ensino: descobertas audiovisuais</p><p>Fernando Luis Cazarotto Berlezzi A importância do roteiro de audiovisual no processo de ensino-aprendizagem</p><p>Helena Prates</p><p>e Fernando Luis Cazarotto Berlezzi</p><p>O uso do código escrito do audiovisual (roteiro!) na educação</p><p>Julia Mussarelli, Marina Tavares e</p><p>Noemi Zein Telles</p><p>Diálogos imaginários: Como o professor aprende a ensinar?</p><p>Marcos Rogério Martins Costa e</p><p>Carolina Gutierrez Ribeiro</p><p>Robótica e Arte: estudo de caso do registro audiovisual da construção de carrinhos</p><p>com material reciclável em ambiente escolar</p><p>Rosana Grangeiro Barreto A Telenovela Lado a Lado e a questão do Negro no Brasil</p><p>Roseli Machado Lopes do Nascieo</p><p>Cinema, Educação e Diversidade</p><p>Ana Patricia de Queiroz Carneiro</p><p>Dourado</p><p>O plano de voo e o voo: roteiro e experimentação</p><p>Lenize Villaça Cardoso O imaginário roteirizado nas ondas do rádio - a "Carta da Saudade" de Eli Correa</p><p>Thiago Barbosa Alves de Souza Roteiro de clipes para o Youtube - trabalho equivalente de mestrado</p><p>Yuri Garcia A Relação entre H. P. Lovecraft e o Cinema Trash</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XVI</p><p>PROGRAMAÇÃO GTs</p><p>27/09/2017</p><p>Imersões imagéticas: construção visual -Selma P. F Garrini</p><p>Carlos Cesar D. do Amaral Luta Livre e a Arte em Desenhos de Didi Ferreira</p><p>Emerson Rodrigues de Brito A Direção de Arte no filme A Garota Dinamarquesa</p><p>Lucas Bandos Lourenço As representações da imagem da cidade através do cinema</p><p>Norberto Gaudêncio Junior</p><p>Do papel à tela de cinema: representações do cômico Polin na cultura material</p><p>impressa e na Phonoscène pioneira de Alice Guy</p><p>Patricio Dugnani</p><p>Circos, Círculos, Ventiladores e Picadeiros: As Transformações da Vida como</p><p>Metáfora do Movimento no Filme O Palhaço.</p><p>Selma Peleais Felerico Garrini Fanáticos na Pele. O sonho do futebol</p><p>Documentar, retratar e a visão construída do outro - Keller Regina Viotto Duarte</p><p>Ana Luisa Fernandes Machado O Processo Criativo como Terapia Ocupacional: a Arte do Fazer de Nise da Silveira</p><p>Ariane Daniela Cole Artistas, obras, abordagens e roteiro documental</p><p>Dângela Nunes Abiorana e Antonio</p><p>de Azambuja Melo</p><p>Os desafios da construção do roteiro documental para a televisão</p><p>Karen Meneghim Da democracia dos anos 80 ao coletivo corintiano de Século XXI</p><p>Keller Regina Viotto Duarte e Mariza</p><p>de Fátima Reis</p><p>O filme documentário Cidade Cinza (2013) como um grito contemporâneo</p><p>Marcio José Silva Carne Forte: ninguém é invisível</p><p>Dentro do Mercado: Roteiristas e produção de conteúdo - Paulo Matias de Figueiredo</p><p>Douglas Domingues Nova vida no vídeo - O filme B no vídeo doméstico</p><p>Fernando José Biscalchin Processos de criação do score cinematográfico a partir do roteiro</p><p>Gustavo Amaral Procura-se um autor de telenovela</p><p>Natasha Romanzoti O papel do roteiro no cinema brasileiro dos anos 1950: uma introdução</p><p>Rosana M B Schwartz Lugar da mulher é no cinema: roteiristas e cineastas</p><p>Vitor Vaz de Freitas Estudo sobre Product Placement Em Séries de Streaming</p><p>Rosângela Canassa A questão do cinema contemporâneo: roteiro e problemáticas culturais - mesa 8</p><p>Dentro e fora do quadro: a mise-en-scène e repercussões - Regina Lara</p><p>Claudio Imamura A animação Nausicaa do Vale do Vento: Um roteiro atual de um mito antigo.</p><p>Marília Helena Piaggio dos Santos O papel do audiovisual publicitário na abordagem de temas polêmicos.</p><p>Natália Aymi Yamaguti Psycho/Psicose: considerações sobre a adaptação da "shower scene"</p><p>Nora Rosa Rabinovich e</p><p>Isabel Orestes da Silveira</p><p>Entre homens e porcos: uma análise sobre “O filme da minha vida”</p><p>Roberto Gustavo Reiniger Neto</p><p>Corpo, performance e a adaptação da literatura no cinema contemporâneo. Outros</p><p>olhares para o filme “Cinquenta Tons de Cinza” (Fifty Shades of Grey, 2015).</p><p>Rogério Pereira dos Santos Michel Gondry, poeta da mise-en-scène.</p><p>Narrar por estratégias estruturais - Mirtes de Moraes</p><p>Adriano Messias de Oliveira O duplo como estratégia narrativa e a perspectiva filosófica de Peter Sloterdijk</p><p>Diogo Cronemberger Melodrama em Aquarius</p><p>Mirtes de Moraes Aquarius: Entre o tempo e a memória</p><p>Rodrigo Rodrigues das Neves</p><p>O sumiço da pasta de partituras como plano de Fletcher – Explicando o Unifying</p><p>Theory of Two Plus Two no filme Whiplash</p><p>Verônica D'Agostino Piqueira</p><p>Quando o "happy end" voltou ao ponto de partida: memória e historiografia na</p><p>obra de Oldřich Lipský</p><p>William Augusto Camara e Letícia</p><p>Passos Affini</p><p>A Narrativa Complexa em "A Chegada"</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XVII</p><p>PROGRAMAÇÃO MESAS</p><p>26/09/2017</p><p>Mesa Imagens e trajetórias:</p><p>com um livro. A</p><p>exposição a um enredo pode ocorrer por meio das adaptações cinematográficas, para a</p><p>TV ou em outras plataformas, como games, aplicativos, brinquedos ou histórias em</p><p>quadrinhos (HQs). Posto dessa forma, vale ressaltar a ideia do autor Phillipe Dubois,</p><p>quando fala sobre a imagem-ato. Ele diz que, ao contemplar uma imagem, o receptor</p><p>busca uma série de referências, fazendo da imagem algo que pode dizer muito sobre o</p><p>tema tratado, ao mesmo tempo que, ao contemplar, o sujeito pode dar a ela novos</p><p>significados:</p><p>Com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz</p><p>ser. A foto não é mais uma imagem (o produto de uma técnica e de uma ação, o resultado</p><p>78</p><p>de um fazer e de um saber-fazer, uma representação de papel que se olha simplesmente</p><p>em sua clausura de objeto finito) é também, em primeiro lugar, um verdadeiro ato icônico,</p><p>uma imagem, se quisermos, mas em trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas</p><p>circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la literalmente: algo que é,</p><p>portanto, ao mesmo tempo consubstancialmente, uma imagem-ato, estando</p><p>compreendido que esse ‘ato’ não se limita trivialmente apenas ao gesto da produção</p><p>propriamente dita da imagem (o gesto da ‘tomada’), mas inclui também o ato de sua</p><p>recepção e contemplação (DUBOIS, 1994:15).</p><p>Joan Fontcuberta, acadêmico, ensaísta e pesquisador da fotografia e imagem,</p><p>também nos dá pistas de como se dá esse processo de aceitação ou não das imagens e o</p><p>ato de contemplação e de como elas podem transformar ou redefinir a realidade</p><p>vislumbrada pelos leitores:</p><p>La fotografia, en su origen, tuvo que acercarse a la ficción para demonstrar su</p><p>naturaleza artística y su objeto prioritário ha consistido en traducir los hechos en soplos</p><p>de la imaginación. Hoy en cambio lo real se funde com la ficción y la fotografia puede</p><p>cerrar un ciclo: devolver lo ilusório y lo prodigioso a las tramas de lo simbólico que suelen</p><p>ser a la postre las verdaderas calderas donde se cuece la intrepretación de nuestra</p><p>experiência, esto ES, la producción de realidad (FONTCUBERTA, 2007, p. 185).</p><p>Toda essa consciência e aspectos múltiplos dos enredos que circulam atualmente,</p><p>relembrados por meio da percepção plural das imagens espraiadas na mídia nos remete a</p><p>um determinado aspecto do conceito de imagem complexa do estudioso de fotografia</p><p>Josep Maria Catalá Domenech:</p><p>Para empezar, digamos que la imagen ya no existe, existen en todo caso</p><p>las imágenes, siempre no plural. O, si queremos ser literales aún a costa</p><p>de ser imprecisos, podemos afirmar que existe lo visual como um</p><p>conglomerado, prácticamente sin limites, de percepciones, de</p><p>recuerdos, de ideas, englobados en una ecologia de lo visible o en</p><p>distintas manifestaciones (...)” (CATALÁ, 2005, p. 43).</p><p>Catalá também nos lembra que “atualmente as imagens contemporâneas</p><p>dificilmente são percebidas de maneira isolada”. O autor chama a atenção para a</p><p>sobreposição de imagens no imaginário social e em rede. “A imagem contemporânea</p><p>tanto se move entre o tempo-movimento-duração como em tempo-estático-memória”. O</p><p>autor espanhol nos lembra ainda outro conceito pertinente a esse processo, as redes:</p><p>79</p><p>Un conjunto de redes de conexiones entre los hechos, entre las personas, entre las</p><p>cosas del mundo. Esta red se está produciendo constantemente, por lo que las conexiones</p><p>que configura están formandose y diluyéndose sin parar (CATALÁ, 2005, p. 60).</p><p>Falamos anteriormente de espaços sociais e midiáticos e de um leitor imerso</p><p>nesses elementos. Como nos diz Buitoni “vivemos em uma época onde espaços sociais e</p><p>espaços midiáticos mesclam deliberadamente todas as famílias de imagens: a da tela de</p><p>vídeo, da projeção de slides, a tela de computador, a imagem hipermultiplicada, a imagem</p><p>absolutamente única etc (BUITONI, 2011, p. 90).</p><p>Ambientes de comunicação e identidade</p><p>Novas formas de organização social estão sendo difundidas em todo o mundo,</p><p>sobretudo, em razão da tecnologia. É muito mais fácil hoje em dia sabermos como está</p><p>ocorrendo a reprodução da fauna da Ilha de Chiloé, a longíqua ilha chilena do oceano</p><p>pacífico, graças a pesquisadores e jornalistas que mandam de lá informações sobre a</p><p>procriação de espécies nativas. De tão exóticas e pouco conhecidas até os anos de 1990,</p><p>as características locais acabaram chamando a atenção de pessoas de várias partes do</p><p>mundo e, por consequência, atraindo turistas para o local, encantados com as maravilhas</p><p>do lugar difundidas por meio da internet. É a sociedade em rede que conforma uma</p><p>“cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente,</p><p>interligado e altamente diversificado” (CASTELLS, 2010, p. 17).</p><p>É preciso nos situarmos e haver um entendimento de como funciona o processo</p><p>de identidade cultural. Segundo Hall (2014), a identidade é formada a partir da</p><p>“interação” entre o “eu” e a sociedade e o “eu real” é formado e modificado em um</p><p>diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos</p><p>oferecem. “A medida que os sistemas de significação e representação cultural se</p><p>multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de</p><p>identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao</p><p>menos temporariamente” (HALL, 2014, p. 11-12).</p><p>O que podemos perceber agora é que a principal diferença na formação desses</p><p>processos identitários na pós-modernidade é a “compressão de espaço-tempo”, formando</p><p>novos tipos de representações, advindas da aceleração dos processos globais, sobretudo,</p><p>com a aceleração dos desenvolvimentos tecnológicos. Há a percepção de que o “mundo</p><p>é menor e que os eventos em um determinado lugar têm impacto imediato sobre pessoas</p><p>80</p><p>e lugares situados a uma grande distância. Porém, todas as identidades estão localizadas</p><p>em um espaço-tempo simbólicos” (HALL, 2014, p.40-41). O autor indica ainda:</p><p>Os fluxos culturais (...) criam possibilidades de identidades partilhadas – como</p><p>“consumidores” para os mesmos bens, “clientes” para os mesmos serviços, “públicos”</p><p>para as mesmas mensagens e imagens – entre as pessoas que estão bastante distantes umas</p><p>das outras no espaço e no tempo. (HALL, 2014, p. 42).</p><p>Ainda para Castells (2010), a identidade pode ser compreendida a partir da ideia</p><p>da organização que atores sociais fazem da sua produção de significados, elementos esses</p><p>oriundos de atributos culturais. “A construção de identidades vale-se da matéria-prima</p><p>constituída pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela</p><p>memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho</p><p>religioso” (CASTELLS, 2010, p. 23).</p><p>Considerações finais</p><p>Na cena midiática atual, Canclini reforça que a formação de identidade no</p><p>contexto cultural e comunicacional é também uma “coprodução” – ainda que seja em</p><p>situação desigual, por diversas razões, dentre elas, baixa integração econômica, falhas nos</p><p>sistemas educacionais e assimetria no que se refere a “acesso e apropriação cultural”</p><p>(CANCLINI, 2012, p.119). Porém, neste contexto de estudo, estamos falando de agentes</p><p>multimídia, que lê, ouve e combina materiais diversos, procedentes da leitura e dos</p><p>espetáculos”. “Essa integração de ações e linguagens redefiniu o lugar onde se aprende</p><p>as principais habilidades – a escola – e certa autonomia no campo educacional, com a</p><p>“multiplicação dos espaços e circuitos de acesso aos saberes e à formação cultural”</p><p>(CANCLINI, 2008, p.24).</p><p>Não à toa, abre-se, então, espaço para novos agentes culturais e oferta maciça de</p><p>conteúdo, porém, sem critérios de seleção e hierarquização. Entretanto, a “convergência</p><p>digital dos meios reorganiza os modos de acesso aos bens culturais e as formas de</p><p>comunicação” (CANCLINI, 2008, p.33). Canclini, apoiado em Martín-Barbero, reforça</p><p>que os “saberes e o imaginário contemporâneos</p><p>não se organizam mais em torno de um</p><p>eixo letrado, nem o livro é o único foco ordenador de conhecimento. É possível ver e</p><p>ouvir textos escritos, transmissão de dado, tirar fotos, fazer vídeos, guardá-los,</p><p>comunicar-se com outras pessoas e receber as novidades em um instante” (idem, p.34).</p><p>Diante de tantas possibilidades, não é possível imaginar um sujeito que assiste um</p><p>vídeo no YouTube, uma série do Netflix, compra um livro e se contenta em guardar a</p><p>81</p><p>história para si. Mas sim alguém que também influencia o que um youtuber ou roteirista</p><p>deve criar, porque o seguidor/fã é, por si só, perfeitamente hábil, por diversos meios</p><p>tecnológicos, a enviar postagens e comentários que tem a capacidade de reorganizar as</p><p>narrativas e dar novos sentidos aos discursos, em uma processo de interação infinito. É</p><p>um espectador que faz tanto barulho que os roteiristas são obrigados a dar ouvidos aos</p><p>anseios criados por um personagem da trama. E o mais importante: “a cultura dos que são</p><p>vizinhos e a dos que estão distantes tornam-se espantosamente acessíveis. Familiarizam-</p><p>se”. (ibidem, p.52) A interatividade na internet é capaz de desterritorializar e até inventar</p><p>novas identidades, como assinala Canclini:</p><p>Os gostos dos leitores tendem a agrupar-se, como as alianças e fusões editoriais,</p><p>de acordo com a própria língua (...) A digitalização incrementa os intercâmbios de livros,</p><p>revistas e espetáculos, mas, acima de tudo, está criando redes de conteúdos e formatos</p><p>elaborados a partir da circulação midiaticoeletrônica. Está modificando, assim, os estilos</p><p>de interatividade. (CANCLINI, 2008, p.53).</p><p>É preciso lembrar que a cadeia de comunicação não acontece de forma unilinear</p><p>e a recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, já que o sentido sempre possui</p><p>várias camadas e é sempre multirreferencial, no que Hall chama de “circuitos de</p><p>produção” que, segundo o autor, fornece um modelo de “articulação” – um processo em</p><p>que há “momentos de produção, consumo, realização, reprodução”, mesclados (HALL,</p><p>p. 356).</p><p>Não é mais possível “hegemonizar a audiência” – fazer com que a audiência</p><p>entenda o significado de algo apenas de uma maneira – as formas de decodificação dos</p><p>textos midiáticos ocorrem de maneira “preferencial”, “negociada” ou “oposicionista”,</p><p>trafegando por esses critérios, mas nunca de maneira única. O modo de codificação dos</p><p>textos midiáticos, seja qual for a plataforma midiática, acaba por possibilitar a facilidade</p><p>de sua reprodução e, por consequência, gerar novos significados (HALL, 2003, p. 364).</p><p>Referências</p><p>BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1978.</p><p>BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.</p><p>BUITONI, Dulcília Schoeder. Fotografia e jornalismo – A informação pela imagem. São Paulo,</p><p>Editora Saraiva, 2011.</p><p>CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro,</p><p>Rocco, 2001.</p><p>CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São</p><p>Paulo, Edusp, 2013.</p><p>82</p><p>CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2010.</p><p>CATALÁ, Josep M. La imagen compleja. La fenomenología de las imágenes en la era de la</p><p>cultura visual. Belaterra, Universitat Autònoma de Barcelona, Servei de Publicacions, 2005.</p><p>CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo,</p><p>Edições Loyola, 1989.</p><p>DUBOIS, Philippe Dubois. O ato fotográfico. Campinas, Papirus, 1994.</p><p>DUCH, Lluís. CHILLÓN, Albert. Un ser de mediaciones. Barcelona, Heder, 2012.</p><p>ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.</p><p>FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio Nobel,</p><p>1995.</p><p>FONTCUBERTA, Joan. El beso de Judas – Fotografía y verdad. Barcelona: GG, 2007.</p><p>HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, Editora Lamparina,</p><p>2014.</p><p>___________. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,</p><p>2003.</p><p>HARVEY, DAVID. Condição pós-moderna. São Paulo, Edições Loyola, 2009.</p><p>JAMESON, Fredric. A virada cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.</p><p>MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida. Variações sobre o imaginário pós-moderno. São Paulo,</p><p>Record, 2007.</p><p>MARTIN, Brett. Homens difíceis. São Paulo, Aleph, 2014.</p><p>ORTEGA Y GASSET, José. História como sistema. Madri, Editorial Biblioteca Nueva, 2001.</p><p>PELBART, Peter. A vertigem por um fio. São Paulo, Iluminuras, 2000.</p><p>SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. São Paulo, Edusp, 2012.</p><p>SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio</p><p>de Janeiro, Editora UFRJ, 2006.</p><p>THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Rio de Janeiro, Vozes, 2007.</p><p>VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993.</p><p>83</p><p>Baile dos Deuses Mortos nos escombros d’O Casarão:</p><p>aspectos cíclicos da obra de Lauro César Muniz para a TV</p><p>Dance of the dead gods in the debris of O Casarão (“the big house”):</p><p>cyclical aspects of Lauro César Muniz’s TV work</p><p>Lucas Martins Néia46</p><p>Resumo: A partir de diretrizes propostas por Gilbert Durand em sua teoria geral do</p><p>imaginário, dedicamo-nos ao exame mitocrítico do “inventário antropológico” da</p><p>telenovela O Casarão (Globo, 1976), de Lauro César Muniz, no intuito de evidenciar</p><p>alguns mitemas recorrentes no conjunto da obra desse autor para a televisão. Para Durand</p><p>(1985; 2002), as narrativas mitológicas, estruturadas por padrões e arquétipos presentes</p><p>na psique humana, operam como modelo matricial de todo discurso, seja ele literário,</p><p>musical, cênico, pictórico ou outro; o teórico francês propõe, então, a mitocrítica como</p><p>metodologia para identificação de mitos e mitemas (menores unidades de um mito)</p><p>presentes nas dinâmicas do imaginário de determinado produto cultural ou de um grupo</p><p>de produtos culturais. Autores como Paiva (2010) e Anaz (2016), por sua vez, se utilizam</p><p>das perspectivas durandianas para compreensão e análise dos imaginários que emergem</p><p>das produções audiovisuais. O presente artigo compartilha de tais aportes,</p><p>consubstanciando-os a reflexões referentes à telenovela O Casarão já abordadas em</p><p>trabalho anterior (NÉIA, 2015). Constatamos que os substratos míticos presentes em O</p><p>Casarão estão fortemente ligados ao aspecto cíclico patente nos trabalhos de Lauro César</p><p>Muniz para a TV: telenovelas como Escalada (Globo, 1974) e Cidadão Brasileiro</p><p>(Record, 2006) também apresentam protagonistas que buscam o retorno por meio da</p><p>instauração do caos – e incorrem, junto a Os Deuses Estão Mortos (Record, 1971) e a</p><p>Quarenta Anos Depois (Record, 1971), ao mitema do envelhecimento. A dinâmica do</p><p>eterno retorno parece fazer sentido, ainda, na própria trajetória de Lauro no veículo: para</p><p>além das temáticas recorrentes, voltadas aos grandes marcos históricos de nosso país, o</p><p>autor constantemente revisita suas próprias obras – teatrais e televisivas –, seja por</p><p>inspiração direta ou por sugestionamento. Todos estes preâmbulos nos fazem refletir, por</p><p>fim, acerca das noções de instância histórica e instância arquetípica (ANAZ, 2016) para</p><p>perspectivarmos um horizonte de pesquisa no qual, à luz da complexidade e do mito de</p><p>Dioniso (PAIVA, 2010), a investigação dos imaginários emergentes das telenovelas não</p><p>se reduza a certas ideologias vigentes no contexto de produção dessas teleficções.</p><p>Palavras-chave: Telenovela; O Casarão; Lauro César Muniz; teoria geral do imaginário.</p><p>Abstract: Based on Gilbert Durand’s theory of the imaginary, this article focuses on the</p><p>myth criticism examination of the “anthropological inventory” of the telenovela O</p><p>Casarão (Globo, 1976), written by Lauro César Muniz. Our aim is highlight some</p><p>recurrent myth themes founded on this author’s work for television. For Durand (1985;</p><p>2002), the mythological narratives are structured by patterns and archetypes present in</p><p>the human psyche,</p><p>operating as a matrix model of any discourse – textual or visual. The</p><p>French academic proposes, then, the mythocritique method for the identification of myths</p><p>46 Roteirista. Mestrando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual</p><p>de Londrina. Pesquisador do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (Obitel). Bolsista CNPq. E-mail:</p><p>lucas_martins_neia@hotmail.com.</p><p>mailto:lucas_martins_neia@hotmail.com</p><p>mailto:lucas_martins_neia@hotmail.com</p><p>84</p><p>and myth themes (smaller units of a myth) present in the dynamics of the imaginary in a</p><p>certain cultural product or in a group of cultural products. Authors such as Paiva (2010)</p><p>and Anaz (2016), on the other hand, use the Durandian perspectives for understanding</p><p>and analyzing the imaginaries that emerge from the audiovisual productions. This article</p><p>shares these contributions, consubstantiating them to reflections referring to the</p><p>telenovela O Casarão already discussed in a previous work (NÉIA, 2015). We conclude</p><p>that the mythic substrates contain in O Casarão are strongly linked to the cyclical aspect</p><p>of Lauro César Muniz’s TV works. Telenovelas such as Escalada (Globo, 1974) and</p><p>Cidadão Brasileiro (Record, 2006) also present protagonists who seek to return by the</p><p>chaos instauration and incur – as Os Deuses Estão Mortos (Record, 1971) and Quarenta</p><p>Anos Depois (Record, 1971) – to the myth theme of the aging. The idea of eternal</p><p>recurrence seems to make sense in Lauro’s TV trajectory: in addition to the recurring</p><p>themes, geared to the great historical milestones of our country, the author constantly</p><p>revisits his own theatrical and television works, either by inspiration direct or by</p><p>suggestion. All these preambles make us reflect, finally, on the notions of historical</p><p>instance and archetypal instance (ANAZ, 2016). We envisage a research horizon in</p><p>which, in the light of the complexity and the myth of Dionysus (PAIVA, 2010), the</p><p>investigation of the imaginaries that emerge from the telenovelas should not be reduce to</p><p>ideologies restricted to the context of production of these TV fictions.</p><p>Key words: Telenovela; O Casarão; Lauro César Muniz; theory of the imaginary.</p><p>O presente trabalho consubstancia reflexões de pesquisa anterior (NÉIA, 2015),</p><p>relativa à formulação de alguns parâmetros para a elaboração de uma “genealogia” da</p><p>telenovela O Casarão (Globo, 1976), à perspectiva durandiana da teoria do imaginário.</p><p>Dedicamo-nos, em um primeiro momento, ao exame mitocrítico do “inventário</p><p>antropológico” de O Casarão no intuito de evidenciar alguns mitemas – as menores</p><p>unidades de um mito – que, como veremos adiante, são recorrentes no conjunto da obra</p><p>de Lauro César Muniz para a TV.</p><p>A narrativa47</p><p>A trama de O Casarão atravessa três períodos distintos do edifício homônimo à</p><p>telenovela, localizado no fictício município de Sapucaí, norte de São Paulo. A origem da</p><p>portentosa moradia se encontra nos idos de 1900, quando o poderoso senhor de terras</p><p>Deodato Leme (Oswaldo Loureiro) consegue, graças à sua influência política, que um</p><p>ramal ferroviário seja instalado nos limites de sua propriedade, a fazenda Água Santa.</p><p>A filha de Deodato, Maria do Carmo (Analu Prestes), se apaixona por um</p><p>imigrante português, Jacinto de Souza (Tony Correia), mas é obrigada pela família a se</p><p>47 Para construção deste tópico, foram alinhavadas informações encontradas nos sites Memória Globo (http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/o-</p><p>casarao.htm) e Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/o-casarao/). Acesso em: 07 jun. 2017.</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/o-casarao.htm</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/o-casarao.htm</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/o-casarao.htm</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/o-casarao.htm</p><p>http://www.teledramaturgia.com.br/o-casarao/</p><p>http://www.teledramaturgia.com.br/o-casarao/</p><p>85</p><p>casar com Eugênio Galvão (Edson França), engenheiro responsável pela construção do</p><p>ramal ferroviário. O ponto culminante desta fase ocorre em 1906, quando Deodato é</p><p>morto em uma emboscada armada pelo próprio genro – Eugênio, assim, assume o controle</p><p>político da região, ao passo que a estrada auxilia o desenvolvimento local.</p><p>Após esta fase, cujo término diacrônico se dá em 1910, vamos para 1926. Sapucaí,</p><p>em pleno progresso, já não depende como antes da fazenda Água Santa. Aqui, um</p><p>problema semelhante ao de Maria do Carmo é enfrentado por sua filha, Carolina (Sandra</p><p>Barsotti): ela é apaixonada pelo artista João Maciel (Gracindo Jr.), mas, por pressão de</p><p>Eugênio, acaba se envolvendo com Atílio (Dennis Carvalho), comerciante com carreira</p><p>política ascendente – e filho de Jacinto.</p><p>Esse período marca o início da decadência da família, cuja fortuna sofre um abalo</p><p>com a crise econômica mundial de 1929. João Maciel e Carolina vivem entre idas e vindas</p><p>até 1936, quando a moça decide não fugir com seu amado, optando pelo casamento com</p><p>Atílio.</p><p>A história passa, então, a se desenvolver em 1976 – a atualidade da época.</p><p>Afloram-se todos os problemas criados ao longo dos anos: as terras da Água Santa são</p><p>apenas a terça parte da fazenda original, e diversos fatores se somam rumo a uma</p><p>derrocada definitiva – o surto de industrialização, o êxodo rural e a própria decadência</p><p>psicológica de seus proprietários. Diante deste quadro, os filhos de Atílio (Mário Lago) e</p><p>Carolina (Yara Cortes) são levados a transformar suas terras em um grande loteamento,</p><p>enquanto o projeto de uma nova estrada ameaça o velho casarão.</p><p>É essa a realidade que João Maciel (Paulo Gracindo) encontra quando volta a</p><p>Água Santa para reaver uma escultura que ali enterrara há muitos anos; seu</p><p>relacionamento com Carolina também se torna tenso, pois ambos revivem o amor do</p><p>passado – ela acompanhou, de longe, o sucesso de João, recortando os jornais que</p><p>informavam sobre as andanças do artista. Com a morte de Atílio e depois de muitos</p><p>desacertos ao longo da trama, Carolina e João Maciel realizam o sonho de ficar juntos.</p><p>A estrutura da narrativa não se desenvolvia de forma cronológica, como é hábito</p><p>em telenovelas cujas tramas atravessam um longo período temporal48. As três épocas</p><p>enfocadas – 1900 a 1910, 1926 a 1936 e 1976 – se intercalaram em todos os 168 capítulos</p><p>48 Como exemplos cronologicamente próximos a O Casarão, temos as telenovelas Escalada (Globo, 1974), de autoria do próprio Lauro César Muniz – a ser comentada</p><p>posteriormente –, e Os Imigrantes (Bandeirantes, 1981), de Benedito Ruy Barbosa.</p><p>86</p><p>da ficção televisiva; evitava-se, ainda, que as três fases fossem sempre apresentadas em</p><p>uma mesma ordem: o encadeamento das temporalidades era determinado pelas</p><p>abordagens temáticas e visuais de cada capítulo.</p><p>Ao final, o casarão é vítima de uma amarga coincidência histórica: a nova ferrovia</p><p>passará exatamente pelo lugar onde ele está – ou seja, ele desaparecerá justamente devido</p><p>ao progresso que o erigiu.</p><p>O eterno retorno e a dança das temporalidades</p><p>A narrativa de O Casarão nos remete imediatamente ao mito de Crono, e não só</p><p>por este ser o deus do tempo na mitologia grega. Crono representa a força responsável</p><p>por tirar a vida daqueles que ela própria gerou: uma vez senhor do mundo, ele fora</p><p>alertado por seus pais, Urano (o Céu) e Geia (a Terra), de que seria destronado por um</p><p>dos seus filhos; passou, então, a devorar todos à medida que nasciam (GRIMAL, 2005,</p><p>p. 105). Na dimensão mítica de O Casarão, a fúria devoradora de Crono, para além da</p><p>ação do tempo, também é projetada pela dinâmica avassaladora do progresso – que</p><p>vitimará a edificação símbolo da obra.</p><p>O ciclo de vida do casarão, o reencontro de Carolina e João Maciel – dispostos a</p><p>recuperar todo o tempo que perderam – e as próprias idas e vindas temporais da narrativa,</p><p>encadeadas de forma a iluminar aspectos de determinadas questões em cada uma das três</p><p>épocas, são pontos que merecem ser compreendidos à luz da ideia de eterno retorno:</p><p>No pensamento nietzschiano, mais especificamente em suas ideias sobre o eterno</p><p>retorno, a questão da memória possui um lugar, pois é a chave para interrogar o passado;</p><p>no entanto, as respostas que Nietzsche sugere não devem partir da busca da verdade sobre</p><p>o passado, pois não é possível recuperar qualquer passado como totalidade. Justamente</p><p>porque as perguntas são lançadas a partir de um presente histórico que é dinâmico, daí o</p><p>passado ser uma reconstrução incessante. Assim, a memória, como passado, está sempre</p><p>retornando num movimento incessante, mas não repetidor. (ARANTES, 2011, p. 3)</p><p>Dessa forma, a obra se apresenta sob um sistema que, no sentir de Ricoeur (1995),</p><p>opera entre o tempo mortal e o tempo monumental. Tangencia-se aí a experiência da</p><p>finitude, isto é, o mitema do envelhecimento, e o casarão é também seu símbolo por</p><p>personificar da ação do tempo na vida dos personagens – e ser, ele próprio, um</p><p>personagem da história.</p><p>87</p><p>A mediar tempo íntimo e tempo monumental, bem como representando o efeito</p><p>de ironia dramática presente na obra – não é difícil ver uma personagem negar, em</p><p>determinada época, exatamente o que ela fizera/fará em outra, trocando-se a interrogação</p><p>“o que acontecerá” por “como aconteceu” (FERNANDES, 1997, p. 199) –, evocamos a</p><p>figura de Hermes, com seu poder de ligar, desligar, formar laços afetivos, comerciais e</p><p>políticos (SOUZA BRANDÃO, 1986, p. 168).</p><p>Durand (2002) percebe dois regimes na base de organização das imagens49, os</p><p>quais ele denominará regime diurno e regime noturno. O regime diurno consiste na</p><p>representação de estruturas heroicas e esquemas de ascensão e separação, regidos por uma</p><p>lógica de combate e purificação – guiam-se, dessa forma, pelo ímpeto de derrotar a morte</p><p>e o tempo. O regime noturno, por sua vez, se divide em dois grupos de estruturas e</p><p>esquemas: a estrutura mística e o esquema da queda e acocoramento, regidos por uma</p><p>lógica de equilíbrio, harmonia e repouso, buscando atenuar a morte e o tempo; e a</p><p>estrutura sintética e o esquema cíclico, regidos – como o próprio nome já diz – por uma</p><p>síntese das lógicas heroica e mística.</p><p>O regime predominante na narrativa de O Casarão é, portanto, o sintético, com</p><p>todas as irregularidades do mundo noturno. Conforme Durand (2002, p. 443), as</p><p>estruturas sintéticas, sob a lógica de causalidade, representam diacronicamente as</p><p>contradições ligadas pelo fator tempo, apresentando reflexos compreendidos na</p><p>dominante copulativa – da qual se deriva o movimento rítmico que ora pende para o</p><p>futuro, ora para o passado, em uma dinâmica cíclica do destino (DURAND, 2002, p. 282).</p><p>Dioniso, Psique e Midas</p><p>Ao abordar O Casarão “à luz das tochas” da mitologia, Paiva (1998, p. 4) observa</p><p>em João Maciel contornos análogos a Dioniso. Ora, João é pintor; seu universo se</p><p>inscreve no domínio das artes, da intuição, do lúdico. Ele é intempestivo, um viajante que</p><p>circula por lugares que lhe são desconhecidos; bebe, exalta-se, perturba o mundo à sua</p><p>volta, escreve poemas de amor à Carolina. João não se adapta à rotina do trabalho,</p><p>preferindo o prazer dos sentidos – um hedonista!</p><p>49 Sob a perspectiva da teoria geral do imaginário, falamos de imagens em uma dimensão ampla, entendendo-as como matriz de todo e qualquer discurso (mítico, literário, visual)</p><p>– visto que antecedem ontológica e temporalmente a palavra.</p><p>88</p><p>Quanto a Carolina, é interessante observar que o próprio autor indica, em uma</p><p>rubrica do roteiro do último capítulo, certa similaridade da protagonista feminina da trama</p><p>com a figura de Psique:</p><p>CENA 21/QUARTO DE HOTEL/INTERIOR/DIA/1936</p><p>Carolina sentada diante de um espelho (Psyché), angustiada. Está só no quarto. Indecisa.</p><p>Arrumou-se. Ajeita e dá retoque no penteado. Um tempo, levanta-se e olha pela janela,</p><p>afastando um pouco as pesadas cortinas. Atílio entra.</p><p>ATÍLIO – Você não disse que ia sair?</p><p>CAROLINA – Eu ia até... ia ver roupas, mas...</p><p>ATÍLIO – O comércio deve fechar às seis horas.</p><p>CAROLINA – Que horas são?</p><p>Atílio tira o relógio do bolso.</p><p>ATÍLIO – Quase cinco.</p><p>Um tempo com Carolina, que volta a sentar-se diante do espelho. Câmera fechando</p><p>devagar nela. Atílio toma um jornal e começa a ler. Carolina indecisa.</p><p>(BERNARDO; LOPES, 2009, p. 168)50</p><p>Sozinha no quarto de hotel, Carolina alude às tardes de Psique no palácio,</p><p>momentos em que ela não desfrutava da companhia de seu amor e ouvia apenas as vozes</p><p>que enchiam o ambiente (GRIMAL, 2005, p. 400) – aqui representadas pela voz interior</p><p>da protagonista, a pensar se deve ou não fugir com João.</p><p>Após a cena 22 mostrar João (ainda em 1936) à espera de Carolina, a cena 23 se</p><p>inicia quando Atílio acende o abajur do quarto. Ora, a desgraça de Psique é deflagrada</p><p>quando ela, sob influência das irmãs invejosas, resolve acender uma lucerna para observar</p><p>o rosto do marido enquanto dorme – uma gota de azeite fervente cai no rosto de Eros, o</p><p>Amor, fazendo com que este fuja (GRIMAL, 2005, p. 400). Ainda nessa cena, Carolina</p><p>resolve permanecer ao lado de Atílio – passará toda uma vida rastejante como lagarta, só</p><p>voltando a desfrutar da brisa fresca e se transformando em borboleta na velhice, ao</p><p>reencontrar João.</p><p>Munido de outra chave interpretativa, Paiva (1998) vê na Carolina de O Casarão</p><p>semelhanças com a figura de Ariadne, enquanto o personagem de Atílio possui traços de</p><p>Teseu. “A figura de Carolina nos permite imaginar alguém que constrói um fio (o fio de</p><p>Ariane), o qual permitiria Atílio (Teseu) escapar do labirinto em que se perdeu (o mundo</p><p>do poder, do dinheiro)” (PAIVA, 1998, p. 4).</p><p>50 Reprodução do roteiro original do último capítulo de O Casarão.</p><p>89</p><p>Na terceira fase da novela, Atílio é um homem acabado. Embora os médicos</p><p>afirmem que não há nada de errado com seu físico ou sua saúde, seu estado de espírito é</p><p>o um sujeito vencido, mais morto do que vivo. Esquecido pela cidade e alheio a tudo o</p><p>que o rodeia, passa os dias às voltas com as lembranças do passado, traduzidas em objetos</p><p>velhos, lixos guardados em um casebre próximo ao casarão. Ali é seu mundo – o mundo</p><p>de hoje, sua decadência, não lhe importa. A esclerose o mantém distante de tudo, e a</p><p>vontade também. Como o casarão, Atílio está condenado à destruição completa pela</p><p>chegada dos novos tempos.</p><p>Em meio a sua senilidade, Atílio começa a juntar fezes em uma banheira,</p><p>pretendendo transformá-las em ouro – Paiva (1998) vê aqui o pote de ouro de Teseu.</p><p>Também é possível enxergar o mito de Midas, o mais triste dos alquimistas – e não só</p><p>porque o marido de Carolina deseja adquirir o dom de transformar tudo em ouro. Como</p><p>Midas, Atílio pecou por hybris51 – orgulho funesto por render-se ao lado vil da vida.</p><p>Talvez seja possível. No fundo, acho que estrume e ouro se equivalem.52</p><p>Paiva (1998) ressalta, ainda, que a história de Carolina e João Maciel, em outra</p><p>modulação e atualizada, irá se repetir com Lina (Renata Sorrah), a neta de Carolina.</p><p>Casada com Estevão (Armando Bógus), ela se apaixona por Jarbas (Paulo José). Trata-</p><p>se, na verdade, da segunda reverberação da história de Maria do Carmo, ainda na fase de</p><p>1900-1910. Novamente as forças do eterno retorno se manifestam – ao contrário de suas</p><p>ancestrais, no entanto, Lina se rebela de fato, abandonando o marido para ficar ao lado</p><p>do homem que ama; em uma identificação de propósitos, recebe todo o apoio da avó.</p><p>Lauro César Muniz e o regime noturno sintético</p><p>De acordo com Fernandes (1997, p. 200), O</p><p>Casarão trazia para Lauro César</p><p>Muniz a ventura de fechar um ciclo espontâneo sobre a história de São Paulo, iniciado</p><p>em 1971 com Os Deuses Estão Mortos (Record) e continuado com Escada (Globo, 1974).</p><p>A partir dessa afirmação e observando a obra de Lauro para a televisão como um todo,</p><p>expandimos o escopo dessa análise.</p><p>Ao ciclo delineado por Fernandes, acrescenta-se Quarenta Anos Depois (Record,</p><p>1971), continuação de Os Deuses Estão Mortos. Enquanto esta focalizou a disputa da</p><p>liderança da fictícia cidade de Ouro Negro entre a família Almeida Santos, monarquista,</p><p>51 “A hybris leva o herói a agir e provocar os deuses, apesar de seus avisos, o que vai dar na sua vingança e na sua perda.” (PAVIS, 2011, p. 197)</p><p>52 Frase dita pelo personagem Jarbas (Paulo José) em cena que, já próxima do fim da novela, transparece a senilidade de Atílio. Disponível em: http://globotv.globo.com/rede-</p><p>globo/memoria-globo/v/o-casarao-atilio-ensandece/5075249/. Acesso em: 07 jun. 2017.</p><p>http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/o-casarao-atilio-ensandece/5075249/</p><p>http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/o-casarao-atilio-ensandece/5075249/</p><p>http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/o-casarao-atilio-ensandece/5075249/</p><p>http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/o-casarao-atilio-ensandece/5075249/</p><p>90</p><p>e os Lobo Ferraz, republicanos, em plena efervescência da abolição da escravatura e da</p><p>proclamação da República (últimas décadas do século XIX), Quarenta Anos Depois</p><p>saltou para 1928, mostrando a decadência dos Almeida Santos em uma sociedade cujas</p><p>linhas de força residiam na industrialização e na ascensão da classe média. Utilizou-se,</p><p>para isso, parte do elenco de Os Deuses Estão Mortos, com alguns atores fazendo tanto</p><p>os personagens da primeira telenovela envelhecidos quanto os netos desses após o salto</p><p>temporal (FERNANDES, 1997, p. 154-155).</p><p>Os deuses, aqueles que lutavam sob uma forte lógica de oposição e combate,</p><p>quando submetidos à causalidade do tempo, foram obrigados a aceitar as mudanças</p><p>sociais e a perspectiva da finitude, da qual a velhice é arauto – passaram a operar, por</p><p>conseguinte, em uma atmosfera de repouso.</p><p>Em Escalada53, Lauro tratou da trajetória do caixeiro-viajante Antônio Dias</p><p>(Tarcísio Meira) no período que vai de 1940 a 1975, tendo como pano de fundo momentos</p><p>marcantes da história do Brasil. Ao chegar à cidade de Rio Pardo, Antônio Dias desperta</p><p>a paixão em duas mulheres, Cândida (Susana Vieira), com quem se casa, e Marina (Renée</p><p>de Vielmond), irmã do cafeicultor Armando Alcântara Magalhães (Milton Moraes),</p><p>homem que vê Antônio como um inimigo. A crise mundial do café está em curso, e</p><p>Antônio decide apostar todas as suas fichas em uma plantação de algodão na fazenda de</p><p>Cândida; sua inexperiência, no entanto, somada à oposição constante de Armando, o leva</p><p>a perder toda a safra. Forçado a vender a fazenda e as terras ao inimigo, Antônio vai</p><p>embora de Rio Pardo para recomeçar a vida em outro lugar.</p><p>Na segunda fase da novela, iniciada em 1956, Antônio é um pequeno empresário</p><p>baseado no Rio de Janeiro, capital da República; maduro, parece ter perdido o velho</p><p>ímpeto empreendedor e se tornado um homem amargurado: não superou os fracassos do</p><p>passado e não se satisfaz com a vida que leva com Cândida – também não conseguiu</p><p>esquecer Marina. O destino de Antônio muda, porém, quando ele se associa ao industrial</p><p>italiano Valério Fachini (Sérgio Britto) e ambos se aventuram na construção da Brasília.</p><p>Do início das obras à conclusão da cidade, Antônio se torna um homem rico, separa-se</p><p>de Cândida e reencontra Marina.</p><p>53 As informações referentes à sinopse de Escalada foram encontradas em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/escalada.htm. Acesso em: 07 jun.</p><p>2017.</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/escalada.htm</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/escalada.htm</p><p>91</p><p>A terceira fase da história se dá com Antônio já aos 70 anos. Ainda casado com</p><p>Marina e morando em uma fazenda perto de Rio Pardo, ele trama a vingança que</p><p>significará sua realização pessoal, arrematando as terras de Armando.</p><p>Lauro realizou uma espécie de remake de Escalada quando escreveu para a</p><p>Record, em 2006, a novela Cidadão Brasileiro: a estrutura da trama era basicamente a</p><p>mesma, só foram trocados os nomes dos personagens – o protagonista de Cidadão</p><p>Brasileiro se chamava Antônio Maciel (Gabriel Braga Nunes), “síntese” do Antônio Dias</p><p>de Escalada e do João Maciel de O Casarão.</p><p>Mesmo que seus Antônios ainda mantenham uma postura combativa no final das</p><p>tramas, a predileção por narrar grandes sagas faz com que Lauro recaia novamente no</p><p>regime noturno sintético: os protagonistas de ambas as telenovelas, afinal, buscam o</p><p>retorno por meio da instauração do caos. Além disso, o último bloco de capítulos das duas</p><p>narrativas mostra os personagens refletindo acerca de toda a trajetória até ali, incorrendo-</p><p>se mais uma vez ao mitema do envelhecimento.</p><p>A figura do anti-herói é outra constante na obra de Lauro César Muniz. Ainda que</p><p>seus Antônios e João Maciel sejam pretensos candidatos a esta classificação, talvez o</p><p>mais célebre dos anti-heróis munizianos seja Renato Villar (Tarcísio Meira), protagonista</p><p>de Roda de Fogo (Globo, 1986). Empresário envolvido em um fabuloso esquema de</p><p>corrupção, passa a almejar sua redenção ao descobrir que tem um grave tumor no cérebro:</p><p>termina seu casamento para viver seu amor pela juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi)</p><p>e decide destinar parte dos lucros de sua empresa a uma fundação. Tais atitudes</p><p>desagradam a família e os sócios de Renato, que passam a lutar por sua destruição – ele,</p><p>contudo, não se faz de rogando, mostrando-se disposto a engendrar uma vingança contra</p><p>aqueles que o traíram.</p><p>Um personagem mais recente do rol de anti-heróis de Lauro é Tony Castellamare</p><p>(Gabriel Braga Nunes), de Poder Paralelo (Record, 2009) – telenovela inspirada no</p><p>romance Honra ou Vendetta, de Sílvio Lancellotti. Brasileiro radicado na Itália, Tony se</p><p>apresenta oficialmente como comerciante exportador de vinho e azeite – em Palermo, no</p><p>entanto, comenta-se que essa atividade comercial é apenas uma fachada: ele seria, na</p><p>verdade, um homem muito poderoso na hierarquia da máfia siciliana. Estranhamente,</p><p>Tony não desmente tais rumores – ao contrário, parece cultivar essa imagem. Sua família</p><p>é vítima de um atentado na Itália: a mulher e as duas filhas acabam morrendo em uma</p><p>92</p><p>explosão de automóvel destinada originalmente a ele. Rumando a São Paulo, Tony jura</p><p>vingança: sabe que a ordem para o matar partiu do Brasil.</p><p>No Brasil, TONY inicia a caçada ao Capo dei Capi (chefe dos chefes). Caçará,</p><p>mas também será caçado. Sua ação deixa um rastro de dúvida: esse homem corajoso e</p><p>sedutor é um homem de bem ou Capo da máfia? Herói/bandido?(MUNIZ,2009,p.3-4).</p><p>A dinâmica do eterno retorno parece fazer sentido na própria trajetória de Lauro</p><p>na televisão. Para mais das temáticas recorrentes, voltadas aos marcos históricos de nosso</p><p>país, o autor constantemente revisita suas próprias obras – além do já citado remake de</p><p>Escalada, vale mencionar a telenovela que Lauro fez depois de O Casarão, Espelho</p><p>Mágico (Globo, 1977): a trama nada mais era do que uma atualização de Estrelas no</p><p>Chão, que ele escrevera para a Tupi em 1967 sob o pseudônimo de João Amaral – nome,</p><p>inclusive, do personagem de Espelho Mágico que escrevia Coquetel de Amor, uma</p><p>“novela dentro da novela”. O enfoque de Estrelas no Chão e de sua “irmã” dez anos mais</p><p>nove é o mesmo: “humanizar” a classe artística, mostrando o dia-a-dia de um grupo de</p><p>pessoas ligadas a esse meio.</p><p>A própria ideia original de O Casarão, aliás, partiu de uma antiga peça teatral de</p><p>Lauro: A Morte do Imortal, de 1965; esta, por sua vez,</p><p>fora inspirada no teleteatro A</p><p>Estátua, escrito por ele em 1961 para a TV Excelsior, e na crônica Nu Para Vinicius, da</p><p>autoria de Helena Silveira, publicada pela Folha de São Paulo em 1961. (NÉIA, 2015)</p><p>Considerações finais</p><p>O Casarão se configura como um grande enigma, magnum opus televisiva cujo</p><p>inventário antropológico se apresenta como uma esfinge que nos inquere a todo instante:</p><p>“decifrai-me ou vos devoro”. Não deixa de ser irônico que, neste artigo, retornemos</p><p>justamente a essa telenovela: o eterno retorno aqui não se impõe somente como mitema</p><p>recorrente na obra, mas como vínculo entre o pesquisador e o objeto de estudo.</p><p>Lauro César Muniz faz coro a autores como Benedito Ruy Barbosa, Bráulio</p><p>Pedroso, Dias Gomes e Walter George Durst, que se lançaram, entre os anos 1960 e 1970,</p><p>ao desafio apolíneo de lutar contra o “dragão da indústria” inseridos no cerne desta,</p><p>munidos por uma visão idealizada de que conseguiriam gerar um pensamento crítico a</p><p>uma plateia de milhares de pessoas (SACRAMENTO, 2012). Esse movimento é essencial</p><p>na formação de uma linguagem própria da ficção televisiva em nosso país, garantindo a</p><p>especificidade da telenovela brasileira ao mesclar, à carpintaria advinda das radionovelas,</p><p>a perspectiva crítica instaurada no teatro no período anterior ao golpe de 1964.</p><p>93</p><p>Como frisa Anaz (2016), porém, quando investigamos os imaginários construídos</p><p>por produtos artísticos e/ou culturais, devemos tomar cuidado para não reduzirmos os</p><p>aspectos das obras estudadas a questões ideológicas presentes em seu contexto de</p><p>produção: é necessário ultrapassarmos a instância história para imergirmos no inventário</p><p>arquetípico desses produtos em busca de mitos patentes e latentes. Desta maneira, não se</p><p>objetiva um processo de desconstrução, e sim de reconstrução – no dizer de Sontag (1987,</p><p>p. 23), uma redução do conteúdo “para que possamos ver as coisas em si”. Estas “coisas</p><p>em si” nada mais são que os mitemas na metodologia proposta por Durand (1985).</p><p>Paiva (2010) crê que as telenovelas podem ser vistas como séries de imagens cuja</p><p>disposição permite mostrar as faces do Brasil em toda a sua potência, exibindo estilos</p><p>híbridos que caracterizam nossa cultura brasileira. Partilhamos desse pensamento e</p><p>acreditamos que, ao analisarmos as telenovelas à luz da teoria geral do imaginário, a</p><p>despeito de todas as mediações técnicas e ideológicas da mídia, devemos primeiramente</p><p>mergulhar na instância arquetípica dessas teleficções em busca de seus substratos míticos</p><p>– responsáveis por “uma experiência multissensorial, revelando o que há de perigoso e</p><p>explosivo na vida social, sem ocultar a sua parte de fascínio e beleza” (PAIVA, 2010, p.</p><p>18). Munidos deste arcabouço, podemos nos voltar, então, aos vínculos da obra com seu</p><p>entorno de emergência, tencionando compreender como se deu o compartilhamento</p><p>daquele imaginário com o público, a crítica e a sociedade.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ANAZ, Sílvio. The archetypal images in the scientific and technological imaginary. The</p><p>International Journal of the Image, v. 7, n. 3, p. 13- 23, 2016.</p><p>ARANTES, Luiz Humberto M. Memória, biografia e cena. In: VI REUNIÃO CIENTÍFICA DA</p><p>ABRACE. Porto Alegre: 2011.</p><p>BERNARDO, André; LOPES, Cintia. A seguir, cenas do próximo capítulo: as histórias que</p><p>ninguém contou dos 10 maiores autores de telenovela do Brasil. São Paulo: Panda Books, 2009.</p><p>DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia</p><p>geral. São Paulo, Martins Fontes, 2002.</p><p>______. Sobre a exploração do imaginário, seu vocabulário, métodos e aplicações</p><p>transdisciplinares: mito, mitanálise e mitocrítica. Revista da Faculdade de Educação (USP), v. 11,</p><p>n. 1-2, p. 244-256, dez. 1985.</p><p>FERNANDES, Ismael. Memória da telenovela brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1997.</p><p>GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.</p><p>94</p><p>NÉIA, Lucas Martins. O Casarão, de Lauro César Muniz: genealogia de uma telenovela</p><p>experimental. In: DAVINO, Glaucia; BELLICIERI, Fernanda. (Org.). Cenas das interfaces com</p><p>o mercado: histórias de roteiristas. São Paulo: NACL Editora, 2015.</p><p>PAIVA, Cláudio Cardoso de. Dionísio na Idade Mídia: estética e sociedade na ficção televisiva</p><p>seriada. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010.</p><p>______. Dionísio, Ariane e Teseu nos labirintos da ficção: uma leitura social da telenovela O</p><p>Casarão. 1998. Disponível em: http://bocc.ubi.pt/pag/cardoso-claudio-dionisio-ariane-teseu.html.</p><p>Acesso em: 07 jun. 2017.</p><p>PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.</p><p>RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo II. Campinas: Papirua: 1995.</p><p>SACRAMENTO, Igor. Nos tempos de Dias Gomes: a trajetória de um intelectual comunista nas</p><p>tramas comunicacionais. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação</p><p>da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.</p><p>SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.</p><p>SOUZA BRANDÃO, Junito de. Mitologia grega: volume I. Petrópolis: Vozes, 1986.</p><p>Originais</p><p>MUNIZ, Lauro César. Poder Paralelo. Sinopse original. Acervo Lauro César Muniz, São Paulo,</p><p>2009.</p><p>http://bocc.ubi.pt/pag/cardoso-claudio-dionisio-ariane-teseu.html</p><p>http://bocc.ubi.pt/pag/cardoso-claudio-dionisio-ariane-teseu.html</p><p>95</p><p>Pokémon GO: a abertura aos diálogos de uma experiência-em-rede</p><p>em narrativas transmídia</p><p>Pokémon GO: an opening to the dialogues of an network-experience in</p><p>transmedia storytelling</p><p>João Pedro de Azevêdo Machado Mota – Yan Tibet54</p><p>Resumo: A complexidade de diálogos possíveis nas tramas do universo em transmedia</p><p>storytelling Pokémon (1996) pode ser melhor compreendida enquanto um fenômeno que</p><p>atinge nichos de público de diversas faixas etárias, grupos culturais e classes econômicas,</p><p>com relação as experiências individuais e coletivas potencializadas pelas redes em que</p><p>esta narratividade rizomática se desenvolve atualmente. Este universo narrativo</p><p>complexo, permeado por uma multiplicidade de linguagens, sistemas de significação e de</p><p>meios, desde séries animadas para TV, longas de animação, jogos de cartas, de</p><p>computador e de dispositivos móveis, reúne em si, a partir dos diálogos intercambiados</p><p>entre seus respectivos públicos heterogêneos, a oportunidade de expressar a hipótese de</p><p>uma experiência-em-rede, resultante das relações estabelecidas dialeticamente entre</p><p>experiências coletivas e vivências individuais nas redes digitais contemporâneas.</p><p>Compreendemos que este universo transmidiático pode ser melhor investigado pelos seus</p><p>potenciais profundamente agregadores, cooperativos e solidários, ao reunir coletivamente</p><p>seus participantes em busca de uma experiência reticular compartilhada amplamente</p><p>beneficiada pelo desenvolvimento, popularização e distribuição das redes</p><p>contemporâneas em todo o planeta. Este universo narrativo expandiu-se e foi</p><p>reapropriado por públicos que se empenham, cooperativamente, no trabalho ativo de caça</p><p>e coleta desta narratividade transmidiática própria do século XXI, caracterizado pela</p><p>profusão das redes da Internet em todo o mundo. Por meio da ação coletiva,</p><p>solidariamente, as suas redes de sentidos tornam-se mais amplas, coesas e consistentes</p><p>do que quando tentamos assimilá-la individualmente de forma dispersa, solitariamente.</p><p>Com seu aniversário de 20 anos e consequente lançamento do jogo de realidade</p><p>aumentada Pokémon GO (2016), tendo-se tornado especialmente popular entre a</p><p>juventude metropolitana, as fronteiras entre o real e o virtual se confundem, num universo</p><p>extremamente complexo, jogado de forma extremamente simples, que abre espaço à</p><p>aproximações, colaborações e trocas entre pessoas. Acreditamos que estes intercâmbios</p><p>ocorrem mais em função do elemento humano do que, supostamente, em função do</p><p>desenvolvimento técnico — uma constante essencialmente humana —, de tal forma que</p><p>nas narratividades rizomáticas</p><p>contemporâneas em ascensão, as trocas entre heterogêneos</p><p>públicos tendem hipoteticamente à ocorrência de uma experiência-em-rede que abre</p><p>espaço à potência de diálogos reais em sociedade.</p><p>Palavras-chave: Pokémon GO; diálogos; experiência-em-rede; narrativa transmídia;</p><p>redes.</p><p>54 Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP (2017), é bacharel em Cinema e Audiovisual pela UFF (2014), com formação anterior incompleta</p><p>em Ciências Sociais pela UFBA (2008). Realizou intercâmbio acadêmico na ESTC - IPL, Portugal (2012/2013), via programa de intercâmbio da UFF. Profissionalmente, assina</p><p>com o pseudônimo Yan Tibet, atuando como produtor, roteirista e editor nas áreas de Cinema e TV desde 2009. Email: yantibet@usp.com.</p><p>mailto:yantibet@usp.com</p><p>mailto:yantibet@usp.com</p><p>96</p><p>Abstract: The complexity of possible dialogues in the texture of the universe in transmedia</p><p>storytelling Pokémon (1996) can be better understood as a phenomenon that affects</p><p>niches audiences of diverse age groups, cultural groups and economic classes, in relation</p><p>to the individual and collective experiences potentialized by the networks in which this</p><p>rhizomatic narrativity is currently developed. This complex narrative universe,</p><p>permeated by a multiplicity of languages, systems of meaning and medium, from animated</p><p>series to TV, animated films, card games, computer games and mobile devices, gathers</p><p>in itself, from the dialogues exchanged between their respective heterogeneous audiences,</p><p>the opportunity to express the hypothesis of an network-experience, resulting from the</p><p>dialectically established relations between collective experiences and individual</p><p>experiences in contemporary digital networks. We understand that this transmediatic</p><p>universe may be better investigated by its deeply social, cooperative and supportive</p><p>potentials, by collectively bringing together its participants in search of a shared</p><p>networking experience widely benefited by the development, popularization and</p><p>distribution of contemporary networks across the globe. This narrative universe has been</p><p>expanded and reappropriated by publics cooperatively engaged in the active work of</p><p>hunting and collecting this typical 21st-century transmedia narrativity, characterized by</p><p>the profusion of Internet networks around the world. Through collective action, in</p><p>solidarity, their network of meanings become broader, cohesive and consistent than when</p><p>we try to assimilate it individually in a scattered, solitary way. With its 20-year</p><p>anniversary and subsequent launch of the Pokémon GO (2016) augmented reality game,</p><p>having become especially popular among metropolitan youth, the boundaries between</p><p>the real and the virtual are confused, in an extremely complex universe, played in an</p><p>extremely simple way, which opens space for approximations, collaborations and</p><p>exchanges between people. We believe that these exchanges occur more due to the human</p><p>element than, supposedly, due to the technical development (an essentially human</p><p>constant) in such a way that in the contemporary rhizomatic narratives in on the rise</p><p>nowadays the exchanges between heterogeneous public tend hypothetically to the</p><p>occurrence of a network-experience that open space to the power of real dialogues in</p><p>society.</p><p>Key words: Pokémon GO; dialogues; network-experience; transmedia storytelling;</p><p>networks</p><p>O que é narrativa transmídia?</p><p>A narrativa transmídia — do inglês transmedia storytelling — é um conceito</p><p>complexo e em constante desenvolvimento, que muitos autores, pesquisadores e</p><p>acadêmicos têm se debruçado para definir, na atualidade. É importante ser realizada uma</p><p>distinção entre as noções de transmedia e storytelling. Partindo-se da premissa de que</p><p>ambos podem funcionar juntos, na forma de transmedia storytelling, naturalmente, ambos</p><p>também têm sentido isoladamente.</p><p>As noções em torno de storytelling, cujo significado literal é “história”, ou mais</p><p>precisamente “contação de história”, tem sido habitualmente traduzido para o português</p><p>como “narrativa”. Compreende-se a narrativa enquanto uma prática social que tem sido</p><p>97</p><p>realizada pela humanidade há pelo menos trinta mil anos, segundo correntes da</p><p>Antropologia Evolucionária, período que corresponde às estimativas médias de quando a</p><p>linguagem surgiu.</p><p>O conceito de transmedia, traduzido para o português como “transmídia”, contém</p><p>em si uma definição embrionária trazida na década de noventa por Marsha Kinder (1991,</p><p>p.1), com base nos estudos de Julia Kristeva (1980, pp.65-66) sobre o conceito precursor</p><p>de dialogismo de Mikhail Bakhtin (1990), conceituado pelo autor russo desde a década</p><p>de 1920, em que Kristeva teria se inspirado, em suas formulações desde a década de 1960.</p><p>De sua relação radical com a intertextualidade, sob uma perspectiva educacional,</p><p>o conceito de transmídia será revisto ao longo século XXI por diferentes autores, como</p><p>Henry Jenkins, Carlos Alberto Scolari e Nuno Bernardo. Longe de esgotar a compreensão</p><p>da transmedia storytelling, visamos descrever este conceito a partir da confrontação de</p><p>definições apresentadas por diferentes autores, historicamente, para então estendermos</p><p>nossa compreensão ao contexto das redes digitais em que as narrativas transmídia se</p><p>desenvolvem de forma plena, hipoteticamente, na contemporaneidade.</p><p>Primeiramente cunhado pelo teórico estadunidense, Henry Jenkins, sobre o termo</p><p>transmedia storytelling, o conceito neste autor tem relação direta com o contexto da</p><p>“cultura da convergência”, que origina seu livro homônimo, de 2006. Para Jenkins, o</p><p>conceito refere-se “a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das</p><p>mídias”, configurando-se enquanto uma “estética que faz novas exigências aos</p><p>consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento” (2009a,</p><p>p.49).</p><p>A transmedia storytelling é entendida, então, por este autor, como “a arte da</p><p>criação de um universo [em que] os consumidores devem assumir o papel de caçadores e</p><p>coletores, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas</p><p>observações com as de outros fãs, em grupos de discussão on-line” (JENKINS, 2009a,</p><p>p.49), ao colaborarem cooperativamente para que todos os envolvidos neste universo</p><p>narrativo ficcional tenham uma experiência mais enriquecedora coletivamente.</p><p>Marsha Kinder (1991, p.1), por sua vez, investiga, já na década de 1990, o</p><p>conceito transmedia intertextuality no universo ficcional infantil das franquias de “super</p><p>entretenimento”, em cujo contexto a autora encontrou um poderoso potencial de interação</p><p>entre espectadores-jogadores, ao, literalmente, desvalorizarem a abordagem comercial</p><p>98</p><p>destas narrativas audiovisuais, em favor das trocas afetivas entre seus diversos nichos de</p><p>público.</p><p>Para Scolari (2009), estas narratividades possuem uma estrutura particular que se</p><p>expande por diferentes linguagens, dentre a verbal, a icônica, etc., e por diferentes</p><p>“mídias”, dentre o cinema, os quadrinhos, a televisão, os videogames, etc., não podendo</p><p>serem entendidas como apenas uma adaptação do conteúdo de uma mídia simplesmente</p><p>transplantada para outra. Assim, a história que os quadrinhos contam não seriam a mesma</p><p>contada na televisão ou no cinema (SCOLARI, 2009, p.587), de maneira que se as</p><p>diferentes mídias e linguagens participam e contribuem para a construção do universo</p><p>narrativo transmídia, seria precisamente esta “dispersão textual” uma das mais</p><p>importantes fontes de complexidade da cultura popular contemporânea.</p><p>Com a criação da Internet, surgida na década de 1960 e popularizada a partir da</p><p>década de 1980, e especialmente a partir da década de 1990, que a narrativa transmídia</p><p>pôde se consolidar como uma nova forma de contar histórias, marcada pelas relações</p><p>horizontais de interação entre diferentes nichos de públicos, virtualmente interconectados</p><p>de forma desterritorializada nas redes</p><p>da Internet, em torno das narrativas da cultura de</p><p>massa que passaram a se multiplicar, em diferentes meios, em torno de um mesmo</p><p>universo narrativo diegético.</p><p>Além do trabalho dos produtores de conteúdo tradicionais, a construção destas</p><p>novas narratividades dependem da participação ativa de diversos nichos de público e</p><p>grupos de fãs, cuja trocas mediadas pelas redes, dentre fóruns de discussão, redes sociais,</p><p>páginas e softwares colaborativos da plataforma wiki, etc., têm sido fundamentais para a</p><p>construção deste outro universo de narrativa possível, ao oferecer uma experiência-em-</p><p>rede a públicos heterogêneos.</p><p>Do contato com uma primeira narrativa de um universo em transmedia</p><p>storytelling, pode surgir nos leitores o interesse em buscar mais aprofundamento sobre a</p><p>história, buscando-se mais fragmentos narrativos do universo em questão pelo acesso a</p><p>mídias afins para se tentar compreender melhor a complexidade da história que aí é</p><p>contada, ou mesmo interesse à contribuição da própria interpretação da história original,</p><p>ao inverter-se a lógica midiática original de conteúdo feito por profissionais para</p><p>consumidores, numa indústria originalmente verticalizada.</p><p>99</p><p>Hoje, as relações têm se tornado marcadamente mais horizontais, à medida que as</p><p>redes digitais são democratizadas a maiores estratos da sociedade — tanto pela ampliação</p><p>da acessibilidade, mas, sobretudo, pela ampliação da formação básica necessária para que</p><p>mais pessoas possam ser alfabetizadas digitalmente para este acesso —, a ponto de</p><p>qualquer pessoa em posse de um celular com aplicativo de edição de vídeo embutido à</p><p>configuração original do aparelho e acesso à Internet poder assumir o papel de “produtor</p><p>de conteúdo”, como bem percebido por Toffler (2012) ao conceito do prosumidor —</p><p>mesmo que de forma amadora —, como ocorre no caso de uma infinidade de fanfics,</p><p>criadas por comunidades do ciberespaço.</p><p>O case Pokémon GO (2016)</p><p>Surgido originalmente no ano de 1996, o universo de Pokémon multiplicou-se em</p><p>uma infinitude de outras linguagens, desde jogos de cartas, jogos de computador, séries</p><p>de desenhos infantis animados, longas de animação, etc. Um pressuposto importante deste</p><p>trabalho é notarmos a importância de ultrapassarmos o senso comum de rotulá-lo como</p><p>uma “mania” puramente infantil, ao encará-lo enquanto um fenômeno relevante da</p><p>cultura, dando-lhe a devida magnitude de importância societária, dada a sua efetiva</p><p>influência sobre diversos grupos sociais, a ser melhor investigado por seus potenciais</p><p>profundamente agregadores, cooperativos, solidários, ao reunir coletivamente seus</p><p>participantes em busca de uma espécie de experiência vivida individualmente e</p><p>compartilhada coletivamente por seus nichos de público.</p><p>Ao encará-lo enquanto um hábito cultural que se propõe enquanto um convite à</p><p>interação social que potencialmente aproxima pessoas de várias idades — desde pessoas</p><p>mais idosas à crianças, de jovens à adultos —, aprendemos pela análise dos pedagogos</p><p>Buckingham e Sefton-Green que:</p><p>As crianças podem assistir ao desenho animado na televisão, por</p><p>exemplo, como meio de colher informações que mais tarde utilizarão</p><p>no jogo do computador ou na troca de cartões, e vice-versa. [...] Os</p><p>textos de Pokémon não são planejados apenas para serem consumidos,</p><p>no sentido passivo da palavra. [...] A fim de fazer parte da cultura de</p><p>Pokémon e aprender o que você precisa saber, é preciso buscar</p><p>ativamente novas informações e novos produtos e, fundamentalmente,</p><p>envolver-se com outras pessoas ao fazê-lo (BUCKINGHAM &</p><p>SEFTON-GREEN, 2004, p.22 apud JENKINS, 2009a, p.184)</p><p>Entendemos que seu slogan evoca uma mudança de perspectiva quanto ao tipo de</p><p>atitude assumida pelos seus novos públicos, para viverem-no plenamente: “Pokémon:</p><p>Gotta Catch ‘Em All”. Esta expressão, amplamente referenciada ao universo de Pokémon,</p><p>100</p><p>pode ser traduzida, literalmente, do inglês coloquial para o português igualmente</p><p>coloquial como: “Pokémon: temos que pegar todos eles”. Ela contém em si um forte</p><p>potencial de direcionar uma postura, se originalmente mais “passiva” e solitária dos jogos</p><p>de computador tradicionais, à outra potencialmente mais ativa e solidária de busca, caça</p><p>e coleta coletivamente, no contato com seu universo narrativo.</p><p>Em Pokémon GO (2016), as fronteiras entre o real e o virtual se confundem, ao</p><p>podermos “ver” os monstrinhos desse universo pela tela do celular, ao apontarmos nossas</p><p>câmeras dos celulares para localidades reais específicas do mundo real em que eles</p><p>“aparecem” segundo o obscuro algoritmo da produtora Nintendo — que, veremos, não é</p><p>tão obscuro assim, mas bem pensado comercialmente. Qualquer um de nós com o</p><p>aplicativo gratuitamente instalado em nossos celulares, com acesso à Internet e à um</p><p>sistema de GPS, ao conectarmo-nos ao servidor da Niantic, temos oportunidade de</p><p>encontrar pokémons virtuais em lugares reais, ao podermos “capturá-los” em tempo real,</p><p>num universo extremamente complexo, jogado de forma extremamente simples, que abre</p><p>espaço à aproximações, colaborações e trocas entre pessoas no mundo real, por diversas</p><p>razões. Vejamos o porquê:</p><p>a) o jogo permite uma aproximação entre as pessoas, na medida em que, para</p><p>“capturar” pokémons no Pokémon GO, nós precisamos, literalmente, movermo-nos pelo</p><p>mundo “real” para encontrá-los — sendo que eles são muito mais facilmente encontrados</p><p>em lugares públicos nas metrópoles, como praças, universidades, cafés, shoppings,</p><p>cartões postais, etc., do que em espaços rurais isolados, obviamente, por motivos</p><p>comerciais. Ou seja, ao buscá-los nos chamados Pokestops, onde há grande número de</p><p>pessoas em busca dos itens especiais de “captura” — como pokebolas, incensos,</p><p>incubadoras de ovos —, o convite aos encontros se estabelece, sendo sempre possível</p><p>encontrarmos jogadores das faixas mais jovens tentando capturá-los nestes espaços</p><p>públicos, eventualmente, desde 2016;</p><p>b) o jogo permite a colaboração, na medida em que, sendo os jogadores divididos</p><p>em três grandes times nas cores azul (grupo “Mystic”), amarela (grupo “Instinct”) e</p><p>vermelha (grupo “Valor”), para se “conquistar” um Ginásio dominado por um time</p><p>específico em alguma localidade real, se a tarefa é improvável (quase impossível) para</p><p>um jogador individual — dado que cada Ginásio tem pokémons de outros jogadores</p><p>defendendo-o —, a conquista ao menos lúdica deste Ginásio torna-se possível, para</p><p>grupos de jogadores de um mesmo time, reunidos presencialmente naquele Ginásio, para</p><p>101</p><p>“tomá-lo”, coletivamente, com seus respectivos pokémons. Lembremos que, apesar da</p><p>desterritorialidade das redes, só se chega ao Ginásio virtual de Tóquio, segundo a práxis</p><p>do universo lúdico-diegético de Pokémon GO, com seu aparelho celular, com GPS ligado,</p><p>situando-se física, local e presencialmente na cidade de Tóquio. Ou seja, não há chance</p><p>de se “chegar” virtualmente a um Ginásio de Tóquio, no Japão, com seus amigos,</p><p>encontrando-se no Ginásio da Avenida Paulista, em São Paulo, por exemplo — a não ser,</p><p>é claro, que você use um aplicativo de cheating (trapaça), que falseie sua localização pelo</p><p>GPS, de São Paulo, para uma localidade no Japão (o que sequer consideramos como</p><p>possibilidade, porque “roubar”, no jogo ou na realidade, nunca se deve considerar como</p><p>uma postura moral séria);</p><p>c) o jogo estimula as trocas, ao incentivar o deslocamento físico — e,</p><p>consequentemente, a atividade física — entre seus jogadores pelo mundo, pelo uso do</p><p>GPS dos celulares para se poder encontrar e “capturar” pokémons que se localizam em</p><p>ambientes afins às suas características físicas e biológicas — dado que pokémons do</p><p>elemento “água” se encontram mais nas proximidades de lagoas, cachoeiras e praias, por</p><p>exemplo. “Capturas” estas que, contraditoriamente, ainda são bastante restritas ao mundo</p><p>dito “urbano”, sendo que, ironicamente, estes animais ficcionais ditos “selvagens” são</p><p>muito pouco encontrados</p><p>nos ambientes rurais em que há raríssimos Pokestops, mas</p><p>muito encontrados em locais onde o comércio e os serviços são abundantes nas regiões</p><p>metropolitanas, o que se explica pela estratégia de concentrar a existência destes animais</p><p>tipicamente urbanos onde existe o “capital” para manter seu negócio midiático. Note-se</p><p>que é possível “domesticá-los” pela simples ação de capturá-los com uma variedade de</p><p>pokébolas existentes, de tal maneira que muitas delas só podem ser adquiridas se</p><p>compradas com dinheiro real no site da companhia.</p><p>Ou seja, Pokémon GO, sendo uma narrativa de um universo em narrativa</p><p>transmídia potencialmente capaz de aproximar as pessoas, não deixa de ser uma</p><p>mercadoria da cultura de massa neoliberal que se baseia nas relações comerciais que o</p><p>sustentam enquanto produto cultural tipicamente urbano, essencialmente dependente da</p><p>tecnologia — o que, mais uma vez, não o exime de seus potenciais em aproximar pessoas,</p><p>um argumento muito importante a ser contextualizado. Inclusive, novas atualizações,</p><p>previstas ainda para o ano de 2017, prevêem a possibilidade de “trocas” de pokémons</p><p>entre pessoas próximas umas das outras, e mesmo a possibilidade lúdica e interativa de</p><p>102</p><p>batalhas entre jogadores, como nos jogos originais do Game Boy, ou das séries animadas</p><p>da década de 1990.</p><p>De um lado, é importante compreendermos este e outros fenômenos de narrativa</p><p>transmídia — ao olhar umbertoeconiano —, não somente pela perspectiva “apocalíptica”</p><p>(ECO, 2015), entendido como um produto da indústria cultural japonesa em expansão por</p><p>todo o mundo: de fato, um negócio lucrativo, cuja franquia já arrecadou mais de ¥6.0</p><p>trilhões no mundo, o que equivale a US$53,64 bilhões, segundo dados oficiais da</p><p>companhia.</p><p>De outro lado, não devemos somente elogiá-lo de forma “integrada”, ao vermos</p><p>tão somente seus pontos positivos, sem o devido olhar crítico sobre os males que também</p><p>provoca: dentre os não infrequentes acidentes físicos com seus jogadores, em função da</p><p>tentativa de se aproximar de lugares perigosos do mundo real para “capturar” os</p><p>monstrinhos, incluindo-se afogamentos, acidentes de trânsito e quedas de locais altos pela</p><p>desatenção entre as fronteiras do mundo real e virtual; ou mesmo uma contraditória onda</p><p>de insociabilidade entre alguns jovens, em razão do vício provocado pelo jogo, em que</p><p>muitas vezes a pessoa se abstém de interagir socialmente para ficar “capturando”</p><p>pokémons em eventos sociais; e mesmo uma certa alienação quanto a este universo</p><p>ficcional, que passa a dominar os interesses de alguns em detrimento das</p><p>responsabilidades cotidianas “reais”, fatos que ocorrem, principalmente, entre as faixas</p><p>etárias mais jovens.</p><p>É preciso buscarmos indícios que, contrapostos, mostre-nos o peso dos dois lados,</p><p>ao nos indicar se as narrativas transmídia nos conduziriam a:</p><p>a) um mundo mais individualista, alienado e passivo; ou se:</p><p>b) favoreceriam à criação de um mundo mais colaborativo, generoso e sociável,</p><p>mediado pelas redes; ou ainda:</p><p>c) se seria um misto de ambas possibilidades, tanto com pontos negativos, quanto</p><p>positivos.</p><p>Ao meio termo da compreensão de que as narrativas transmídia, simultaneamente,</p><p>permitem-nos bons e maus usos da relação estabelecida pelos indivíduos com as</p><p>narratividades rizomáticas contemporâneas, é crucial notarmos que a análise de</p><p>fenômenos tecno-societários nunca deve se limitar enaltecimento da esfera virtual e</p><p>tecnológica, sob o risco de se perderem no limbo intelectual do que, ao nosso ver, seria a</p><p>103</p><p>mais latente defesa do elogio ingênuo à tecnologia como falsamente capaz da</p><p>transformação social per si, o que, em nosso ver, é um categórico equívoco: na medida</p><p>em que a Internet não é uma ferramenta de comunicação revolucionária por si, mas</p><p>depende do uso que se faz dela. Ou seja, o que mais importa não é a tecnologia em si, que</p><p>tem se desenvolvido desde os primórdios da humanidade, mas o uso que fazemos</p><p>socialmente dela.</p><p>Se para construirmos um mundo mais justo, humano e horizontal, baseado em</p><p>experiências reticularmente coletivas; ou para acirrarmos as diferenças das pirâmides de</p><p>poder, concentrarmos os recursos sobre uma “elite tecnológica” e verticalizarmos cada</p><p>vez mais as relações humanas entre aqueles que têm acesso aos meios e aqueles que</p><p>(ainda) não têm — ou, se têm, ainda não foram orientados, ajudados, alfabetizados a como</p><p>melhor utilizá-los, para sua própria libertação social e autonomia pessoal próprias.</p><p>Contraditoriamente, apesar de nascerem, ao seio do capitalismo neoliberal, de</p><p>uma espécie de “nova cultura de massa 2.0”, o contexto das redes digitais em que se</p><p>desenvolvem as narrativas transmídia é que, em nosso ver, hipoteticamente, ofereceriam</p><p>uma chance de aproximações coletivas entre os novos prosumidores majoritariamente</p><p>metropolitanos, habitantes do ciberespaço do século XXI.</p><p>Neste artigo elaboramos parte do desenvolvimento de um subcapítulo</p><p>originalmente contido em nossa dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação</p><p>em Meios e Processos Audiovisuais, na ECA-USP (2017), ao buscarmos contribuir com</p><p>um modesto alargamento do conhecimento sobre o nosso campo, no entendimento destas</p><p>novas narratividades rizomáticas contemporâneas, ao analisarmos brevemente o estudo</p><p>de caso de Pokémon GO (2016) sobre os seus hipotéticos potenciais de aproximação,</p><p>colaborações e trocas societárias de uma experiência-em-rede, no novo contexto das redes</p><p>digitais contemporâneas da Internet.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BAKHTIN, Mikhail. Dialogism: Bakhtin and his World. London: Routledge, 1990.</p><p>BUCKINGHAM, David & SEFTON-GREEN, Julian. Structure, Agency, and Pedagogy in</p><p>Children’s Media Culture. In: Pikachu’s Global Adventure: The Rise and Fall of Pokémon.</p><p>Edição: Joseph Tobin. Durham: Duke University Press, 2004.</p><p>ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 7. ed. Tradução: Pérola de Carvalho. Coleção</p><p>Debates: Vol. 19. São Paulo: Perspectiva, 2015.</p><p>104</p><p>JENKINS, Henry (a). Cultura da Convergência. 2. ed. Tradução: Susana Alexandria. São Paulo:</p><p>Aleph, 2009.</p><p>KINDER, Marsha. Playing with Power in Movies, Television, and Video Games: from Muppet</p><p>Babies to Teenage Mutant Ninja Turtles. Berkeley: University of California Press, 1991.</p><p>KRISTEVA, Julia. Word, Dialogue, and Novel. In: Desire in Language: A Semiotic Approach to</p><p>Literature and Art. Edição: Leon S. Roudiez. Tradução: Thomas Gora et al. Nova Iorque:</p><p>Columbia University Press, 1980.</p><p>SCOLARI, Carlos Alberto. Transmedia Storytelling: Implicit Consumers, Narrative Worlds, and</p><p>Branding in Contemporary Media Production. International Journal of Communication. v. 3 [S.l.]:</p><p>[s.n]: 2009 - pp. 586-606. Disponível em: . Acesso em 30/02/2017.</p><p>TOFFLER, Alvin. A terceira onda. 31. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafo</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafo</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafolios/nmynt/transmedia_storytelling-.pdf</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafolios/nmynt/transmedia_storytelling-.pdf</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafolios/nmynt/transmedia_storytelling-.pdf</p><p>http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafolios/nmynt/transmedia_storytelling-.pdf</p><p>105</p><p>“Meninos, eu vi”: o primeiro capítulo, quatro décadas –</p><p>a evolução narrativa de Lauro César Muniz</p><p>“Guys, I saw”: the first chapter, four decades –</p><p>the narrative evolution of Lauro César Muniz</p><p>Roberto Simão Pereira Junior55</p><p>Lucas Martins Néia56</p><p>Resumo:A procura pela compreensão da estrutura narrativa de um roteiro de telenovela</p><p>originou o presente artigo, que busca traçar o processo de pesquisa e análise dos capítulos</p><p>de estreia de quatro obras roteirizadas por Lauro César Muniz, pertencentes a diferentes</p><p>contextos de produção e veiculação. São elas: O Salvador da Pátria (Globo, 1989), Zazá</p><p>(Globo, 1997), Poder</p><p>Paralelo (Record, 2009) e Máscaras (Record, 2012). Engendramos</p><p>uma metodologia de análise que, também em função das fontes disponíveis (FREIRE</p><p>FILHO, 2007) – roteiros e capítulos audiovisuais –, destaca comparativamente elementos</p><p>narrativos comuns aos textos e à poética do autor. Baseamo-nos primordialmente nos</p><p>apontamentos feitos por Pallottini (2012) quanto à estrutura básica de uma telenovela, nas</p><p>teorizações de McKee (2006) referentes às substâncias das narrativas e à estrutura de um</p><p>roteiro, nas diretrizes de Marquezi (2017) no que concerne à análise de pilotos de séries</p><p>de TV e no relato de pesquisa de roteiros de telenovela feito por Anzuategui (2012). A</p><p>partir deste quadro conceitual, procuramos identificar não só transformações temático-</p><p>narrativas da obra de Lauro César Muniz para a televisão no decorrer do tempo, como</p><p>também sublinhar ainda modificações formais que dialogam com a dinamicidade do atual</p><p>contexto televisivo. Neste cenário, em meio a uma diversificação e hibridização de formas</p><p>e conteúdos (LOPES et al., 2016), identificam-se tensões patentes entre as narrativas</p><p>televisivas e as unidades que as compõem (capítulos/episódios) (SILVA, 2015). As séries</p><p>apostam cada vez mais em arcos dramáticos longos – arcos estes que chegam a perpassar</p><p>a distensão narrativa da temporada, quando não da série como um todo –, convergindo</p><p>para um processo de “telenovelização”. As telenovelas, por sua vez, investem em plots e</p><p>arcos curtos que, desenvolvidos paralelamente à trama principal, propiciam um fluxo</p><p>dinâmico de histórias e personagens, expressando agilidade para a ação e confluindo para</p><p>uma “serialização” da narrativa telefolhetinesca. Objetivamos perceber tal “serialização”</p><p>na análise comparativa de roteiros dos primeiros capítulos de telenovela, além de observar</p><p>reconfigurações no trabalho de um autor que, há mais de cinquenta anos, concebe suas</p><p>tramas para a televisão como a extensão de sua obra teatral, apresentando no audiovisual</p><p>as mesmas inquietações que o movem no palco.</p><p>Palavras-chave: Telenovela; ficção televisiva; Lauro César Muniz; primeiro capítulo.</p><p>Abstract: The search for the comprehension of the telenovela script’s narrative structure</p><p>originated the present paper, which explores the investigation and analysis process of the</p><p>first chapter of four TV fictions written by Lauro César Muniz, belonging to different</p><p>55 Graduando do Curso Superior do Audiovisual pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Bolsista IC-CNPq do Centro de Estudos de Telenovela</p><p>(CETVN/ECA-USP). E-mail: rbto5@outlook.com.</p><p>56Roteirista. Mestrando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual</p><p>de Londrina. Pesquisador do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (Obitel). Bolsista CNPq. E-mail:</p><p>lucas_martins_neia@hotmail.com.</p><p>mailto:rbto5@outlook.com</p><p>mailto:rbto5@outlook.com</p><p>mailto:lucas_martins_neia@hotmail.com</p><p>mailto:lucas_martins_neia@hotmail.com</p><p>106</p><p>contexts of production and exhibition. They are: O Salvador da Pátria (Globo, 1989),</p><p>Zazá (Globo, 1997), Poder Paralelo (Record, 2009) and Máscaras (Record, 2012). We</p><p>construct an analysis methodology that, also in function of the available sources</p><p>(FREIRE FILHO, 2007) – scripts and audiovisual chapters –, compares narrative</p><p>elements common to the texts and the poetics of the author. We based our analysis</p><p>primarily on: Pallottini’s (2012) notes on the basic structure of a telenovela; McKee’s</p><p>(2006) theorizations about narrative substances and the structure of a script; Marquezi’s</p><p>(2017) guidelines regarding the analysis of pilots of TV series; and the report made by</p><p>Anzuategui (2012) about a research with telenovela screenplays. From this conceptual</p><p>framework, we want to identify not only thematic-narrative transformations in Lauro</p><p>César Muniz’s works for television in the course of time, but also to highlight formal</p><p>modifications that dialogue with the dynamism of the actual television context. In this</p><p>scenario, amid a diversification and hybridization of forms and contents (LOPES et al.,</p><p>2016), we look at evident tensions between the TV narratives and their units</p><p>(chapters/episodes) (SILVA, 2015). The series are betting more and more on long</p><p>dramatic archs – archs that interweave with the cloth of the season, when not of the whole</p><p>series –, converging to a process of “telenovela-ization”. Meanwhile, the telenovelas</p><p>invest in plots and short archs that, developed parallel to the main plot, provide a dynamic</p><p>flow of stories and characters, expressing agility for the action and walking to a</p><p>“serialization” of the TV novel narrative. We aim to perceive this “serialization” in the</p><p>comparative analysis of the first chapters’ script of telenovela, in addition to observing</p><p>reconfigurations in the work of an author who, for more than fifty years, conceives his</p><p>plots for television as the extension of his theatrical art, presenting in the audiovisual the</p><p>same anxieties that moves him on stage.</p><p>Key words: Telenovela; TV fiction; Lauro César Muniz; first chapter.</p><p>Introdução</p><p>A pesquisa partiu do desejo de se investigar a estruturação do roteiro de um</p><p>capítulo de telenovela, apurando tanto o estilo do autor quanto suas indicações de ações,</p><p>rubricas e diálogos, no intuito de compreender como o roteirista transmite as intenções</p><p>das personagens – e, por conseguinte, as suas próprias.</p><p>O relato de Anzuategui (2012) quanto à pesquisa de roteiros da telenovela O Grito</p><p>(Globo, 1975) nos serviu de inspiração para a estruturação do trabalho. Em seus estudos,</p><p>a pesquisadora buscou reduzir o volume de páginas para ter em mãos um conteúdo que</p><p>pudesse ser lido várias vezes, numa observação mais cuidadosa dos recursos temáticos</p><p>e estilísticos do autor daquela telenovela, Jorge Andrade.</p><p>Tomamos esta diretriz ao propormos uma análise comparativa de telenovelas de</p><p>Lauro César Muniz57 para estabelecermos relações estéticas que variaram conforme o</p><p>passar do tempo na obra do autor, acrescidas das evoluções tecnológicas e do</p><p>57 A escolha de Lauro César Muniz se deu devido a pesquisas anteriores do orientador do projeto, Lucas Martins Néia – que também dispunha, em seu acervo particular, de</p><p>sinopses e capítulos de telenovelas escritas pelo autor.</p><p>107</p><p>comportamento do público diante do produto televisivo. Para o aprofundamento destas</p><p>questões, os objetos do estudo se transformaram nos primeiros capítulos das teleficções.</p><p>Lembrando das considerações de Freire Filho (2007) quanto à necessidade, por</p><p>parte dos pesquisadores do audiovisual, de recorrer a outras fontes relativas às obras</p><p>devido à indisponibilidade de fontes primárias, partimos para a formulação do corpus de</p><p>análise da pesquisa. Nos arquivos do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN) da</p><p>Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, encontramos o roteiro</p><p>do primeiro capítulo de O Salvador da Pátria (Globo, 1989). Do acervo do orientador do</p><p>projeto, Lucas Martins Néia, foram resgatadas duas obras de Lauro César Muniz escritas</p><p>para a Record: Poder Paralelo (2009) e Máscaras (2012), sua última telenovela. Com a</p><p>ideia de observarmos quatro décadas da produção do autor para a televisão, elegemos</p><p>Zazá (Globo, 1997) como representante do segundo decênio; a falta do roteiro do primeiro</p><p>capítulo desta ficção, contudo, redirecionou a análise para o âmbito audiovisual – ou seja,</p><p>tomamos o capítulo pronto, exibido à época da estreia da telenovela58.</p><p>A análise das obras</p><p>Baseados nos apontamentos feitos por Pallottini (2012) quanto à estrutura básica</p><p>de uma telenovela, nas teorizações de McKee (2006) referentes às substâncias das</p><p>narrativas e à estrutura de um roteiro e nas diretrizes de Marquezi (2017) no</p><p>aspectos da direção de arte na publicidade paulista para o desenvolvimento de pesquisadores e</p><p>estudantes da área de comunicação - Patricio Dugnani</p><p>Marcos Nepomuceno Duarte</p><p>Norberto Gaudêncio Junior</p><p>Thiago Mori Neto</p><p>Mesa A questão do Cinema Contemporâneo: Roteiros e Problemáticas Culturais - Paulo Roberto Monteiro de Araújo</p><p>Fernando José Bischalchin</p><p>Fransmar B Costa Lima</p><p>Roseli Machado Lopes do Nascimento</p><p>Verônica D'Agostino Piqueira</p><p>Mesa - Como as Imagens Pensam: Roteiros Imaginários - Cristina Susigan</p><p>Carlos Alberto Negrini</p><p>Elidayana da Silva Alexandrino</p><p>Liliane Alfonso Pereira de Carvalho</p><p>PROGRAMAÇÃO MESAS</p><p>27/09/2017</p><p>Mesa - CETVN/ECA/USP - 25 anos de estudos acadêmicos sobre ficção televisiva - Ligia Lemos</p><p>Daniela Afonso Ortega</p><p>Lucas Martins Néia</p><p>Maria Immacolata Vassallo de Lopes</p><p>Mariana Marques de Lima</p><p>Roberto Simão Pereira Junior</p><p>Tissiana Nogueira Pereira</p><p>Mesa - Identidade, roteiros e cultura: diálogos sobre a composição histórica do cinema - Paulo Roberto Monteiro</p><p>Dângela Abioarana Nunes</p><p>Emerson Brito</p><p>Rosangela Canassa</p><p>Mesa - Artemídia escrevente - Pelópidas Cypriano de Oliveira</p><p>Glaucia Davino</p><p>Marcos Pereira Lamego Filho</p><p>Mônica de Moraes Oliveira</p><p>Mesa - Gênero e cinema - Rosana Schwartz</p><p>Bethina Oger Garcia</p><p>Dângela Nunes Abiorana</p><p>João Clemente de Souza Neto</p><p>Julia Machado Mussarelli</p><p>Lenize Villaça Cardoso</p><p>Marcio José Silva</p><p>Mesa– C.M.M. - Concepção, Métodos e Materialização de projetos - Célio Martins da Matta</p><p>André Martins da Matta</p><p>Bianca Yumiko Uno</p><p>Breno Cesani</p><p>Fernando Luis Cazarotto Berlezzi</p><p>Gustavo Santa Cruz Silva</p><p>Huang Wuichen</p><p>Ibrahim De Bragança Kallas</p><p>Kauan Denis Aragão da Costa</p><p>Raphael Ruas de Figueiredo Fonseca</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XVIII</p><p>RODADAS DE PROJETOS</p><p>26/09/2017</p><p>ROTEIRISTA: MARCELA MACEDO</p><p>DOCENTE: DR. PAULO MATIAS DE FIGUEIREDO JR.</p><p>Título Autores</p><p>A hora morta Davi Lopes Ramos</p><p>Atrações Carolina Nishikubo Lopes da Silva</p><p>Depois dos 50 e uma vida pela</p><p>frente</p><p>Denise Barbosa Fejgelman</p><p>Garoto com gato João Paulo Lopes de Meira Hergesel</p><p>Dalila William Augusto Camara</p><p>Atrofia</p><p>Wllssys Wolfgang Reis Dias Araújo, Geisla do</p><p>Nascimento Fernandes e Ronald Braz</p><p>ROTEIRISTA ABRA: FERNANDA ANDRADE</p><p>DOCENTE: MS. ROGÉRIO PEREIRA</p><p>Título Autores</p><p>Assentadas Gustavo Maximiliano Silva Oliveira</p><p>Dolce far love Gustavo Maximiliano Silva Oliveira</p><p>Era uma vez no Brasil Gleison Mota dos Santos</p><p>Trevas Rodrigo Rodrigues das Neves</p><p>Eu estou bem Raphael Carminatto Souza</p><p>Lili Caroline Favret Ramalho</p><p>RODADAS DE PROJETOS</p><p>27/09/2017</p><p>ROTEIRISTA DA ABRA: MARCUS FERNANDES</p><p>DOCENTE: MS. ROGÉRIO PEREIRA</p><p>Título Autores</p><p>A Draga Circus Show Lívia Marcela da Silva Uchôa</p><p>Diálogos imaginários: como o</p><p>professor aprende a ensinar?</p><p>Noemi Zein Telles, Julia Machado Mussarelli e</p><p>Marina Tavares</p><p>O brilho intenso da redoma Juliana Benetti Victorio</p><p>Vingança Victor Cesar de Jesus Souza</p><p>PLUIE Almir Guilhermino da Silva</p><p>Bia (2.0) Cristiano Belderrain Calegari</p><p>ROTEIRISTA: MAURÍCIO OLIVEIRA</p><p>DOCENTE: DR. PAULO MATIAS DE FIGUEIREDO JR.</p><p>Título Autores</p><p>Teodora, a psiconironauta Bruna Giovanna Malta Victal Teodoro</p><p>A promotora Sebastião Sidnei de Oliveira</p><p>10léxicos</p><p>Fernando Luís Cazarotto Berlezzi; Felipe Affonso</p><p>Llatas Ponce; Vanessa Egydio Gonçalves</p><p>Eficientes Ruth Barros e Pedro Carvalhaes</p><p>O coelho da lua Matheus de Andrade Faustino</p><p>Insônia Monstro Ana Patrícia de Queiroz Carneiro Dourado</p><p>_____________________________________________________________________________</p><p>XIX</p><p>Prefacio</p><p>Confabulações contemporâneas</p><p>Nos sete anos que se passaram, os seminários estabeleceram um lugar de troca e</p><p>produção de conhecimentos sobre o roteiro audiovisual. Um lugar também</p><p>de fascinação, enriquecido particularmente por cada um dos participantes, alguns</p><p>desde a 1ª edição. São pesquisadores, profissionais, estudiosos, experientes, menos</p><p>experientes, prósperos e iniciantes, i.e., interessados na mídia, na cultura,</p><p>nos negócios, na teoria e na tecnologia audiovisual relacionadas ao processo criativo,</p><p>por onde passa o roteiro obrigatoriamente.</p><p>Nos dias 26 e 27 de setembro do ano de 2017, houve o oitavo encontro, na</p><p>Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, onde foram tratados motivos</p><p>caros que envolvem os roteiros audiovisuais, o que inclui os audiovisuais em</p><p>movimento, os essencialmente visuais ou os essencialmente sonoros, para</p><p>diversas mídias, telas e não-telas (suportes), suas expansões, suas poéticas,</p><p>suas objetividades, as inserções nas novas realidades e as confabulações próprias</p><p>da criação, do mercado, da formação, dos agentes culturais, das pesquisas, etc.</p><p>O tema "Confabulações Imaginárias" foi o mote da presença de Palestrantes</p><p>especialistas e de roteiristas profissionais da Associação Brasileira de Roteiristas</p><p>Autores - ABRA – grande parceira.</p><p>Foi nesta rica mescla de experiências que compartilhamos e debatemos</p><p>temas contemporâneos vinculados ao universo do roteiro.</p><p>Os Grupos de Trabalhos e as Mesas Temáticas proporcionaram oportunidades de</p><p>compartilhamento das pesquisas e das indagações que não findam dos participantes</p><p>que se apresentaram. Da mesma forma, nas Rodadas de Projetos, outros puderam</p><p>discutir suas proposições projetuais de roteiros e/ou ideias, num papo sério,</p><p>tecnicamente e artisticamente referenciado por roteiristas profissionais e docentes da</p><p>área.</p><p>O livro reflete seu tempo, através do conjunto dos registros elaborados por seus</p><p>autores individuais, um trabalho ‘coroadamente’ coletivo e colaborativo, que encerra</p><p>as vertentes temáticas e os imaginários contemporâneos de 2017.</p><p>Glaucia Davino</p><p>Marcel Mendes</p><p>Marcelo Bueno</p><p>Marcos N. Duarte</p><p>São Paulo, 28/03/2019</p><p>1</p><p>SESSÃO 1</p><p>TRABALHOS E INVESTIGAÇÕES</p><p>EM DISCUSSÃO</p><p>Diversos pesquisadores que se identificam com o olhar para o</p><p>roteiro como eixo de investigação apresentam seus trabalhos e</p><p>cedem (pro honore) seus artigos para publicação nesse livro,</p><p>permitindo a difusão de suas ideias, experimentos e</p><p>descobertas. Os autores, agrupados em GTs por afinidades</p><p>aos assuntos, emergentes ou não, são uma caixa de muitas</p><p>boas surpresas, pois criam uma ebulição de encontros e</p><p>extensões sobre os próprios projetos. Ah, sim. Encontram</p><p>também embates, o oposto!!!</p><p>É nessa sessão que o leitor poderá encontrar a tessitura que</p><p>os GTs proporcionaram nesse encontro!</p><p>2</p><p>Encontro de Escrituras</p><p>3</p><p>O plano de voo e o voo: roteiro e experimentação</p><p>The flight plan and the flight: script and experimentation</p><p>Patrícia Dourado1</p><p>Resumo: É recorrente entre os roteiristas a metáfora do roteiro como um plano de voo,</p><p>um dos roteiristas a citar essa metáfora foi Karim Ainouz, em um encontro de roteiristas</p><p>em Curitiba (Ficção Viva II, 2013), ao falar do roteiro como um “mapa de voo”. Nele, o</p><p>cineasta enumerou alguns momentos em que o fato de escrever o roteiro o tornou, em</p><p>diferentes estágios da criação dos filmes, mais livre para experimentar, aproximando o</p><p>roteiro da experimentação artística dentro do contexto da criação coletiva do cinema.</p><p>Outros cineastas como Eliane Caffé, Anna Muylaert e Hilton Lacerda também relatam,</p><p>em diferentes registros de processo (entrevistas, relatos, debates abertos, textos de</p><p>abertura de versões publicadas de roteiro...), um maior grau de experimentação e de</p><p>abertura para o acaso no processo dos seus filmes, possibilitados em grande parte pelo</p><p>trabalho com a escrita do roteiro. Diferentemente de pensar o roteiro como uma peça</p><p>engessadora, eles falam do roteiro como uma peça libertadora, como um plano para</p><p>alcançar maiores voos. Por fim, relacionamos ainda a experiência desses quatro cineastas</p><p>à experiência do cineasta Cao Guimarães,</p><p>que concerne</p><p>à análise de pilotos de séries de TV, partimos para as leituras dos capítulos, acompanhadas</p><p>por anotações sobre as possíveis intenções das cenas e suas mensagens transmitidas –</p><p>comentadas com grifos coloridos que pudessem revelar, de forma mais objetiva, o que</p><p>predominava no texto. A abordagem de Zazá, por sua vez, pautou-se em encontrar no</p><p>vídeo marcas estilísticas recorrentes de Lauro César Muniz que também se faziam</p><p>presentes nos scripts das outras ficções.</p><p>O Salvador da Pátria (Globo, 1989)</p><p>O Salvador da Pátria foi uma telenovela de Lauro César Muniz com direção geral</p><p>de Paulo Ubiratan, escrita com a colaboração de Alcides Nogueira e Ana Maria</p><p>Moretzsohn e exibida entre 9/1/1989 e 12/8/1989, em 186 capítulos, no horário das 20h30</p><p>da Globo.</p><p>58 Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/zaza.htm. Acesso em 14 set. 2017.</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/zaza.htm</p><p>http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/zaza.htm</p><p>108</p><p>O roteiro desse primeiro capítulo possui 34 páginas, constituídas de 45 cenas. O</p><p>script foi datilografado em máquina de escrever, com algumas pequenas marcas</p><p>manuscritas. A versão obtida é uma fotocópia do original.</p><p>A primeira página desse roteiro é constituída predominantemente por descrição</p><p>de ações. Isso indica uma característica estilística do autor nesse capítulo: ao apresentar</p><p>a dinâmica da exposição das personagens, Lauro dá brecha para o diretor criar mais</p><p>amplamente em cima do texto e para a edição ter maior liberdade na montagem do</p><p>capítulo. No entanto, é comum, por meio da visualização das demais obras, que o autor</p><p>desenhe a decupagem da cena, dando noção à direção sobre como a cena deve ser</p><p>concebida, o que, necessariamente, pode ou não ser seguida pela direção da novela.</p><p>Do mesmo modo, Lauro aponta em rubricas de edição um fator que, por meio</p><p>desse estudo, descobrimos ser sua marca: o desenvolvimento, dentro do próprio texto, da</p><p>chamada montagem narrativa. O exemplo mais ilustrativo da utilização dessa técnica</p><p>nesse capítulo é quando o personagem Juca Pirama, locutor de rádio, diz em seu programa</p><p>– ouvido pelos catadores de laranja – que o prefeito de Tangará precisa trabalhar muito</p><p>para “salvar a cidade” e, numa esfera maior, “salvar o Brasil”. Cena seguinte: Sassá, o</p><p>protagonista e um dos catadores de laranja da cena anterior, despeja laranjas num cesto e</p><p>é então chamado por Neco.</p><p>Figura 1 – Exemplo de montagem narrativa em O Salvador da Pátria.</p><p>Fonte: print screen da fotocópia do roteiro digitalizada.</p><p>Permite-se inferir que Sassá será o “salvador” do país, de forma a elucidar ao</p><p>espectador que a chave para a satisfação da necessidade que Juca levanta está na figura</p><p>simplória daquele homem rural. Na ironia desse cenário reside a força da montagem, que</p><p>antecipa a trajetória da novela em uma única sequência – ao mesmo tempo em que se</p><p>dificulta a visualização desse encadeamento, pois a personagem ainda se encontra</p><p>caracterizada de modo a nos fazer subestimar tal indicação.</p><p>109</p><p>Em linhas gerais, esse truque de montagem se limita às primeiras 15 páginas do</p><p>roteiro, dando lugar a uma concentração de ação que dispensa sincronia entre as cenas</p><p>subsequentes. Temos 7 arcos narrativos presentes no capítulo, alternando-se 21 vezes ao</p><p>longo de 34 páginas – o que confere à narrativa uma dinamicidade muito grande.</p><p>Toda essa estrutura nos permite pontuar que a prioridade do capítulo é apresentar</p><p>o mundo no qual se desenvolverá a narrativa da telenovela: um cardápio amplo de tramas</p><p>é apresentado com o objetivo de abarcar o maior público possível e fazê-lo se interessar</p><p>de imediato pela história.</p><p>Muitas das ações construídas se calcam nas palavras ditas pelas personagens. Os</p><p>diálogos da novela as caracterizam. As personagens falam, predominantemente, sobre si,</p><p>sobre as situações que vivem. Assim, temos uma noção clara de quem estamos</p><p>conhecendo, como vivem e o que sentem. Eis o exemplo: Alice, em sua primeira aparição,</p><p>autocaracteriza-se de modo didático, sem motivação para tal.</p><p>Figura 2 – Exemplo de caracterização pelo diálogo em O Salvador da Pátria.</p><p>Fonte: print screen da fotocópia do roteiro digitalizada.</p><p>Os diálogos também servem como suporte para a redundância - elemento</p><p>apresentado por Pallottini (2012) como convenção da telenovela, já que o telespectador</p><p>televisivo, livre de amarras, pode se desligar facilmente da ficção e se desprender da</p><p>história, sendo necessário que o capítulo redunde parte essencial do que já foi apresentado</p><p>para que qualquer pessoa consiga acompanhar o que houve e possa se interessar pelo que</p><p>virá. Pallottini (2012, p. 35), porém, frisa que essa redundância deve ser feita sutilmente,</p><p>por outro meio, com outra personagem ou com o acréscimo de informações, fatores esses</p><p>que não ocorrem nesse primeiro capítulo.</p><p>Zazá (Globo, 1997)</p><p>Zazá foi uma telenovela de Lauro César Muniz com direção geral de Jorge</p><p>Fernando, escrita com Aimar Labaki, Rosane Lima e Jackie Vellego e exibida de</p><p>15/5/1997 a 9/1/1998, em 214 capítulos, no horário das 19h da Globo.</p><p>110</p><p>O primeiro capítulo de Zazá – único material audiovisual do escopo, como já</p><p>frisado– possui aproximadamente 42 minutos de arte. Esse capítulo foi encontrado na</p><p>internet, no site Memória Globo.</p><p>A análise em questão se pautou em buscar nas imagens uma reverberação de</p><p>características da escrita do autor já verificadas nos roteiros analisados. Ainda é</p><p>importante frisar que Zazá, ao contrário das demais telenovelas analisadas, não foi escrita</p><p>para o horário nobre da emissora que a veiculou. O horário das sete da Globo se pauta</p><p>por comédias leves, ágeis e de fácil digestão pelo público. Assim, além de primar pela</p><p>clareza nas situações, esse primeiro capítulo não apresenta muitos artifícios de ação: há</p><p>um único conflito maior ao final e o público acompanha o trajeto da personagem principal</p><p>– única protagonista feminina dentre as obras estudadas – até a chegada desse conflito.</p><p>Desta forma, no que diz respeito ao encadeamento da narrativa, o primeiro</p><p>capítulo de Zazá – ao contrário de O Salvador da Pátria – concentra as atenções do</p><p>público para o objeto portador da mensagem que irá guiar a narrativa ao longo de seus</p><p>seis a oito meses de exibição, recurso que também pautará os casos de Poder Paralelo e</p><p>Máscaras, como veremos adiante. Têm-se 4 arcos narrativos que se alternaram 7 vezes –</p><p>a primeira mudança de arco acontece no oitavo minuto do capítulo.</p><p>Outra característica que se mostrará recorrente na obra do autor é a manutenção</p><p>da montagem narrativa no que diz respeito à criação de uma elipse espacial. Como</p><p>exemplo, citamos a cena em que a família de Zazá, no Brasil, assiste a uma reportagem</p><p>na TV. Fusão: a imagem da televisão salta para a nossa tela e acompanhamos o que se</p><p>passa em Paris, onde a personagem principal realiza uma ação de marketing.</p><p>Figura 3 – Exemplo de montagem narrativa e edição de imagens em Zazá.</p><p>Fonte: Memória Globo.</p><p>Poder Paralelo (Record, 2009)</p><p>Poder Paralelo foi uma telenovela de Lauro César Muniz com direção geral de</p><p>Ignácio Coqueiro, baseada no livro Honra ou Vendetta, de Sílvio Lancellotti, escrita em</p><p>co-autoria com Aimar Labaki e Dora Castellar – além da colaboração de Mário Viana,</p><p>111</p><p>Newton Cannito e Rosane Lima – e exibida entre 10/4/2009 e 2/3/2010, em 239 capítulos,</p><p>no horário das 22h15 da Record.</p><p>O roteiro desse primeiro capítulo possui 44 páginas, dez a mais que O Salvador</p><p>da Pátria, perfazendo um total de 100 cenas. O material com o qual se entrou em contato</p><p>está em sua forma digital, aparentemente formatado como o original.</p><p>Na primeira página, predominam as notas de edição, mesmo que a ação seja</p><p>central na descrição no roteiro. O modo como essas ações serão decupadas, mostradas e</p><p>montadas é de total</p><p>interesse do autor, que faz questão de determinar o clima inicial da</p><p>trama: uma grande investigação sobre negócios escusos. No entanto, ao contrário do que</p><p>fizemos com O Salvador da Pátria, não é possível tratar a estrutura da primeira página</p><p>como metonímia de todo o capítulo. Em Poder Paralelo, há muitas indicações de ação: o</p><p>movimento narrativo é frenético, dando o tom de narrativa. Como no capítulo há a</p><p>armação de um assassinato, todos os detalhes são mostrados, normalmente, em pequenas</p><p>cenas, o que nos dá a dimensão e justifica as 100 cenas que o roteiro apresenta – esse</p><p>montante é resultado do preciosismo do autor em criar um tom para a história.</p><p>Isso deixa pouca margem para a criação do diretor em relação à atmosfera e ao</p><p>ritmo da narrativa. A ausência de abertura para direção e edição, no entanto, acontece</p><p>apenas na primeira parte do roteiro, na qual é essencial que a investigação descrita seja</p><p>retratada como tal. Em uma sequência de perseguição de helicópteros, o próprio autor</p><p>decupa a cena, mas se dirige aos editores/montadores lhes dando total liberdade para ditar</p><p>o ritmo da ação.</p><p>Como já apontado, Lauro trabalha de modo criativo com a montagem narrativa.</p><p>Seu jogo de ligar as cenas, dando, num olhar macro, uma unidade para a totalidade da</p><p>narrativa, também ocorre aqui. Demonstramos essa construção: Sérgio, um dos bandidos</p><p>presente no primeiro capítulo, está sedado num hospital. Renato, um dos policiais federais</p><p>da novela, fala sobre seu estado. Cena seguinte: Renato continua a falar e se dirige para</p><p>Téo e Marília, colegas de trabalho.</p><p>A montagem aqui também se constitui como elipse espacial. Ao invés de Renato</p><p>estar parado, observando Sérgio, ele tem sua voz introduzida em off sobre a imagem do</p><p>bandido no hospital, esclarecendo aos telespectadores o estado da personagem acamada;</p><p>em seguida, vemos que ele fala com Téo e Marília sobre a situação do bandido.</p><p>Figura 4 – Exemplo de montagem narrativa em Poder Paralelo.</p><p>112</p><p>Fonte: print screen do roteiro digital.</p><p>Como em O Salvador da Pátria, os efeitos de edição são intensos nas primeiras</p><p>páginas (precisamente até a página 13) e voltam mais uma vez ao final do capítulo (página</p><p>39). Toda essa sincronia de ações e ligações entre as cenas se dá pelo fato de todas elas –</p><p>as três primeiras – contarem uma mesma história, colocando e mostrando personagens</p><p>que fazem parte do mesmo universo e da mesma trama. Essa unidade dramática se</p><p>mantém até a página 14, quando Bruno, o principal antagonista da história, é apresentado.</p><p>Nesse momento, a ação narrativa se divide entre a perseguição a Tony e a vida dupla de</p><p>Bruno, apresentando as personagens que mais tarde irão se degladiar.</p><p>Entrando justamente na questão da divisão narrativa, Poder Paralelo, em seu</p><p>primeiro capítulo de 44 páginas, apresenta 4 arcos narrativos, que se alternam 31 vezes.</p><p>Disso depreende-se o ritmo intenso da história, que se concentra em poucos personagens</p><p>para se alcançar uma unidade para a melhor explicação do novo universo a ser explorado,</p><p>mostrando dinamismo na exposição das tramas.</p><p>A exposição também é papel do diálogo nesse capítulo. No entanto, as falas são</p><p>menos redundantes, pautando-se, em sua maioria, na caracterização das personagens,</p><p>mantendo-se o estilo apresentado em O Salvador da Pátria.</p><p>Máscaras (Record, 2012)</p><p>Máscaras foi uma telenovela de Lauro César Muniz escrita com Renato Modesto</p><p>e com a colaboração de Mário Viana, Mariana Vielmond e João Gabriel Carneiro, dirigida</p><p>por Ignácio Coqueiro e exibida entre 10/4/2012 a 2/8/2012, em 125 capítulos, nos horários</p><p>das 22h15/23h da Record.</p><p>113</p><p>O script do primeiro capítulo possui 49 páginas, perfazendo um total de 89 cenas.</p><p>Esse roteiro foi estudado em sua forma digital e, assim como Poder Paralelo, formatado</p><p>tal qual o original.</p><p>Na primeira página do roteiro, percebemos um equilíbrio entre as notas de edição</p><p>e direção com relação às notas de ação. Ainda existe uma preocupação com a estética –</p><p>isto é, o autor ainda dita a forma –, mas ela aparece em conjunto à construção narrativa –</p><p>ou seja, ao conteúdo. Ao longo do capítulo, esse equilíbrio se perpetua.</p><p>Os diálogos apresentam uma construção mais aprofundada do que nas demais</p><p>telenovelas analisadas – devido à complexidade da trama, as informações têm de ser</p><p>dadas por diálogos não tão objetivos, mas que esclareçam ao telespectador o que está</p><p>acontecendo. Por conta disso, o autor também coloca nas rubricas intenções subjetivas</p><p>das personagens, indicando um espírito que não é gestual, mas comportamental. Além</p><p>disso, o texto é o único dentre os analisados que possui imagens ilustrativas – uma diz</p><p>respeito a uma parte do cenário, um navio que aloca a história, e outra a um caminhão</p><p>coletor de leite –, mostrando que o autor busca a maior clareza possível na transmissão</p><p>de sua mensagem.</p><p>Figura 5 – Exemplo ilustração no roteiro em Máscaras</p><p>Fonte: print screen do roteiro digital.</p><p>As 89 cenas da novela provocam uma falsa impressão: ao mesmo tempo em que</p><p>supõem um ritmo narrativo com alternância grande de arcos e certa dinamicidade, elas,</p><p>114</p><p>na verdade, são, em sua maioria, a concentração de uma narrativa só: a introdução ao</p><p>núcleo principal, formado pelo casal Otávio e Maria, sendo ela portadora de DPP</p><p>(depressão pós-parto) – o que lhe confere uma complexidade muito grande e um tempo</p><p>maior de exposição de suas ações para a compreensão e elucidação de seu comportamento</p><p>ambíguo de amor e ódio em relação ao seu bebê.</p><p>Esse primeiro capítulo é o que menos apresenta histórias paralelas: são 3 arcos</p><p>narrativos que se alternam 8 vezes. É, ainda, o capítulo que menos alterna arcos e o que</p><p>mais se concentra em ações. A perda de dinamicidade é relativa ao leque narrativo, ou</p><p>seja, à variedade de histórias que podem ser acompanhadas pelo público dentro na novela.</p><p>Isso se dá pelo intuito do autor em querer aprofundar a psicologia de suas personagens.</p><p>Elas possuem tempo para agir e falar. De certo modo, constroem-se ambiguidades em</p><p>personagens que levarão essa marca ao longo dos meses. O autor, portanto, subverte o</p><p>recurso utilizado em O Salvador da Pátria – de abrir diversas histórias e puxar o interesse</p><p>do espectador para a novela – e o estilo construído em Poder Paralelo – a construção de</p><p>cenas rápidas, com ritmo frenético de exposição e ação.</p><p>Uma característica que o autor não abandona é a montagem narrativa muito bem</p><p>construída. No exemplo a seguir, temos, de uma vez só, a montagem narrativa e a</p><p>metonímia do estilo de diálogo que irá perfazer todo o capítulo: Maria, a mãe que tem</p><p>DPP está num avião com o marido, o médico e uma enfermeira. Seu olhar é triste. De</p><p>repente, uma voz off dá o nome da doença e começa a explicar o que houve com a</p><p>personagem. Na cena seguinte, a locutora nos é apresentada: é Tônia, que dialoga com</p><p>sua irmã, Luma, em sua casa.</p><p>Essa montagem se calca no mesmo recurso construído no exemplo de montagem</p><p>de Poder Paralelo, ou seja, na ligação de áudio entre as cenas. Ao mesmo tempo em que</p><p>a transição entre núcleos é feita de forma fluida, em que um tema liga ambas as cenas –</p><p>criando, dessa forma, uma unidade dramática –, é construída, mais uma vez, uma elipse</p><p>espacial: a cena seguinte ocorre em outro ambiente e com outras personagens, e se</p><p>estrutura um diálogo didático de forma a esclarecer ao espectador o que houve com Maria.</p><p>Desde a primeira cena até a cena 13, a história apresenta Maria e seu</p><p>comportamento nebuloso, de atração e repulsão pelo marido e pelo filho. A personagem</p><p>é melancólica, olha para espaços vazios, diz frases cifradas, omitindo informações</p><p>(implícitas nas falas) sobre o passado. Por medo de não se fazer compreender, o autor põe</p><p>na boca de uma personagem a explicação clara e objetiva do que aquela mulher está</p><p>115</p><p>passando – e é na busca por essa compreensão que o capítulo inteiro se calca. Maria está</p><p>presente tanto na primeira</p><p>quanto na última cena.</p><p>Figura 6 – Exemplo de montagem narrativa e diálogo didático em Máscaras.</p><p>Fonte: print screen do roteiro digital.</p><p>Comparativo</p><p>Após a análise individual das obras, foi possível traçar um comparativo que</p><p>colocasse em evidência fatores comuns que pudessem indicar uma evolução estilística do</p><p>autor. A abordagem da estruturação dos capítulos se faz pertinente para, posteriormente,</p><p>compreendermos aspectos do conteúdo que se modificaram.</p><p>Notamos que as primeiras cenas dos capítulos sempre buscam a construção de</p><p>uma metonímia, ou seja, apresentam o ambiente no qual a história vai se desenvolver e</p><p>terminam por destacar o rosto da personagem que representará em si aquele ambiente,</p><p>suas contradições e, por síntese, a mensagem do autor.</p><p>A história por si só é um recorte de um mundo que se refletirá no protagonista –</p><p>o primeiro personagem a aparecer, construção recorrente nas quatro telenovelas – sempre</p><p>por meio de uma panorâmica do ambiente que culminará no primeiro plano de seu rosto.</p><p>Essa escolha pode se derivar da ideia de se fixar no telespectadora imagem do portador</p><p>da mensagem da obra: seja Sassá, o matuto, simples tal qual a inocente cidade de Tangará</p><p>– e ambos serão transformados por jogos de poder; seja Maria, a mulher que sofre de</p><p>depressão pós-parto e que vê, nas águas do mar, um acalento para uma bipolaridade</p><p>existente tanto em si como no ser humano em geral.</p><p>116</p><p>Nisso, trazemos uma discussão cara ao drama seriado contemporâneo, baseado</p><p>em personagens multifacetados que se transformam ao longo da narrativa, surpreendendo</p><p>o espectador com seus desvios de personalidade (SILVA, 2015). É possível colocar as</p><p>obras de Lauro César Muniz numa progressão que culmina no encaixe total desse</p><p>postulado em sua última telenovela:</p><p>Em O Salvador da Pátria, há somente o indício de uma transformação do</p><p>protagonista, visto que até o final do capítulo ele ainda não é posto em conflito – o que</p><p>só ocorrerá mais adiante na trama.</p><p>Em Zazá ocorre situação semelhante, embora com algumas variantes: Zazá entra</p><p>em conflito com sua família, que não aprova seu plano de construir um avião atômico; no</p><p>entanto, sua lógica de ação se mantém a mesma durante o capítulo, alterando-se somente</p><p>quando ela descobre que foi traída durante quarenta anos por seu marido. Esse fato denota</p><p>um possível indício de transformação do caráter da personagem.</p><p>Em Poder Paralelo, a velocidade das ações é mais acelerada. Tony é vítima de</p><p>um plano de morte, mas as atingidas acabam sendo sua mulher, suas filhas e a babá. Tony</p><p>testemunha esse acontecimento e isso, por si só, já carrega a marca de uma transformação.</p><p>O motivo é posto e o próximo capítulo carrega consigo o estabelecimento dessa mudança.</p><p>Já em Máscaras, a transformação ocorrida no primeiro capítulo é completa. A</p><p>complexidade de Maria vai de um ponto a outro. Ela inicia o capítulo indefesa,</p><p>machucada por um ato inconsciente. Durante todo o capítulo, o esforço para superar uma</p><p>depressão a fragiliza. Ao final do capítulo, ela se transforma na antagonista consciente do</p><p>próprio filho, agindo friamente a partir do sumiço dele e recusando-se a salvá-lo de um</p><p>sequestro. Temos, portanto, uma personagem que vai de um polo a outro, dando ao</p><p>telespectador indícios de uma complexidade que sustentará toda a trama.</p><p>Na intersecção entre forma e conteúdo, além da questão da montagem narrativa –</p><p>utilizada de maneira criativa em todas as obras, conforme já apontamos –, notamos um</p><p>gradual processo de alongamento das cenas. Constatamos aí um paradoxo: em meio ao</p><p>atual contexto televisivo, no qual identificamos tensões cada vez mais patentes entre as</p><p>narrativas e as unidades que as compõem (capítulos/episódios) – e as telenovelas</p><p>investem em plots e arcos curtos que propiciam um fluxo dinâmico de histórias e</p><p>personagens, expressando agilidade para a ação e confluindo para uma serialização de</p><p>suas narrativas –, Lauro César Muniz opta por uma linha de ação unificada, focada em</p><p>117</p><p>poucos arcos, preocupando-se em aprofundar o universo ficcional oferecido ao público e,</p><p>desse modo, produzir a empatia do espectador pela história a ser contada.</p><p>Em um processo dialético, ao mesmo tempo em que se afasta dessa serialização,</p><p>Lauro também se aproxima dela. Marquezi (2017) destaca que, em todo piloto de série,</p><p>há um arco dramático que possui começo, meio e fim, mas que deixa subsídio para outros</p><p>episódios, alimentando o plot principal, ou seja, a história a ser desenvolvida na</p><p>temporada. Como descrito acima, essa característica passou progressivamente a se fazer</p><p>presente na obra de Lauro.</p><p>Considerações finais</p><p>Podemos perceber que Lauro César Muniz manteve, durante as quatro décadas</p><p>abarcadas por nosso estudo, marcas estilísticas que singularizam sua forma de contar</p><p>histórias. A principal é o encadeamento de cenas, que dá às tramas uma unidade narrativa</p><p>muito forte, promovendo a sensação de coesão entre os pontos apresentados –necessária</p><p>para a compreensão da mensagem que se quer passar. Por isso é fator comum, em todas</p><p>as obras o aparecimento do protagonista precedido pela ampla cobertura do ambiente no</p><p>qual a história irá se desenvolver. É o primeiro personagem que se vê, é a primeira marca</p><p>do que será a história e por onde ela poderá caminhar.</p><p>Essa estruturação da mensagem se torna necessária no cenário contemporâneo, no</p><p>qual, em meio a uma diversificação e hibridização de formas e conteúdos (Lopes et al.,</p><p>2016), a poética do autor pode muitas vezes se perder. Calcado em sua autenticidade,</p><p>Lauro continua imprimindo em seu narrar uma espécie de maturação estilística que prima</p><p>por construir uma história enxuta, nuançando suas persongens em contradições e</p><p>oscilações diante das escolhas extremas que elas têm de tomar para prosseguir seu</p><p>caminho – caminho que, no caso da telenovela, necessita obrigatoriamente entreter e</p><p>perdurar por oito meses.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ANZUATEGUI, Sabina Reggiani. O grito de Jorge Andrade: a pesquisa dos roteiros televisivos.</p><p>Cadernos de Pesquisa do Cdhis, v.25, n.2, p. 395-404, jul./dez. 2012.</p><p>FREIRE FILHO, João. Escrevendo a história cultural da TV no Brasil: questões teóricas e</p><p>metodológicas. In: GOULART RIBEIRO, Ana Paula; FERREIRA, Lucia Maria Alves. Mídia e</p><p>memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p.</p><p>115-135.</p><p>LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; GRECO, Clarice; ORTEGA, Daniela; CASTILHO,</p><p>Fernanda; LEMOS, Ligia Maria Prezia; NÉIA, Lucas Martins; CARNEVALLI, Maria Alice;</p><p>118</p><p>LIMA, Mariana; PEREIRA, Tissiana. Brasil: a “TV transformada” na ficção televisiva brasileira.</p><p>In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; OROZCO, Guillermo (orgs.). (Re)invenção de</p><p>gêneros e formatos da ficção televisiva: anuário Obitel 2016. Porto Alegre: Sulina, 2016, p. 135-</p><p>175.</p><p>MARQUEZI, Dagomir. 50 pilotos: a arte de se iniciar uma série. Editado por Dagomir Marquezi.</p><p>2017.</p><p>MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba:</p><p>Arte & Letra, 2006.</p><p>PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Perspectiva, 2012.</p><p>SILVA, Marcel Vieira Barreto. Origem do drama seriado contemporâneo. MATRIZes, v.9, n. 1,</p><p>p. 127-143, jan./jun. 2015.</p><p>119</p><p>As redes sociais como ferramenta transmidiática na produção audiovisual</p><p>The social networks used like transmídias tools in audiovisual production.</p><p>Sillas Carlos dos Santos59</p><p>Antonio Franscisco Magnoni 60</p><p>Resumo: Este trabalho tem como objetivo explorar a utilização das redes sociais</p><p>Facebook messenger e Twitter por séries de televisão, com destaque para o caso das</p><p>séries estrangeiras Pretty Little Liars, Grace and Frankie e da série brasileira 3%,</p><p>produzida pela Netflix. Tal observação será feita com base nas discussões sobre narrativa</p><p>transmídia propostas por Jenkins (2009) e do conceito de perfurabilidade de Mittel(2012).</p><p>Palavras-chave: audiovisual; redes sociais, narrativa transmídia; perfurabilidade.</p><p>Abstract: This work aims to explore the use of social networks Facebook Messenger and</p><p>Twitter by television series, highlighting the case of the series Pretty Little Liars, Grace</p><p>and Frankie and the Brazilian series 3%, produced by Netflix. This observation will be</p><p>made from the discussions on transmedia narrative proposed by Jenkins (2009) and</p><p>drillability concept, Mittel (2012).</p><p>Key words: audiovisual, social network, transmedia storytelling, drillability.</p><p>Introdução:</p><p>O desenvolvimento e a relativa popularização das tecnologias e das mídias digitais</p><p>agregou à comunicação audiovisual uma infinidade de recursos de produção e difusão</p><p>muito mais baratos e mais simples de operar. Há um cenário criativo que estimula a</p><p>multiplicação dos formatos ficcionais de entretenimento e impulsiona muitos canais</p><p>informativos, educativos e também publicitários. O desafio dos produtores audiovisuais</p><p>é qualificar as narrativas e utilizar as ferramentas digitais para engajar diversos públicos</p><p>com comportamentos cada vez mais participativos, além de serem conhecedores dos</p><p>dispositivos e das linguagens audiovisuais.</p><p>Neste cenário, as redes sociais propiciam canais e nichos de comunicação para</p><p>diversos públicos, além de servirem como ferramentas promissoras de criação para</p><p>roteiristas e produtores enriquecerem a experiência do espectador com suas histórias.</p><p>Torna-se importante nesta discussão atentar-se às diferentes formas de utilização das</p><p>redes, que podem ou não contribuir para o desenvolvimento da narrativa audiovisual ou</p><p>para a imersão do espectador no universo proposto pelos criadores de cada história.</p><p>59Mestrando em Mídia e Tecnologia pela UNESP e membro do Grupo de Estudos de Games, Educação, Mídia e Sentido (GEMS). sillascarlos@hotmail.com</p><p>60Doutor em Comunicação, professor dos cursos de graduação em Jornalismo e da pós-graduação em Mídia e Tecnologia da Unesp. e-mail: dino@lecotec.org.br</p><p>120</p><p>Este trabalho tem como objetivo explorar a utilização das redes sociais Facebook</p><p>Messenger e Twitter por séries de televisão, com destaque para o caso das séries</p><p>estrangeiras Pretty little liars e Grace and Frankie e da série brasileira 3%, produzida</p><p>pela Netflix. Tal observação será feita com base nas discussões sobre narrativa</p><p>transmídia propostas por Jenkins (2009) e de perfurabilidade de Mittel (2012).</p><p>A partir destes conceitos, pode-se estudar cada caso mencionado verificando</p><p>primeiramente se as ações nas redes sociais, que são promovidas pelas franquias,</p><p>contribuem de forma relevante ou acrescentam informações à narrativa principal,</p><p>segundo os princípios de uma narrativa transmidiática. Ou mesmo, se tais ações permitem</p><p>ao espectador aprofundar-se tanto no universo ficcional, quanto na trama proposta,</p><p>esmiuçando as informações dispostas em cada meio, trocando informações com outros</p><p>fãs e perfurando a obra audiovisual.</p><p>O estudo de caso pretende traçar um pequeno e atual panorama dos usos das</p><p>mídias sociais na criação de roteiros e de projetos audiovisuais, destacando-se as</p><p>possibilidades que são oferecidas pelas ferramentas digitais de interação e comunicação</p><p>multilateral. Assim, pretende-se demonstrar com este trabalho, algumas alternativas de</p><p>utilização de mídias digitais para a criação e produção de narrativas audiovisuais.</p><p>Narrativa transmídia</p><p>A ampliação das possibilidades agregadas pela evolução das tecnologias digitais</p><p>de comunicação à produção audiovisual também trouxe novas formas de pensar a criação</p><p>e produção de conteúdos. Se outrora, a narrativa tinha que ser limitada a uma única</p><p>plataforma, hoje outras mídias tornam-se potenciais ferramentas para expansão de um</p><p>universo narrativo ou uma história com bom potencial de conquistar a atenção do público.</p><p>Deste modo, uma franquia de entretenimento pode fazer mais que replicar um conteúdo</p><p>em diversas mídias e elaborar narrativas distintas, mas complementares em diferentes</p><p>plataformas, para que o público possa usufruir todas as nuances de uma história.</p><p>Esta forma de narrar uma história aprofundando-a com o auxílio de outras</p><p>plataformas de mídia, chama-se narrativa transmídia, mais especificamente entendida</p><p>aqui como “histórias que se desenrolam em múltiplas plataformas de mídia, cada uma</p><p>delas contribuindo de forma distinta para nossa compreensão do universo”. (JENKINS,</p><p>2009, p. 384). Narrativas transmídias possuem um produto narrativo principal, mas</p><p>também recorrem a produções, com informações secundárias ou complementares, para</p><p>121</p><p>expandirem e aprofundarem o seu conteúdo proporcionando ao espectador, experiências</p><p>singulares.</p><p>Perfurabilidade e redes sociais na ficção.</p><p>Inseridas em uma sociedade interconectada pela internet, não é raro ver as</p><p>franquias de entretenimento utilizar perfis em redes sociais para promover as suas</p><p>histórias. Esta utilização das redes pode-se dar de maneira paratextual, na qual um perfil</p><p>da franquia fala sobre ela própria, ou de maneira diegética. Nesta última, a rede é inserida</p><p>como parte do universo criado pelos autores da narrativa, e comumente são atribuídas a</p><p>algum personagem da história.</p><p>A utilização de perfis diegéticos administrados por roteiristas das franquias que</p><p>simulam a ação real de personagens fictícios, evidencia a tentativa destas franquias de</p><p>utilizar-se das redes sociais online como forma de proporcionar ao fã uma maior imersão</p><p>no universo ficcional, que é proposto pela narrativa. Assim, elas enriquecem a experiência</p><p>do público adepto da franquia, enquanto também tentam angariar novos seguidores com</p><p>ações de comunicação e divulgação de seus produtos e personagens.</p><p>Paralelamente, a evolução das mídias digitais potencializou o engajamento dos</p><p>consumidores de produtos audiovisuais, ao disponibilizar instrumentos e ambientes</p><p>comunicativos, que são propícios para a troca de informações entre os seguidores de</p><p>determinada série ou novela. Neste cenário, narrativas não encontram apenas os</p><p>benefícios das novas formas de produção e de difusão de seus conteúdos, mas também</p><p>enfrentam o desafio de engajarem os fãs em suas histórias. Realizar a tarefa de engajar o</p><p>público não é tão simples, diante do contexto informacionalmente caótico do ciberespaço,</p><p>onde cada espectador é exposto continuamente a uma infinidade de informações, que na</p><p>maioria das vezes, são discrepantes entre si.</p><p>Neste sentido, dois conceitos tornam-se valiosos para compreender a utilização de</p><p>redes sociais online, como parte das narrativas audiovisuais contemporâneas. O primeiro,</p><p>apresentado por Jenkins (2009) é o conceito de espalhabilidade. Para ele, este termo</p><p>define melhor as práticas online dos internautas ao compartilhar um conteúdo, uma vez</p><p>que o termo “viral” não é tão apropriado, pois carrega uma visão passiva de quem</p><p>compartilha conteúdos no ciberespaço. Uma pessoa, ao contribuir com a propagação de</p><p>algo na rede, não apenas compartilha inconscientemente o conteúdo. Ela o faz de sua</p><p>maneira, ocasionando mudanças e apropriações específicas do conteúdo.</p><p>122</p><p>For that reason, we are proposing an alternative terminology, one which we think</p><p>allows us to construct a more effective model that might inform future strategies. Rather</p><p>than speaking about "viral media," we prefer to think of media as spreadable.</p><p>Spreadability as a concept describes how the properties of the media environment, texts,</p><p>audiences, and business models work together to enable easy and widespread circulation</p><p>of mutually meaningful content within a networked culture. (JENKINS. 2009).</p><p>Mittel (2009), por sua vez, ressalta que a simples espalhabilidade de um conteúdo</p><p>não garante o engajamento dos consumidores. O autor também propõe a ideia de</p><p>perfurabilidade para ampliar a complexidade das histórias audiovisuais. A utilização de</p><p>tal recurso poderia</p><p>aumentar as chances de atração e de fidelização do público de uma</p><p>produção seriada. Para Mittel, os fãs sedentos por explorar cada detalhe da história e cada</p><p>canto do universo de uma narrativa, estão acostumados a fazer articulações sofisticadas</p><p>para discutirem e buscarem novos materiais canônicos que permitam compreender de</p><p>forma plena, as obras que lhes cativam. Diante de um público tão dedicado e minucioso,</p><p>a estratégia de espalhar quantidades de conteúdo pela rede não é suficiente para conquistar</p><p>a sua fidelidade. São as histórias complexas que oferecem mais chances de envolvimento</p><p>dos fãs com as franquias, porque elas apresentam profundidade suficiente para serem</p><p>perfuradas pelos interessados em esmiuçar as narrativas de cada uma de suas partes.</p><p>Perhaps we need a different metaphor to describe viewer engagement</p><p>with narrative complexity. We might think of such programs as drillable</p><p>rather than spreadable. They encourage a mode of forensic fandom that</p><p>encourages viewers to dig deeper, probing beneath the surface to</p><p>understand the complexity of a story and its telling. Such programs</p><p>create magnets for engagement, drawing viewers into the storyworlds</p><p>and urging them to drill down to discover more. (MITTEL. 2010).</p><p>O fato de uma franquia tentar espalhar-se por diversos espaços midiáticos, não a</p><p>impede de ser perfurável. As ações de espalhamento e de perfuração podem ser</p><p>complementares. Uma narrativa audiovisual pode ser profunda o bastante para ser</p><p>perfurável e também pode distribuir determinados elementos narrativos por diversos</p><p>produtos midiáticos. Entretanto, as estratégias de espalhar o conteúdo de uma franquia</p><p>por diferentes mídias, ajudam de imediato a agregar espectadores para um produto</p><p>audiovisual de entretenimento, mas não significa que consigam assegurar um</p><p>engajamento duradouro do público, mesmo daqueles fãs mais mobilizados. As narrativas</p><p>perfuráveis passam a envolver menos pessoas, conforme os fãs realizam imersões mais</p><p>profundas nas ações da trama. Isto consome mais tempo e dedicação engajando-os de</p><p>modo mais duradouro, na história contada. (MITTEL, 2009). Ainda que em menor</p><p>123</p><p>número, estes fãs se dedicam um significativo esforço em explorar as peças</p><p>proporcionadas pelos produtores para a resolução dos quebra-cabeças presentes na trama.</p><p>Uma vez atestada sua veracidade, a informação é digna de ser compartilhada e</p><p>devidamente catalogada como oficial, dando margem a novas teorias, por sua vez também</p><p>confrontadas e debatidas por um público engajado em decifrar os atos do assassino e</p><p>criminoso mor – o autor – antes que este escape, contando aos detetives seu plano</p><p>vilanesco (TOLEDO, 2016. p.10).</p><p>Analisando as redes sociais</p><p>A construção de estratégias de transmidiação com o uso de redes sociais online</p><p>pode ser analisada em diversas franquias de entretenimento, e também a possibilidade</p><p>simultânea que elas oferecem, para espalhar e aprofundar narrativas. Para este estudo,</p><p>foram selecionadas três diferentes séries de televisão, exibidas tanto on demand, quanto</p><p>na televisão em fluxo, e que utilizaram redes sociais para promover ações de diegese, que</p><p>foram feitas com personagens pertencentes aos seus universos fictícios. São elas: Pettly</p><p>little Liars, 3% e Grace and Frankie.</p><p>A observação destas ações possibilitou a compreensão de algumas de suas</p><p>principais formas de utilização como parte de narrativas transmídias, espalhabilidade e</p><p>também as contribuições delas para aprofundar a narrativa da obra audiovisual principal.</p><p>Série: 3%</p><p>A série ocorre num universo fictício, no qual a maioria da população vive na</p><p>miséria. Apenas 3% desta população habita o chamado “Mar alto”, um lugar abundante</p><p>em recursos, que propiciam uma elevada qualidade de vida. Para deixar a miséria e</p><p>integrar população mais abastada, os jovens passam por um processo que seleciona</p><p>apenas os 3% mais aptos.</p><p>Ao fim da primeira temporada, o perfil oficial da série disponibilizou um chat no</p><p>Facebook, onde os internautas poderiam conversar realizar a primeira etapa do processo</p><p>online. Um chatboot foi utilizado para simular um entrevistador do processo e decidir se</p><p>cada concorrente estava apto ou não, para ir para as próximas fases. O ar de deboche e de</p><p>desprezo dos entrevistadores em relação ao potencial dos candidatos, fica evidente na</p><p>série, postura que também é replicada na entrevista feita atravé do Facebook Messenger.</p><p>Ainda que o simulador apresente ao espectador a experiência de realizar a</p><p>entrevista, a ferramenta não adiciona nenhuma informação nova à narrativa principal. O</p><p>chatboot contribui para a imersão no universo de 3% ao fazer o espectador sentir-se por</p><p>124</p><p>um curto espaço de tempo, no lugar dos personagens principais da série. No entanto, o fã</p><p>não recebe outras “recompensas” dos produtores da série, como informações adicionais,</p><p>ou algo que o estimule a continuar a explorar o universo da série.</p><p>Outro aspecto relevante em 3%, é a quebra da diegese como recurso publicitário.</p><p>No fim da entrevista, o internauta recebe do avaliador o resultado de seu desempenho e</p><p>uma mensagem convidando-a a assistir a série. Ainda que a entrevista seja iniciada com</p><p>a proposta de ser um instrumento diegético, o chat termina evidenciando a sua</p><p>característica paratextual. Ao compartilhar o resultado, o espectador promove a série e</p><p>também incita outros internautas a participarem da simulação da entrevista que irá</p><p>selecionar os parcos 3%, que poderão viver no “Mar alto”.</p><p>Grace and Frankie</p><p>Grace e Frankie são duas senhoras de idade que, após terminarem os seus</p><p>respectivos casamentos, se veem sozinhas e obrigadas a conviverem no mesmo espaço,</p><p>mesmo uma não gostando da outra.</p><p>Na primeira temporada, Frankie, uma mulher alheia às tecnologias, uma artista de</p><p>cultura hippie, decide abrir uma conta no Twitter. A pouca familiaridade da personagem</p><p>com a rede e as tecnologias digitais em geral, rendem no decorrer dos episódios, algumas</p><p>situações cômicas. Paralela aos episódios foi criada pela produção da série, uma conta</p><p>para Frankie no twitter, com um perfil que simula o seu comportamento pessoal. Já na</p><p>descrição da conta, percebe-se uma mistura de elementos diegéticos com elementos não</p><p>diegéticos. Nela está escrito: “Mother of two, sister to all. Character on Netflix's Grace</p><p>and Frankie. New season now streaming.” Ou seja, Mãe de dois, irmã de todos.</p><p>Personagem de Grace and Frankie na Netflix. Nova temporada disponível61. Percebe-se</p><p>que a descrição do perfil começa de forma diegética, ao fazer uma apresentação informal</p><p>de Frankie, onde ela declara-se mãe de dois, referindo-se aos dois filhos que ela possui</p><p>na série, e irmã de todos, uma referência subliminar ao pacifismo e ao universalismo</p><p>humanitário da filosofia hippie. No entanto, logo em seguida não há mais a intenção de</p><p>fazer com que o perfil passe sem ser percebido como uma ação da empresa, pois revela-</p><p>se que trata-se de uma personagem da Netflix. O mesmo movimento ocorre com as</p><p>postagens no perfil de Frankie. Inicialmente, a foram feitos tweets que facilmente seriam</p><p>escritos pela personagem, que ainda estava se adaptando ao manuseio das tecnologias.</p><p>61 Tradução feita pelos autores.</p><p>125</p><p>Com o passar do tempo, as postagens perderam o caráter diegético, e as últimas postagens</p><p>da campanha passaram a informar sobre o lançamento da nova temporada e das</p><p>premiações da série Grace and Frankie.</p><p>Pretty Little Liars</p><p>Após a morte da “líder” do grupo, cinco adolescentes precisam descobrir o</p><p>mistério de quem a matou, ao mesmo tempo em que recebem mensagens com ameaças</p><p>de alguém que se identifica como “A”.</p><p>Na terceira temporada, um dos primeiros episódios mostrou um vídeo de uma das</p><p>personagens, pouco após receber alta de um hospício. A personagem fez o vídeo</p><p>explicando as dificuldades vividas após receber alta. Este vídeo tem certa repercussão</p><p>com as personagens principais, mas na série é mostrado apenas uma pequena parte dele.</p><p>Neste mesmo período foi criada uma conta da mesma personagem no Twitter e</p><p>durante a exibição do episódio, utilizaram-na para publicar uma série de frases</p><p>aparentemente desconexas. No entanto, os fãs mais fiéis à série se lembraram de uma</p><p>conversa que houve meses antes, em um episódio na qual uma das personagens principais</p><p>dizia que tinha com a personagem em questão, o hábito de utilizar um código para a</p><p>comunicação entre elas: elas escreviam várias palavras em sequência e consideravam</p><p>apenas a primeira letra de cada uma delas. Os fãs, ao aplicarem a lógica do código</p><p>mencionado pela personagem nas frases twittadas naquele dia, recebiam um link com o</p><p>vídeo inteiro. Na versão completa do conteúdo gravado, os fãs podem perceber a voz de</p><p>uma pessoa conversando com a personagem e revelando que a declaração contida no</p><p>vídeo é uma armação.</p><p>A ação movimentou as redes e os fãs das séries, que seguiam a história e estavam</p><p>constantemente ávidos por novas descobertas. Conforme as pessoas foram decifrando a</p><p>mensagem no twitter da personagem, iniciou-se uma sequência de compartilhamentos,</p><p>que chamavam mais fãs a participarem da experiência. Em nenhum momento, as</p><p>postagens citavam que se tratava de uma ação da produção da série. Entretanto, a manobra</p><p>dos produtores contribuiu para a imersão dos fãs e também serviu para atrair novos</p><p>seguidores para a série.</p><p>Resultados e discussões</p><p>Após a observação dos objetos, foram realizadas perguntas a respeito de cada uma</p><p>das ações desenvolvidas nas redes sociais, pelos produtores e também pelos fãs. Estas</p><p>questões foram fundamentadas no referencial teórico supracitado e pretendem elucidar o</p><p>126</p><p>potencial e o aproveitamento das redes sociais de cada um, destes casos que apontamos.</p><p>As perguntas foram:</p><p>A. A ação na rede social caracteriza-se como um produto ficcional capaz de ser</p><p>consumido independente da narrativa principal, ao mesmo tempo em que contribui para</p><p>que haja mais compreensão da narrativa principal e do universo onde a história ocorre,</p><p>evidenciando-se como parte de uma narrativa transmídia?</p><p>B. Uma rede social possui conteúdo diegético?</p><p>C. Uma rede social possui elementos não diegéticos?</p><p>D. A ação nas redes contribuiu com a espalhabilidade da série?</p><p>E. A ação interagiu com a trama principal, adicionando-lhe elementos que poderão</p><p>contribuir com a perfurabilidade da narrativa original?</p><p>A partir da interpretação destas questões, foi produzido o seguinte quadro:</p><p>Tabela 1: Respostas às questões referentes ao uso das redes sociais.</p><p>Série A B C D E</p><p>3% Não Sim Sim Sim Não</p><p>Grace and Frankie Sim Sim Sim Sim Não</p><p>Pretty Little Liars Sim Sim Não Sim Não</p><p>Tabela realizada pelos autores.</p><p>Se algumas das ações das franquias de entretenimento que estudamos para</p><p>produzir o artigo, conseguem contribuir para a propagação de seus produtos ficcionais</p><p>pelas redes sociais, isto não significa que tais ações também sirvam para engajar o público</p><p>nas narrativas. Pretty Little Liars, 3% e Grace and Frankie, são séries que propõem a</p><p>contribuir com a imersão do público, quando utilizam conteúdo diegético em suas redes</p><p>sociais, como estratégia de divulgação de seus lançamentos. No entanto os dois últimos</p><p>produtos quebram algumas vezes esta diegése, ao fazerem referência direta às produções.</p><p>Das ações citadas, apenas Pretty Little Liars utilizou uma rede social como forma</p><p>de alterar e enriquecer a trama da série televisiva, apostando no recurso para engajar os</p><p>fãs. O perfil de Frankie apresenta novas informações que contribuem de maneira geral,</p><p>para ampliar a experiência do espectador e também apresenta em diferentes graus, novas</p><p>informações à narrativa. No entanto, tais recursos não atuam como instrumentos para a</p><p>127</p><p>perfurabilidade da história. Uma situação semelhante ocorre com 3%, que também não</p><p>disponibiliza na entrevista virtual, os elementos que poderão contribuir para a</p><p>perfurabilidade da narrativa.</p><p>Considerações finais</p><p>A evolução frequente das tecnologias e dos múltiplos recursos digitais, e também</p><p>a gradual popularização dos dispositivos portáteis de comunicação e de informação, têm</p><p>potencializado o uso estratégico de novos insumos tecnológicos para criar novos recursos</p><p>narrativos para a divulgação entre os fãs, de novidades ficcionais e de entretenimento. As</p><p>grandes franquias mundiais de entretenimento tentam engajar a disponibilidade de novas</p><p>ferramentas e campanhas de interação dirigidas para os públicos de séries e de outros</p><p>produtos audiovisuais ficcionais, que são produzidos e lançados com frequência. Os</p><p>gigantescos conglomerados das “indústrias criativas” de bens simbólicos passaram a</p><p>utilizar intensamente as redes sociais para fidelizar os fãs habituais, e para atrair novos</p><p>seguidores, a cada nova narrativa lançada para disputar a economia de atenção dos</p><p>públicos de canais de TV por assinatura, e de uma profusão de sistemas audiovisuais por</p><p>streaming.</p><p>Neste cenário acirradamente disputado, as redes sociais consolidam-se como</p><p>potenciais ferramentas de comunicação, de interação e atração de públicos, especialmente</p><p>nos países ocidentais com mercados internos fortemente dominados pelas produções</p><p>audiovisuais dos EUA, e de seus sócios da indústria de entretenimento e dos sistemas de</p><p>tecnologias e programação informática. As redes, quando usadas com a capacidade de</p><p>contribuir para a narrativa principal, tornam-se potenciais instrumentos de engajamento</p><p>de um público específico, ao oferecer-lhe as possibilidades de acesso a novos canais, para</p><p>que consigam usufruir dos conteúdos da narrativa de uma franquia de entretenimento.</p><p>No entanto, ainda que os grandes produtores utilizem a diegése como principal</p><p>recurso atrativo para as suas postagens nas redes sociais, é pertinente ressaltar que elas</p><p>são recursos de comunicação majoritariamente destinados à espalhabilidade de</p><p>conteúdos, e que são desprovidos de uma relação intrínseca com narrativa principal, e</p><p>também da possibilidade dialógica de torná-la mais complexa e perfurável.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>COSTA, Rogério da. As Comunidades Virtuais. In: Informática na Educação: teoria & prática.</p><p>Porto Alegre, v8, n.2. 2005. Disponível em</p><p>Acesso 01/10/2017.</p><p>128</p><p>Frankie Bergstein. Twitter. Disponível em . Acesso em</p><p>03/10/2017</p><p>GOSCIOLA, V. Narrativa transmídia: Conceituação e origens. In CAMPALANS, Carolina;</p><p>RENÓ Denis; GOSCIOLA, Vicente. Narrativas transmedia: Entre teorías y prácticas.</p><p>Universidad del Rosario. Primera edición: Bogotá, D.C., octubre de 2012. p 7-15.</p><p>JENKINKS, Henry. Cultura da Convergência. Nova York, Universidade de Nova York, 2009.</p><p>________________. If it Doesn't Spread, it's Dead (part One): Media Visuses and Memes. In</p><p>Confessions of an ACA-FAN. Fevereiro de 2009. Disponível em</p><p>Acesso em</p><p>04/10/2017.</p><p>MITTELL, J. To Spread or to Drill? [s.l.]: Just TV, 2009. Disponível em:</p><p>. Acesso em 01/10/2017.</p><p>Mona Vanderwall. Twitter. Disponível em . Acesso em</p><p>03/10/2017.</p><p>TOLEDO, G, M. Perfurabilidade em seriados: espectadores como investigadores em game of</p><p>Thrones. In: XXV Encontro Anual da Compós, UNiversidade Federal de Goiás, Goiânia. Junho</p><p>de 2016.</p><p>129</p><p>Diálogos pertinentes: audiovisual e educação</p><p>130</p><p>Robótica e Arte: estudo de caso da construção de carrinhos com material</p><p>reciclável em ambiente escolar</p><p>Robotics and Art: case study of the construction of trolleys with recyclable material in</p><p>school environment</p><p>Carolina Gutierres Ribeiro62</p><p>Marcos Rogério Martins Costa63</p><p>Resumo: A escola é um ambiente</p><p>amplo de aprendizagem em que todos podem</p><p>compartilhar com diferentes e diversos saberes de mundo. Com esse intuito, foi</p><p>organizado e está em curso o projeto de Robótica na Escola Municipal de Ensino</p><p>Fundamental Professor João Carlos da Silva Borges. Dentro das práticas de ensino-</p><p>aprendizagem do projeto, encontram-se a experimentação de variados recursos técnicos</p><p>e tecnológicos, desde a construção de pequenas alavancas até a edição de vídeos a partir</p><p>de experiências audiovisuais, tanto com a autonomia do alunado, quanto com a parceria</p><p>professor-aluno. O objetivo deste trabalho é o estudo de caso de um projeto de robótica</p><p>que, ao se relacionar com as artes visuais na produção de vídeos, conseguiu êxito. A</p><p>metodologia adotada foi o construcionismo, teoria desenvolvida por Seymour Papert</p><p>(1988), a qual visa aprender a partir de uma ação concreta que cria um produto final</p><p>palpável. Em uma perspectiva interdisciplinar, associou-se o prisma da semiótica de linha</p><p>francesa para desdobrar os sentidos do esquema narrativo dos gestos pedagógicos</p><p>realizados (GREIMAS; COURTÉS, 2008). Para aplicar essa proposta teórico-</p><p>metodológica, durante as aulas do Clube de Robótica, iniciou-se a construção de um</p><p>carrinho movido à elástico, com materiais recicláveis, seguimos um tutorial do</p><p>Youtube®, que ensinava passo a passo a montar um carrinho a partir de uma garrafa pet.</p><p>Essa experiência foi realizada com alunos do 6º ano, com idade entre dez a onze anos.</p><p>Nesse processo, foi percebido, de forma empírica, que ao cortar a garrafa o material ficava</p><p>fraco e cedia com a pressão do elástico, o que impossibilitava o carrinho de se mover.</p><p>Então, foi feito um novo projeto que usava palitos de sorvete. Nessa segunda tentativa, o</p><p>carrinho se moveu, porém foi encontrado um novo desafio: as rodas que giravam em</p><p>falso. Outros diversos materiais foram testados para conseguir aderência. Nesse processo,</p><p>os alunos filmaram as tentativas e iam construindo uma narrativa audiovisual desse</p><p>processo. Tinha-se, assim, duas práticas ocorrendo simultaneamente: de um lado, a</p><p>experimentação para a fabricação do carrinho com material reciclável, e de outro, a</p><p>narração audiovisual desse processo de ensino-aprendizagem do grupo. Essa articulação</p><p>entre o fazer de uma máquina e construção de uma narrativa audiovisual por outra</p><p>máquina abriu espaço para uma série de questionamentos entre os alunos, por exemplo,</p><p>como recontar com as imagens e os áudios capturados as dificuldades e as conquistas</p><p>durante a execução do projeto? Quais programas de edição de vídeos usar e quando usá-</p><p>los? Qual a necessidade e a relevância do registro das experiências? Além disso, muitos</p><p>outros conhecimentos técnicos foram sendo ensinados como: resistência dos materiais,</p><p>ferramentas necessárias para cada ação do projeto, qualidade das ferramentas que</p><p>62 Especialista em Linguagens da Arte, Universidade de São Paulo (USP) - Centro Universitário Maria Antônia e Professora orientadora de informática educativa da Secretaria</p><p>Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP). E-mail: ribeiro.carolina@gmail.com</p><p>63 Doutorando em Semiótica e Linguística Geral, Universidade de São Paulo (USP), Professor de língua portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-</p><p>SP). E-mail: marcosrmcosta15@gmail.com</p><p>131</p><p>influencia no projeto, falta de simetria e equilíbrio na construção do objeto altera o</p><p>resultado final. Como produto final, os alunos conseguiram fabricar os carrinhos com</p><p>materiais recicláveis de forma satisfatória e também aprenderam a fazer vídeos autorais</p><p>de suas experiências. Em outras palavras, não basta experimentar o saber, pode-se</p><p>também registrado de forma artisticamente criativa.</p><p>Palavras-chave: Robótica; Artes; Escola; Carrinho; Sustentabilidade.</p><p>Abstract: The school is a broad learning environment in which everyone can share with</p><p>different and diverse world knowledge. With this intention, the project of Robotics in the</p><p>Municipal School of Fundamental Education Professor João Carlos da Silva Borges was</p><p>organized and is underway. Within the teaching-learning practices of the project are the</p><p>experimentation of various technical and technological resources, from the construction</p><p>of small levers to the editing of videos from audiovisual experiences, both with the</p><p>student's autonomy and with the partnership teacher Student. The objective of this work</p><p>is the case study of a robotics project that, when related to the visual arts in the production</p><p>of videos, was successful. The methodology adopted was the constructionism, theory</p><p>developed by Seymour Papert (1988), which aims to learn from a concrete action that</p><p>creates a final product palpable. In an interdisciplinary perspective, the prism of the</p><p>French line semiotics was associated to unfold the meanings of the narrative scheme of</p><p>the pedagogical gestures performed (GREIMAS and COURTÉS, 2008). In order to apply</p><p>this theoretical-methodological proposal, during the lessons of the robotics club, we</p><p>began the construction of a trolley moved to the elastic, with recyclable materials, we</p><p>followed a Youtube® tutorial, that taught step by step to assemble a cart from of a pet</p><p>bottle. This experiment was carried out with students of the 6th grade, aged between ten</p><p>and eleven years. In this process, it was empirically realized that when cutting the bottle</p><p>the material became weak and yielded with the pressure of the elastic, which made it</p><p>impossible for the cart to move. Then a new project was made using ice cream sticks. In</p><p>that second attempt, the cart moved, but a new challenge was found: the wheels that</p><p>turned in false. Several other materials were tested for adhesion. In this process, the</p><p>students filmed the attempts and were constructing an audiovisual narrative of this</p><p>process. Thus, two practices occurred simultaneously: on the one hand, the</p><p>experimentation for the manufacture of the cart with recyclable material, and on the</p><p>other, the audiovisual narration of this teaching-learning process of the group. This</p><p>articulation between the making of a machine and the construction of an audiovisual</p><p>narrative by another machine opened space for a series of questions among students, for</p><p>example, how to recount the difficulties and achievements during the execution of the</p><p>project with the captured images and audios ? Which video editing programs to use and</p><p>when to use them? What is the need and relevance of recording experiences? In addition,</p><p>many other technical skills have been taught as: material resistance, tools needed for</p><p>each project action, quality of tools that influence the design, lack of symmetry and</p><p>balance in the construction of the object changes the final result. As a final product,</p><p>students were able to make recyclable carts satisfactorily and also learned how to make</p><p>copyrighted videos of their experiences. In other words, it is not enough to experience</p><p>knowledge, it can also be recorded in an artistically creative way.</p><p>Keywords: Robotics; Art; School; Cart; Sustainability.</p><p>Introdução</p><p>132</p><p>A escola é um ambiente amplo de aprendizagem em que todos podem</p><p>compartilhar com diferentes e diversos saberes de mundo. Compreendendo essa proposta</p><p>de trabalho e visão sobre o espaço escolar, está em curso, desde o início do ano, o projeto</p><p>de Robótica na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor João Carlos da Silva</p><p>Borges (doravante, EMEF Borges), da Diretoria Regional de Educação Ipiranga,</p><p>localizada no bairro de Indianópolis, na cidade de São Paulo-SP. Dentro das práticas de</p><p>ensino-aprendizagem do projeto, encontram-se a experimentação de variados recursos</p><p>técnicos e tecnológicos, desde a construção de pequenas alavancas até a edição de vídeos</p><p>a partir de experiências audiovisuais. O objetivo deste trabalho é o estudo de caso de um</p><p>projeto de robótica que, ao se relacionar com as artes visuais na produção de vídeos,</p><p>conseguiu êxito.</p><p>O método</p><p>aplicado foi o estudo de caso na área educacional, conforme a</p><p>perspectiva de André (2005). Adotou-se esse método porque o caso a ser analisado tem</p><p>uma particularidade que merece ser investigada: ele conseguiu em um curto período</p><p>(menos de um ano de atuação) motivar um grupo diversificado de crianças, alunos do 6º</p><p>ao 8º ano, a fazer projetos de cunho científico a partir de materiais recicláveis e recursos</p><p>audiovisuais. Considerando a multiplicidade de aspectos que pode caracterizar esse caso,</p><p>o procedimento metodológico utilizado para desenvolver este estudo foi o de observar,</p><p>em específico: (i) como os alunos ganharam autonomia durante o projeto e (ii) como os</p><p>recursos audiovisuais auxiliaram nesse processo.</p><p>A fundamentação teórica aplicada foi o construcionismo, teoria desenvolvida por</p><p>Seymour Papert (1988), a qual visa aprender a partir de uma ação concreta que cria um</p><p>produto final palpável. Em uma perspectiva interdisciplinar, associou-se o prisma da</p><p>semiótica de linha francesa para desdobrar os sentidos do esquema narrativo dos gestos</p><p>pedagógicos realizados (GREIMAS; COURTÉS, 2008).</p><p>Para aplicar essa proposta teórico-metodológica, durante as aulas do Clube de</p><p>Robótica, iniciou-se a construção de um carrinho movido à elástico, com materiais</p><p>recicláveis. Para tanto, também seguimos um tutorial do Youtube®, que ensinava o passo</p><p>a passo para montar um carrinho a partir de uma garrafa pet. Essa experiência foi</p><p>realizada com alunos do 6º a 8º ano, com idade entre dez a treze anos.</p><p>A partir dessa experiência, este estudo problematiza, a partir da teoria do</p><p>construtivismo de Papert (1988), o ensino-aprendizagem dosconteúdos interdisciplinares</p><p>de Robótica e Artes, aplicados na atividade de fabricação de carrinhos de elástico e de</p><p>133</p><p>vídeo-relatos. Para tanto, segmentamos este estudo em três partes: 1. Fundamentação</p><p>teórica; 2. Uso de vídeo em sala de aula e 3. Processo de ensino-aprendizagem e reflexões</p><p>pedagógicas. No próximo tópico, começamos com a discussão de nosso arcabouço</p><p>teórico.</p><p>1. Fundamentação teórica</p><p>O construcionismo, também conhecido como a filosofia logo, foi criado por</p><p>Seymour Papert (1928-2016). Este estudioso foi um dos criadores do laboratório de</p><p>inteligência artificial do Massachussetts Institute of Technology – MIT. Atualmente, este</p><p>instituto universitário é, por sua vez, um dos grandes propagadores da movimento maker</p><p>64e da programação para crianças, por meio do Scratch®. Ele desenvolveu o pensamento</p><p>de que as crianças poderiam programar através de um jogo, chamado Logo. Isso</p><p>correspondeu, já naquela época, final dos anos sessenta, um grande avanço para o uso da</p><p>Informática educativa.</p><p>Nos ano 1980, esse mesmo pesquisador criou o Lego Logo, em parceria com a</p><p>empresa dinamarquesa. Esse jogo correspondeu a uma espécie de robótica para as</p><p>crianças, porque elas lidavam com sensores e atuadores nos blocos de montagens; desse</p><p>modo, o controle computacional era feito pelo Logo e as próprias crianças faziam a</p><p>programação. Papert questiona, com isso, o modo tradicional de se fazer educação. Em</p><p>suas práticas educativas e experimentais, era notória a influência teórico-metodológica</p><p>dos estudos de John Dewey (1859-1952)65 e Paulo Freire (1921-1997)66.</p><p>Papert ainda defendeu a tese do prazer em aprender. Muitas vezes, conforme afere</p><p>a sua proposta, a escola tradicional cerceia a curiosidade dos infantes, ao invés de a</p><p>incentivar. Na teoria do construtivismo, esse prazer e a sua respectiva curiosidade estão</p><p>no cerne das preocupações, por isso são estimuladas. Nas palavras de Papert (1988, p</p><p>20), é preciso “tornar o estudante o sujeito do processo de aprendizagem, não o objeto”.</p><p>Todo o trabalho de Papert esteve dirigido a missão de ajudar as crianças a</p><p>aprender. Aprender a aprender e não somente ser educado era a perspectiva teórica do</p><p>estudioso. Ele acreditava que o ensino era importante, mas o ato de aprender era muito</p><p>mais amplo e complexo do que, por exemplo, os exercícios repetitivos de decorar</p><p>64 O Movimento Maker é uma vertente da cultura Faça-Você-Mesmo, (DIY - Do-It-Yourself). Esse movimento defende a ideia que pessoas comuns, incluindo as crianças, podem</p><p>construir, consertar, modificar e fabricar os mais diversos tipos de objetos e projetos com suas próprias mãos.</p><p>65 Para maiores informações sobre sua abordagem teórica, sugere-se a leitura de Dewey (1979).</p><p>66 Para maiores informações sobre sua abordagem teórica, sugere-se a leitura de Freire (2011).</p><p>134</p><p>fórmulas ou recitar poemas. Partindo dessa orientação, o construcionismo significa dar as</p><p>crianças boas ferramentas para que elas possam aprender fazendo. Defende-se, assim, que</p><p>as novas tecnologias são muito ricas em fornecer coisas novas para que as crianças</p><p>possam aprender os conceitos como parte de algo real que se aplicável em seu dia a dia.</p><p>Tomemos como exemplo a matemática. Ao fazer as tarefas tradicionais, os alunos</p><p>não estão fazendo nada de muito emocionante, apenas anotando números no papel. Na</p><p>visão do construcionismo, esse exercício é fraco tanto pedagogicamente, quanto de forma</p><p>experimental. Por isso, sugere-se que se encontre uma maneira de fazer a criança se</p><p>relacionar com a matemática de modo mais realista, fazendo do conteúdo disciplinar algo</p><p>interessante e significativo no olhar e vivência do alunado. Por isso, pode-se, como</p><p>proposta pedagógica, colocar o discente em situações-problema em que ele, por exemplo,</p><p>seja um engenheiro ou um banqueiro e tenha que aplicar os conteúdos e conceitos</p><p>matemáticos apre(e)ndidos.</p><p>Por isso, quando foi solicitado aos alunos fabricarem um carrinho com garrafas</p><p>pet, eles não estavam apenas fabricando um objeto, mas pondo em prática seus</p><p>conhecimentos em diversas disciplinas, como matemática para a medição e recorte das</p><p>peças; artes para o design e a pintura das peças; português na aprendizagem do</p><p>vocabulário referente ao universo semântico da robótica e da automobilística. Por isso,</p><p>ao perguntar aos alunos do Clube de Robótica o que eles estavam produzindo,</p><p>provavelmente eles responderiam “um carro” e isso poderia causar um estranhamento em</p><p>um público externo a essa vivência.</p><p>Essa não compreensão à primeira vista é natural, justamente porque, na escola,</p><p>espera-se ouvir que o aluno está fazendo lições de ângulos, comparações ou cálculo de</p><p>distâncias. Esses pressupostos diminuem as dimensões pedagógicas do fenômeno da</p><p>aprendizagem, pois identificam os meios usados para conseguir chegar a determinada</p><p>meta como o essencial. No cotidiano da sociedade, isso não acontece e não há esse</p><p>estranhamento, porque se perguntássemos a um engenheiro o que ele está fazendo, este</p><p>provavelmente não responderia “usando um lápis”, “usando cálculos”, ele diria “estou</p><p>projetando um prédio”. Por isso, temos que desmi(s)tificar o conceito de que os meios</p><p>ensinados na escola são a sua finalidade, porque eles não são. Conteúdos disciplinares –</p><p>como fórmulas, regras gramaticais, pontos cardeais, dentre outros conteúdos – são</p><p>conhecimentos sistematizados que podem – e deveriam – ser aplicados ao universo e à</p><p>bagagem cultural de cada aluno. Por isso, o Clube de Robótica é um espaço importante</p><p>135</p><p>em que interagem e são aplicados diversos e diferentes conteúdos disciplinares,</p><p>interdisciplinares e transdisciplinares, favorecendo, portanto, um multiletramento</p><p>constante entre aluno e aluno; aluno e professor; escola e sociedade. Conforme defendem</p><p>Rojo e Moura (2012, p. 8):</p><p>trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver (normalmente envolverá) o</p><p>uso de novas tecnologias da comunicação e de informação (‘novos letramentos’), mas</p><p>caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular,</p><p>local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um</p><p>enfoque crítico, pluralista, ético e democrático -</p><p>que envolva agência – de textos/discursos</p><p>que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos.</p><p>Como se vê, o construcionismo de Papert se relaciona bastante adequadamente à</p><p>abordagem do multiletramento, embora, ressalvamos, que existam incongruências em</p><p>alguns dos aspectos epistemológicos dessas duas propostas teórico-metodológicas de</p><p>ensino-aprendizagem. O principal entre elas é que são propostas que focam no uso dos</p><p>conhecimentos a partir do desenvolvimento de um projeto pessoal, não acreditando,</p><p>assim, que o conhecimento tem que ser apenas e somente armazenado nas cabeças dos</p><p>educandos para só depois serem mais tarde aplicados no mundo do trabalho. Este último</p><p>é uma educação bancária, a qual Freire (2011) declarou ser um modo de anular o poder</p><p>criador dos educandos ou, ao menos, o minimizar, estimulando, portanto, a ingenuidade</p><p>e não a criticidade dentro da sociedade, a começar pela escola.</p><p>Papert (1988) afirma que ninguém pode aprender bem sendo obrigado e</p><p>desestimulado a apender. De acordo com sua proposta, todos gostamos de aprender para</p><p>que possamos usar o que aprendemos. Outra orientação resultante da adoção dessa</p><p>proposta é, a partir dela, as crianças passam a ser produtoras e não apenas consumidoras</p><p>dos conhecimentos em prática na vida social. Por exemplo, as crianças do século XXI</p><p>consomem muita tecnologia sem ter ideia de como elas funcionam, de como se</p><p>relacionam com os conteúdos da sala de aula.</p><p>Compreendido essa lacuna entre o consumo e o conhecimento, projetos de</p><p>robótica, apoiados em bases teóricas do construtivismo, possibilitam que os alunos</p><p>entendam como a tecnologia funciona e como ela está direta ou indiretamente associada</p><p>aos conteúdos aprendidos nas salas de aula. Com isso, ela podem se tornar produtoras da</p><p>própria tecnologia. Isso faz com que os conteúdos deixem de ser conhecimentos dos</p><p>professores e se tornem parte do conhecimento e da vivência dos alunos. Essa mudança</p><p>136</p><p>acontece, porque alunos começam por se apropriarem do saber da experiência prática.</p><p>Por isso, a hipótese é que os alunos de projetos apoiados nesses pressupostos teóricos</p><p>possam se tornar mais confiantes em sala de aula, pois passam a entender conteúdos que</p><p>antes eram abstratos demais para eles.</p><p>2. Uso de vídeo em sala de aula</p><p>De acordo com Moran (1995), o vídeo nas escolas foi introduzido em meados dos</p><p>anos de 1980 nas escolas. À princípio, essa proposta veio com uma aceitação bastante</p><p>pungente por parte do alunado, porque, quando o aluno tinha um vídeo para assistir em</p><p>sala, ele não o via como tarefa penosa, era uma ação prazerosa. A partir dessa adesão,</p><p>foram produzidos muitos vídeos didáticos para serem transmitidos nas salas de aulas. A</p><p>aplicação na rotina escolar dos vídeos seguiu as práticas do ensino tradicional como se os</p><p>livros estivessem sendo substituídos, paulatinamente, por vídeos.</p><p>Com o acesso a filmadoras, celulares com qualidade de filmagem melhores, a</p><p>partir da ascensão dos smartphones no século XXI, surgiu uma cultura de produção de</p><p>vídeos, os chamados youtubers. Os alunos do Clube de Robótica da EMEF Borges,</p><p>estando inseridos nesse caldo digital (SANTAELLA, 1992), se interessaram por esse</p><p>movimento maker, principalmente porque eles são frequentes leitores de muitos tutoriais</p><p>para a produção de uma infinidade de objetos. Observada esse contexto, a docente</p><p>responsável pelo Clube resolveu utilizar, como ferramenta de aprendizagem, o tutorial e</p><p>os vídeos, uma vez que os próprios alunos já tem feito isso – aqueles que têm acesso à</p><p>internet e computador ou celular, fazendo seus próprios tutoriais em formato de vídeo no</p><p>Youtube, inclusive.</p><p>Por isso, foi sugerido, como já dissemos, que o Clube fizesse coletivamente uma</p><p>oficina de construção de carrinhos de elástico. Para isso, foi utilizado o vídeo de duas</p><p>formas. Primeiramente, ele foi usado como ferramenta de tutoria, porque foi apresentado</p><p>aos alunos um vídeo do Youtube em que se ensinava a montagem de um carrinho em</p><p>garrafa pet. Depois, foi assistido, ainda, um outro tutorial que fazia a construção de</p><p>carrinhos a partir de uma estrutura feita de palitos de sorvete.</p><p>A outra maneira de utilizar o vídeo foi como registro e reflexão de todo o processo.</p><p>A cada nova experiência feita em sala de aula ou em casa, como tarefa, o aluno era</p><p>incentivado a filmar esse momento de aprendizagem. Em segundo momento, se possível,</p><p>137</p><p>o aluno era também estimulado a editar o vídeo para mostrar aos seus pares e a docente</p><p>sua experiência, relatando suas dificuldades e conquistas.</p><p>Nesse processo, foi percebido, de forma empírica, que ao cortar a garrafa o</p><p>material ficava fraco e cedia com a pressão do elástico, o que impossibilitava o carrinho</p><p>de se mover. Então, foi feito um novo projeto que usava palitos de sorvete. Nessa segunda</p><p>tentativa, o carrinho se moveu, porém foi encontrado um novo desafio: as rodas giravam</p><p>em falso. Outros diversos materiais foram testados para conseguir aderência.</p><p>Durante as aulas, os alunos ainda filmaram as tentativas e iam construindo uma</p><p>narrativa audiovisual desse processo. Tinha-se, assim, duas práticas ocorrendo</p><p>simultaneamente: de um lado, a experimentação para a fabricação do carrinho com</p><p>material reciclável, e de outro, a narração audiovisual desse processo de ensino-</p><p>aprendizagem do grupo. Essa articulação entre o fazer de uma máquina e a construção de</p><p>uma narrativa audiovisual por outra máquina abriu espaço para um série de etapas</p><p>narrativas no esquema narrativo da escola (GREIMAS; COURTÉS, 2008).</p><p>Acolhe-se, neste estudo, a expressão esquema narrativo no sentido e terminologia</p><p>atribuído pela semiótica francesa, a saber:</p><p>Oriundo de generalizações sucessivas a partir da descrição de Propp, o esquema</p><p>narrativo surge, então, como um modelo ideológico de referência, que estimulará, por</p><p>muito tempo ainda, qualquer reflexão sobre narratividade. Desde já, permite distinguir</p><p>três segmentos autônomos da sintaxe narrativa, que são os percursos narrativos do sujeito</p><p>– ‘performador’, do Destinatário-manipulador e do Destinatário-julgador, e de encarar</p><p>com confiança os projetos de um semiótica da ação, de uma semiótica da manipulação e</p><p>de uma semiótica da sanção” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 333).</p><p>Aplicados neste estudo, esse conceito de esquema narrativo pode ter</p><p>produtividade. Entende-se, semioticamente, narrativa como a transformação dos</p><p>enunciados de estado. Temos, em geral, numa sala de aula tradicional, o seguinte</p><p>enunciado de estudo: o professor, como destinador da competência do saber, o aluno</p><p>como destinatário desse saber. A manipulação é entendida na semiótica sem nenhuma</p><p>carga pejorativa, mas como uma processo de persuasão inerente a qualquer comunicação</p><p>entre dois sujeitos.</p><p>138</p><p>No caso do projeto de construção de carrinho movidos à elástico, pode-se perceber</p><p>uma mudança nos papeis dos sujeitos, bem como o acontecimento de um outro esquema</p><p>narrativa. Isso ocorreu, porque pode-se entender o professor como um sujeito</p><p>manipulador, no sentido de persuasivo, que leva o aluno-destinatário a fazer fazer. Em</p><p>outras palavras, ele se tornar sujeito performador do mundo natural e não apenas e</p><p>somente um destinatário dele.</p><p>Com isso, por sua vez, o próprio professor é tanto sujeito julgador tanto quanto é</p><p>destinatário do momento derradeiro da sanção (atribuição de nota, valorização da</p><p>experiência), porque ele acaba por dividir o seu espaço de sanção com aluno que também</p><p>pode se tornar, não raras vezes, sujeito manipulador. Isso ocorre, porque o discente, ao se</p><p>apropriar da competência do saber e do fazer, se competencializa cada vez mais,</p><p>ganhando espaço discursiva e empiricamente dentro do espaço escolar e também fora</p><p>dele. Eis um esquema narrativo a se desenrolar nas profundezas da sintaxe dessa proposta</p><p>pedagógica.</p><p>Por exemplo, os alunos começam a questionar: como recontar com as imagens</p><p>e</p><p>os áudios capturados as dificuldades e as conquistas durante a execução do projeto? Quais</p><p>programas de edição de vídeos usar e quando usá-los? Qual a necessidade e a relevância</p><p>do registro das experiências? Além disso, muitos outros conhecimentos técnicos foram</p><p>sendo ensinados como: resistência dos materiais, ferramentas necessárias para cada ação</p><p>do projeto, qualidade das ferramentas que influencia no projeto, falta de simetria e</p><p>equilíbrio na construção do objeto altera o resultado final. Como produto final, os alunos</p><p>conseguiram fabricar os carrinhos com materiais recicláveis e fizerem vídeos autorais de</p><p>suas experiências. Tudo isso demonstra que gestos pedagógicos como estes podem</p><p>transformar o espaço escolar a partir de seus próprios esquemas narrativos.</p><p>3. Processo de ensino-aprendizagem e reflexões pedagógicas</p><p>O projeto de robótica da EMEF Borges surgiu de um pequeno desafio da</p><p>Secretaria Municipal de Educação através de uma JAM de robótica. Os alunos da EMEF</p><p>Borges foram classificados para participar e o prêmio de participação era um kit de</p><p>Robótica. A partir deste material, surgiu o desejo dos professores, da coordenação da</p><p>escola e dos alunos de montar um Clube de Robótica. O grupo iniciou suas atividades no</p><p>começo do ano letivo de 2017 com alunos do 6º ao 8º ano.</p><p>139</p><p>Desde as primeiras indicadas no kit de Robótica, os alunos ficaram muito</p><p>empolgados, mas logo surgiu uma hipótese da parte deles: a robótica só seria possível a</p><p>partir dos materiais do kit, o que fazia com que as montagens fossem muito frustrantes,</p><p>pois ao iniciar um novo projeto era necessário desmontar o projeto anterior. Além disso,</p><p>o kit, como patrimônio público, não permitia que nenhuma das criações dos alunos</p><p>pudesse ser levada para casa deles. Então, foi realizada uma pesquisa entre alunos e com</p><p>ajuda dos professores para que eles pudessem construir algo que não precisasse de</p><p>nenhum material do kit de Robótica para que, assim, eles pudessem levar suas criações</p><p>para casa.</p><p>Eis o esquema narrativo se modificando no que se refere ao uso do kit. Antes, ele</p><p>era um objeto de valor (GREIMAS; COURTÉS, 2008), porque era querido por todos,</p><p>considerado o meio que possibilitava o ensino-aprendizagem de novos conhecimentos.</p><p>Depois, ele se tornou objeto nocivo (GREIMAS; COURTÉS, 2008), porque era o que</p><p>motivava a querer outra coisa, sendo, portanto, repelido pelos alunos. Todavia, ele não</p><p>era rejeitado por suas possibilidades (poder-fazer = construir robôs, estruturas eletrônicas,</p><p>etc.), mas sim por suas impossibilidades (não-poder-fazer = não poder levar para casa;</p><p>não ser perene; não poder ser utilizado simultaneamente por dois grandes projetos, etc.).</p><p>Foram pesquisados tutoriais no Youtube. Dentre eles, foi escolhido um que</p><p>orientava a construção de carrinhos movidos a elástico67. Encontrado o modelo do</p><p>primeiro projeto, foram iniciadas as atividades para a seleção do material reciclável e a</p><p>construção do carrinho. Os alunos se responsabilizaram em trazer a garrafa, os outros</p><p>materiais foram doados pela escola.</p><p>Durante o processo, foi observado que muitos não demonstravam habilidade com</p><p>o estilete, nem mesmo com tesouras, mas, ao longo do projeto, esse grupo de alunos foram</p><p>criando mais maturidade para o uso. As rodas do carrinho eram feitas com tampinhas de</p><p>garrafas. E por isso, surgiu uma das dificuldades: furar a tampinha para poder inserir o</p><p>eixo das rodas (um palito de churrasco). Um discente intitulado neste estudo como Aluno</p><p>A teve ideia de aquecer a ponta de um metal para furar o plástico da referida tampa e,</p><p>assim, foi feito pela docente com as devidas precações em ambiente isolado e adequado68.</p><p>67 No canal do Youtube Balavala. Disponível em : . Acessado em: 14 out. 2017.</p><p>68 Para preservar o anonimato dos alunos participantes desta pesquisa, nomeamos os alunos por letras, omitindo a sua faixa etária exata, bem como situação atual na seriação</p><p>escolar.</p><p>140</p><p>Destaca-se que o Aluno A que fez essa intervenção possui diversas dificuldades</p><p>de aprendizagem e possui, inclusive, a hipótese de escrita atrasada pela sua faixa etária</p><p>em comparação sua seriação escolar. Como se nota, a experiência extracurricular e a</p><p>bagagem sociocultural dessa criança ficou evidente nessa situação de ensino-</p><p>aprendizagem. Isso talvez não esteja acontecendo nas demais aulas do discente, o que nos</p><p>leva a (re)pensar se o currículo da escola abrange, de fato, as peculiaridades de cada aluno.</p><p>De novo, os esquemas narrativos pressupostos da escola tradicional estão se abalando</p><p>diante da aplicação desse modo de apre(e)nder os objetos de ensino.</p><p>Houve também situações de uso compartilhado de ferramentas, Nessas situações,</p><p>o próprio grupo organizou o uso de maneira democrática, pois havia poucas ferramentas</p><p>para o grupo todo. Com isso pode-se notar um processo de mediação de conflitos entre</p><p>os alunos que se estabelecia principalmente pelo diálogo e pela escuta consciente, isto é,</p><p>se colocando no lugar do outro e não somente pensando em si.</p><p>Depois de realizada a primeira oficina, foi percebido pelos alunos que, ao cortar a</p><p>garrafa pet, ela perdia a resistência e não era possível esticar o elástico que daria o impulso</p><p>ao carrinho. Isso, à princípio, frustrou o grupo que já queria brincar com os novos</p><p>carrinhos. Todavia, em um segundo momento, foi feito um debate em que soluções foram</p><p>sendo propostas para se resolver a disfunção. Algumas propostas foram: uma garrada</p><p>mais forte; um reforço nas paredes das garrafas; fita adesiva em volta da garrafa; dentre</p><p>outras. Essas hipóteses se mostraram inadequadas e o grupo, de forma democrática,</p><p>resolveu fazer um outro projeto de carrinho movido a elástico com outro material que não</p><p>fosse a garrafa pet. Pode-se observar o produto deste primeiro projeto na figura a seguir:</p><p>Figura 1. Carrinho de garrafa pet movido à elástico</p><p>Fonte: Acervo dos autores.</p><p>141</p><p>No novo projeto, um novo vídeo-tutorial69 foi selecionado. Nesse outro vídeo, a</p><p>construção de um carrinho era feita a partir palitos de sorvete. Foram aproveitadas as</p><p>rodas do último projeto e as estruturas de palitos de sorvete foi feita com material de</p><p>doação. Com esse outro material, mais leve, mais aerodinâmico, o resultado foi</p><p>satisfatório: o carrinho com estrutura de palitos de sorvete funcionava movido pelo</p><p>elástico. Como podemos ver pela foto a seguir:</p><p>Figura 1. Carrinho de garrafa pet movido à elástico</p><p>Fonte: Acervo dos autores.</p><p>A terceira etapa do projeto aconteceu quando os alunos relataram que queriam</p><p>melhor a performance de seus carrinhos. Essa demanda surgiu porque a roda da maioria</p><p>dos carrinhos girava em falso e derrapava. O primeiro teste foi verificar o agente</p><p>descompensava o carrinho era ou não o solo. Então, os carrinhos foram testados em vários</p><p>tipos de solo: arenoso, barrento, fixo, molhado, liso, etc. Depois foram testados diversos</p><p>tipos de materiais na roda para aumentar a aderência.</p><p>O interessante neste momento do Clube de Robótica é que nessa terceira etapa os</p><p>alunos ganharam bastante autonomia. Por já estarem familiarizados com os carrinhos e</p><p>com os testes, eles já faziam suas próprias pesquisas com materiais trazidos</p><p>espontaneamente de casa, bem como faziam seus vídeos caseiros para contar suas</p><p>experiências aos colegas de turma sem a prévia solicitação da docente da sala de</p><p>informática. A docente, por sua vez, empenhou-se para dar conteúdos disciplinares que</p><p>pudessem ser aplicados diretamente aos projetos de aumento de performance dos</p><p>carrinhos de cada aluno. Por isso a explicação das noções de ângulos, unidade de medida</p><p>e aderência foi essencial para auxiliar os alunos no balanceamento do carrinho.</p><p>69 Canal Tubalatudo. Diponível em:</p><p>que fala preferir escrever o roteiro no gesto da</p><p>montagem. Com base em diferentes registros de processo desses cineastas, analisaremos</p><p>aqui alguns relatos, roteiros e filmes, em uma perspectiva complementar, de modo a</p><p>levantar questões acerca da potencialidade do roteiro como ferramenta de</p><p>experimentação. Dão suporte teórico e metodológico a esta investigação as abordagens</p><p>da complexidade, da cultura e da semiose peirceana via a crítica de processos de Cecília</p><p>A. Salles e da narrativa como um expediente ontológico e, por isso, não exclusivo da</p><p>linguagem verbal, de Paul Ricoeur.</p><p>Palavras-chave: processo de criação; roteiro; experimentação; cinema brasileiro</p><p>contemporâneo; comunicação.</p><p>Abstract: It is recurrent among the writers of the script metaphor as a flight plan, one of</p><p>the writers quoting this metaphor was Karim Ainouz, in a meeting of screenwriters in</p><p>Curitiba (Fiction Live II, 2013), when speaking of the script as a "map of flight". In it,</p><p>the filmmaker listed a few moments in which writing the script made him, at different</p><p>stages of filmmaking, more free to experiment, bringing the script closer to artistic</p><p>experimentation within the context of the collective creation of cinema. Other filmmakers</p><p>such as Eliane Caffé, Anna Muylaert and Hilton Lacerda also report in different case</p><p>records (interviews, reports, opening texts of published versions of script ...), a greater</p><p>degree of experimentation and openness to chance in the process of his films, made</p><p>possible in large part by the work with scriptwriting. Unlike thinking the script as a</p><p>plasterer, they speak of the script as a liberating piece, as a plan to achieve larger flights.</p><p>1 Doutoranda em Comunicação e Semiótica na PUC-SP (bolsa CAPES), com pesquisa em processo de criação no cinema, com foco em roteiro. Mestre pela mesma instituição</p><p>(bolsa CAPES) e graduada em Letras pela UFC (bolsista de arte do ICA, modalidade Cinema). Pesquisadora do grupo de pesquisas em Processos de criação, coordenado pela</p><p>Prof. Cecília A. Salles. Roteirista, editora de texto e revisora. Contato: patriciadouradoo@hotmail.com</p><p>mailto:patriciadouradoo@hotmail.com</p><p>mailto:patriciadouradoo@hotmail.com</p><p>4</p><p>Finally, we relate the experience of these four filmmakers to the experience of filmmaker</p><p>Cao Guimarães, who says he prefers to write the script in the gesture of the montage.</p><p>Based on the different process records of these filmmakers, we will analyze some talks,</p><p>scripts and films in a complementary perspective, in order to raise questions about the</p><p>potential of the script as a creative tool for experimentation. This study has the theoretical</p><p>and methodological support of the approaches to complexity, culture and Peircean</p><p>semiosis via the criticism of processes by Cecília A. Salles and the narrative like an</p><p>ontological expedient and, therefore, not exclusive to verbal language, according to Paul</p><p>Ricoeur.</p><p>Key words: creation process; script; experimentation; contemporary brazilian cinema;</p><p>communication.</p><p>Introdução</p><p>Voe, e que todo vento a bem te soe</p><p>ao descobrir</p><p>Criolo2</p><p>Das muitas formas de planejar um filme, o roteiro é uma delas. Nem sempre, mas</p><p>muitas vezes, uma das primeiras. Antes de existir em filme, o filme existe em roteiro, por</p><p>mais simples que seja esse roteiro. Um lugar de filme imaginado. O “sonho do filme”</p><p>como na fala de Carrière (2006). Por que sonhar o filme? Por que pensar roteiros? Cada</p><p>cineasta carrega suas respostas. Nesta pesquisa, trazemos os relatos de alguns cineastas</p><p>brasileiros a respeito de seus trabalhos com o roteiro e como o roteiro atua nos filmes,</p><p>entre outras coisas, como ferramentas de experimentação.</p><p>Muitas vezes associado à urgência de controle daqueles que financiam os filmes,</p><p>o roteiro é uma peça de produção, mas não só. Esse lugar de imaginar o filme é muitas</p><p>vezes também o lugar de experimentar o filme, não apenas para bem da criatividade (todo</p><p>processo criativo está intimamente relacionado a contextos de experimentação), mas para</p><p>bem, também, da própria produção. Não apenas para ajudar a orçar o filme (quanto custa</p><p>realizar esse roteiro?), mas para imaginar tudo o que se poderia usar para fazer o filme,</p><p>experimentar e escolher, sem precisar lançar mão de produzir um a um cada um dos</p><p>universos imaginados. Eles são pensados antes, sem o calor do set. Mas também, muitas</p><p>vezes, depois, com o calor do set e, também, com o calor da montagem. Fazer roteiros</p><p>antes das filmagens não significa dizer que eles acabam ali, que encerram sua função.</p><p>2 Trecho da música “Plano de voo”. Álbum Convoque seu Buda, 2014.</p><p>5</p><p>Como na ideia de Jean Claude Carrière de que “quando as filmagens terminam, os roteiros</p><p>geralmente vão parar nas latas de lixo dos estúdios” (2006, p. 132).</p><p>Dentro da argumentação de Carrière, a ideia dos roteiros nas latas de lixo é muito</p><p>eficiente, pois interessa a ele ajudar os escritores a se desapegarem do filme escrito. E</p><p>isso é muito valioso. Outro modo de ver isso é pensar também que esse roteiro pode ser</p><p>sempre modificado, repensado, reexperimentado, com recursos escritos ou não. Como</p><p>acontece por exemplo com os cineastas de que trataremos aqui. Diretores que antes de</p><p>dirigirem seus primeiros filmes acumulavam experiências como roteiristas, como Anna</p><p>Muylaert, Karin Ainouz e Hilton Lacerda. Complementam esta reflexão também os</p><p>estudos do processo de Eliane Caffé, que decidiu começar a escrever seus filmes como</p><p>um modo de se tornar diretora e que encontrou no processo de escrita do roteiro modos</p><p>de repensar a própria dinâmica de feitura dos filmes; e de Cao Guimarães, que diz escrever</p><p>seus roteiros no gesto da montagem. Cinco roteiristas-diretores cujo estudo dos seus</p><p>processos norteiam esta reflexão acerca do roteiro e do potencial experimentativo do</p><p>roteiro dentro do processo de criação do cinema.</p><p>O que acontece é que o roteiro, mesmo quando escrito inicialmente por um ou</p><p>mais roteiristas, ele será fatalmente apropriado por cada um que trabalhar nesse filme,</p><p>será consolo e inspiração de um grupo: de todos os filmes que poderíamos fazer vamos</p><p>começar por aqui, queria tanto ver este roteiro na tela... e assim seguem os desejos do</p><p>roteirista se misturando aos desejos de todos que irão trabalhar para realizar o filme. Em</p><p>resumo, há muitas formas de olhar para esse roteiro. Do ponto de vista de quem escreve,</p><p>do ponto de vista de quem lê, do ponto de vista de quem orça, do ponto de vista de quem</p><p>interpreta e decupa para virar som, figurino, objetos de cena, espaço, cor, luzes, corpos,</p><p>dramaturgia, poesia...</p><p>Nesse ponto, Carrière foi certeiro, de fato os roteiros carregam grandes vir a ser,</p><p>mas mais por serem matérias mutantes, ímpetos criadores em transformação, nascidos</p><p>exatamente para isso, como qualquer plano, guia, roteiro... feito para mudar. Mas não</p><p>penso que morram por isso, que se acabem, ou que algo além da versão verbal escrita</p><p>deles poderia parar nas latas do lixo, como várias outras versões antes dessa também</p><p>podem ter parado nos cestos da casa do escritor. Mas que partes de versões e versões</p><p>continuam a morar naquele filme, não tenho dúvida disso. Talvez em parte pela visão</p><p>processual que trago com essa pesquisa, não consiga enxergar o filme apenas no filme</p><p>nem ver, no filme, apenas uma versão. É a possibilidade de olhar desse modo que</p><p>6</p><p>relaciona os estudos de processo aos estudos de roteiro e de narrativa tal como mesmo</p><p>aqui, como construções. De todos os autores envolvidos nos filmes, e suas perspectivas,</p><p>há ainda a minha e a de todos aqueles que vão assistir ao filme. E em uma perspectiva</p><p>processual, todas essas perspectivas estão ligadas e o ponto é exatamente a relação entre</p><p>elas, o lugar da troca, a ponte que liga realizadores e expectadores, e a ponte nesse caso é</p><p>o processo. Não é o único modo de ver</p><p>>. Acessado em: 14 out. 2017.</p><p>142</p><p>Nessa terceira etapa foram alçados os seguintes resultados, todos os alunos</p><p>conseguiram chegar ao produto final; muitos alunos queriam ainda continuar a trabalhar</p><p>no projeto para melhorar a desempenho dos seus carrinhos; alguns alunos desfizeram por</p><p>completo o carrinho e refizeram para tentar atingir uma melhor velocidade; outros</p><p>preferiram trabalhar na parte estética, ao invés de querer melhorar a velocidade; todos</p><p>demonstraram grande satisfação por poderem levar seus carrinhos para suas respectivas</p><p>casas.</p><p>A quarta e última etapa do projeto com os carrinhos movidos à elástico foi a</p><p>reunião dos materiais de registro, no caso os vídeos, filmados durante a execução das</p><p>etapas anteriores. Depois, foi feita uma reflexão de todo o processo por meio de uma roda</p><p>de conversa e debate regrado, em que foram expostos os pontos positivos e os pontos de</p><p>melhoria para os próximos projetos do Clube de Robótica.</p><p>O último produto desse projeto foi a divulgação dos resultados para a comunidade</p><p>externa por meio de um vídeo postado na página de Facebook oficial da EMEF Borges70</p><p>e a produção por parte dos professores deste texto científico.</p><p>Considerações finais</p><p>De acordo com Peres e Santos (2005), três pressupostos básicos devem ser levados</p><p>em consideração quando se escolhe fazer um estudo de caso qualitativo. Primeiramente,</p><p>deve-se entender que o conhecimento está em constante processo de construção. Em</p><p>segundo lugar, deve-se ter consciência de que o caso estudado envolve uma</p><p>multiplicidade de dimensões e que, portanto, o pesquisador nunca conseguirá examinar</p><p>todas elas. Em terceiro lugar, deve-se compreender que a realidade pode ser perscrutada</p><p>por diversos ângulos. Este estudo de caso ponderou, em sua execução, essas três ressalvas.</p><p>Como o conhecimento está em constante (trans)formação, a proposta teórica deste</p><p>trabalho foi pelo construtivismo, desenvolvido por Papert (1988), alinhado ao esquema</p><p>narrativo, proposto por Greimas e Courtés (2008). Respeitando as diferenças</p><p>epistemológicas dessas duas disciplinas, foi demonstrado nas duas primeiras seções as</p><p>contribuições respectivas de cada uma dessas áreas do conhecimento a partir do caso</p><p>estudado.</p><p>70 Vídeo de divulgação do projeto. Disponível em: . Acessado em: 14 out. 2017.</p><p>143</p><p>Além disso, na segundo seção, além do aspecto teórico da semiótica francesa, o</p><p>foco era discutir como os recursos audiovisuais auxiliaram no processo de ensino e</p><p>aprendizagem dos alunos e na construção de sua autonomia. Na terceira seção deste</p><p>estudo, evidenciamos etapa a etapa como os alunos ganharam autonomia durante o</p><p>projeto. Com isso, cumprimos o objetivo geral deste estudo, porque conseguimos</p><p>descrever e refletir sobre o caso do projeto de robótica que, ao se relacionar com as artes</p><p>visuais na produção de vídeos, conseguiu êxito, demonstrando, para tanto, seus pontos</p><p>positivos e suas dificuldades.</p><p>Por conseguinte, este estudo traz contribuições tanto para as áreas de artes,</p><p>tecnologia e de educação quanto para os estudos interdisciplinares, porque ele demonstra,</p><p>a partir de um caso específico, que é possível engajar os alunos aos conteúdos</p><p>disciplinares. Para isso, a própria metodologia de ensino também tem que se adequar às</p><p>realidades dos educandos. Não basta dar conteúdo, temos que dar vida ao que ensinamos,</p><p>isto é, mudar os esquemas narrativos que, como ficou evidenciado, podem e devem ser</p><p>(des)construídos aula a aula.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ANDRÉ, M. E. D. A. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liberlivro,</p><p>2005.</p><p>DEWEY, J. Experiência e educação. Tradução de e Anísio Teixeira. 3 Ed. São Paulo: Ed.</p><p>Nacional, 1979</p><p>FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed., São Paulo:</p><p>Paz e Terra, 2011.</p><p>GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al.</p><p>São Paulo: Contexto, 2008.</p><p>MORAN, J. M. O vídeo na sala de aula. Revista Comunicação & Educação. São Paulo, n. 2, p.</p><p>27-35, jan./abr. 1995.</p><p>PAPERT, S. Logo: computadores e educação. Tradução de José Armando Valente, Beatriz</p><p>Bitelman. Afira V. Ripper. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.</p><p>PERES, R. S.; SANTOS, M. A. Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego</p><p>de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. Interações, v. X, n. 20, p. 109-126,</p><p>jul./dez. 2005.</p><p>ROJO, R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.</p><p>SANTAELLA, L. Cultura das mídias. 4. ed. São Paulo: Experimento, 1992</p><p>144</p><p>As representações da imagem da cidade através do cinema</p><p>The representations of the city's image by the cinema</p><p>Lucas Bandos Lourenço71</p><p>Resumo: Este artigo tem por objetivo investigar o modo como a linguagem</p><p>cinematográfica interpreta a paisagem urbana. Para isto, parte-se da hipótese de que a</p><p>imagem da cidade está diretamente ligada aos processos sociais, econômicos e</p><p>tecnológicos que são formadores do chamado “fenômeno urbano”. Em outros termos,</p><p>trata-se de uma espécie de narrativa da espacialidade urbana construída por meio dos</p><p>diferentes usos que o cidadão faz do espaço. É graças à manifestação das múltiplas</p><p>percepções e identidades implicadas nas práticas sociais dentro do contexto da urbe, que</p><p>a paisagem urbana se faz visível enquanto elemento constitutivo e, mais do que isso,</p><p>originador da imagem da cidade. Atento a essa concepção do espaço urbano enquanto</p><p>manifestação sociocultural, e não como mero suporte neutro, o cineasta alemão Wim</p><p>Wenders (1994) tece uma série de reflexões acerca da imagem da cidade e de sua</p><p>representação pelo cinema, classificando este último como uma cultura essencialmente</p><p>urbana, cuja evolução foi acompanhada pelo desenvolvimento das próprias metrópoles.</p><p>Partindo desse pressuposto, o cineasta admite que as produções cinematográficas podem</p><p>vir a assumir um papel testemunhal em relação ao espaço urbano, uma vez que estão</p><p>habilitadas não só a espelhar as cidades e seus habitantes, mas também a capturar e</p><p>exprimir, em imagens, a atmosfera ou o “espírito do tempo” que os cerca e atravessa.</p><p>Tomando por base conceitual essa ideia de Wenders de que o cinema não apenas se funda</p><p>na cidade, mas também a reflete imageticamente, propõe-se, empiricamente, com este</p><p>artigo, uma reflexão a respeito das aproximações que podem ser estabelecidas entre a</p><p>imagem da cidade e suas respectivas representações produzidas pelo cinema, com</p><p>especial enfoque no que se refere à capacidade da linguagem cinematográfica em</p><p>configurar-se enquanto propagadora das diversas dimensões comunicativas de um espaço</p><p>tão multifacetado quanto o urbano, povoado, ao longo de sua história, pelas mais diversas</p><p>facetas e peculiaridades.</p><p>.</p><p>Palavras-chave: Cidade; Cinema; Comunicação; Espaço urbano.</p><p>Abstract: This work aims to investigate how the cinematographic language interprets the</p><p>urban landscape. In view of this, it is based on the hypothesis that the image of the city is</p><p>directly linked to the social, economic and technological processes that shape the so-</p><p>called "urban phenomenon". In other words, it is a kind of narrative of urban spatiality,</p><p>built through the different uses that the citizen makes of the space. It is thanks to the</p><p>manifestation of the multiple perceptions and identities implied in social practices within</p><p>the context of the city, that the urban landscape becomes visible as a constituent element</p><p>and, more than that, as an originator of the image of the city. Considering this conception</p><p>of urban space as a sociocultural manifestation, and not as a mere neutral support, the</p><p>German filmmaker Wim Wenders (1994) offers a series of reflections about the image of</p><p>the city and its representation through the cinema, classifying the latter as an essentially</p><p>as coisas, felizmente! Mas é um deles e é de qual</p><p>iremos falar aqui.</p><p>Um olhar processual</p><p>Em 1998, Cecília A. Salles lançou Gesto inacabado, seu primeiro livro sobre</p><p>processo de criação, quase vinte anos depois outros livros e outras pesquisas vieram, mas</p><p>a base da compreensão de perceber cada obra como um “gesto inacabado”, como um nó</p><p>em meio a um processo, que mais tarde ela chamaria de processo em rede, se mantém</p><p>viva, alimentando esta e muitas outras pesquisas que, ao ouvir os relatos de processo de</p><p>alguns artistas, ao estudar manuscritos e versões de obras, não consegue mais olhar para</p><p>essas obras de maneira isolada. Passando a operar diante de tudo com um pensamento em</p><p>conexão. Esta conexão nos leva a pensar aqui o que seria o roteiro neste contexto de</p><p>processo, não o roteiro na perspectiva da obra “acabada”, mas o roteiro como ferramenta</p><p>em meio a esse processo. Como ele opera? Como cada cineasta faz uso dele? Como os</p><p>cineastas estudados aqui lançam luzes à própria ideia de roteiro. Como é pensar o roteiro</p><p>na sua diversidade de usos, não apenas no caso de um cineasta ou de um modelo de</p><p>produção específico? Como esse olhar pode contribuir para expandir a nossa própria ideia</p><p>de roteiro? Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça já seria um primeiro gérmen de</p><p>roteiro, já aponta um caminho e não outro, um plano para esse voo, e não outro? Como</p><p>esse conjunto de nortes e escolhas se organiza? Algumas vezes primeiras escolhas, outras</p><p>vezes últimas escolhas, como na escrita do roteiro no gesto da montagem de Cao</p><p>Guimarães.</p><p>Antes, cabe explicar que o livro Gesto inacabado foi a continuidade da pesquisa</p><p>de doutorado de Cecília A. Salles, em que, diante de uma diversidade de índices de</p><p>processo em diferentes linguagens (notas, rascunhos, versões de cenas, fotografias,</p><p>quadros, músicas...), materiais acumulados pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão</p><p>durante a escrita do livro Não verás país nenhum de 1981, para a interpretação desses</p><p>materiais e para o estudo da relação entre eles, Cecília A. Salles encontrou na semiótica</p><p>de Charles S. Peirce, por intermédio da pesquisadora Lúcia Santaella, que se tornou</p><p>7</p><p>orientadora da pesquisa, um caminho por onde penetrar nesses materiais, pela conexão e</p><p>pelo olhar de processo que a visão de signo da semiótica peirceana traz.</p><p>Charles S. Peirce coloca como objeto da semiótica não o signo, mas a semiose (o</p><p>processo, a ação do signo), e apresenta este processo como orientado por uma causação</p><p>final, um caminho com tendência vaga e falível, algo que puxa o signo para a ação, tal</p><p>como o desejo humano de criar, como percebeu Cecília A. Salles, desenvolvendo com</p><p>base nisso uma teoria geral do processo de criação a que chamou de crítica de processos.</p><p>Além dos diálogos teóricos com a semiótica, a crítica de processos de Cecília A.</p><p>Salles tem em sua base também as abordagens da complexidade e da cultura de Edgar</p><p>Morin, no que se refere à proposta de olhar para o todo pela religação das partes e a</p><p>respeito das brechas que os sujeitos encontram para escapar às sobre determinações</p><p>históricas e culturais. Os estudos da complexidade e da cultura de Edgar Morin mantém</p><p>estreita consonância com os estudos de Vincent Colapietro a respeito do self semiótico,</p><p>ao tomar o sujeito semiótico como seres históricos e encarnados, ao mesmo tempo</p><p>“produtos, processos e fontes de semiose” (2014, p. 90).</p><p>A crítica de processos vem se expandindo e amadurecendo ao longo dos anos por</p><p>meio dos estudos desenvolvidos no grupo de pesquisas em Processos de criação do</p><p>programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, que estuda o</p><p>processo de criação em diferentes áreas, do jornalismo à publicidade, passando pelas artes</p><p>visuais, cinema, teatro, dança, literatura, música, fotografia, culinária, ciências e outras.</p><p>É neste contexto que se insere esta pesquisa, que procura olhar para os registros</p><p>de processo de cinco roteiristas-diretores do cinema brasileiro contemporâneo,</p><p>observando os desdobramentos do roteiro no processo desses cineastas antes, durante e</p><p>depois das filmagens, em um olhar para o roteiro em construção, com foco especial, neste</p><p>caso, para o potencial experimentativo do roteiro. Nada impediria de ver também nessa</p><p>perspectiva os roteiros criados por roteiristas que não são diretores, vale destacar. E que</p><p>aqui a escolha pelo recorte do roteirista-diretor se deu principalmente pela necessidade</p><p>de acesso livre aos registros de processo (filmes, roteiros, relatos, entrevistas, making ofs,</p><p>debates abertos etc.) que permitissem acompanhar as transformações do roteiro ao longo</p><p>do próprio processo de criação dos filmes.</p><p>Assim, por ter encontrado maior disponibilidade de registros de processo desses</p><p>cineastas e por perceber entre eles uma complementaridade de estilos, com filmes que</p><p>8</p><p>vão da ficção ao documentário e ao experimental, muitas vezes tendo cada um desses</p><p>domínios misturados em uma mesma obra ou expandidos os procedimentos de um</p><p>domínio a outro (técnicas tradicionais da ficção levadas à criação de documentários,</p><p>técnicas experimentais levada à criação de obras de ficção etc.), oferecendo com isso uma</p><p>visão mais complexa da própria ideia de roteiro e de narrativa.</p><p>Acreditando que cada processo é um processo e que, para cada voo, há um plano</p><p>de voo diferente e totalmente ajustável. Avançamos com algumas notas a respeito do</p><p>processo de criação desses cineastas, que apontam para algumas reflexões acerca do</p><p>roteiro e da narrativa enquanto construção.</p><p>Roteiro e tradição narrativa</p><p>É necessário começar dizendo que, para esta pesquisa, o cinema está inserido na</p><p>tradição narrativa, não apenas porque o próprio ser humano está inscrito nessa tradição,</p><p>mas porque o próprio cinema, como arte e linguagem que se desdobra no tempo, tem a</p><p>narrativa como matéria-prima, não apenas dos artistas, mas dos expectadores também. E</p><p>o cinema poema de Pasolini, Glauber, Tarkovski? – poderiam perguntar. Quem disse que</p><p>poema e narrativa são auto-excludentes? Coabitam. Então, quando falarmos de cinema</p><p>aqui, estaremos falando de uma arte inscrita na tradição narrativa. E não uso o termo</p><p>“tradição” aqui para falar apenas de um tipo de narrativa; muito pelo contrário, uso para</p><p>falar de toda a potencialidade de narrativas que criamos em nosso imaginário, impregnado</p><p>de narrativas, tanto ao fazer como ao assistir filmes, e os diferentes jogos que essas</p><p>composições podem fazer.</p><p>Comecemos então falando sobre a base filosófica dessa compreensão da narrativa,</p><p>que tomamos emprestada de Paul Ricoeur, do seu estudo em três volumes Tempo e</p><p>narrativa (2010). Mas antes de entrar na apresentação da teoria de Ricoeur, cabe dizer que</p><p>o encontro com essa teoria se deu pela inquietação com os estudos de narrativa que</p><p>tomavam por base apenas a obra pela obra, como se fosse algo sem passado e uma</p><p>experiência sem continuidade, e pela afinidade de que falamos anteriormente com a visão</p><p>processual da crítica de processo de Cecília A. Salles e da semiótica peirceana.</p><p>O estudo da narrativa cinematográfica experimentou diversas críticas ao longo do</p><p>seu pouco tempo de estudo em diferentes linhas teóricas (STAM, 2006, p. 274-281). Esses</p><p>métodos tinham em comum a separação entre obra e processo poético e a permanente</p><p>referência à linguagem verbal, fosse para afirmá-la ou negá-la. No entanto, não interessa</p><p>9</p><p>a esta pesquisa nenhuma das duas opções. Paul Ricoeur, em sua visão do ser humano</p><p>como um “ser enredado em histórias” (2010, p. 129), oferece uma abordagem da narrativa</p><p>como um expediente ontológico e, por isso, não exclusivo da linguagem verbal.</p><p>Mais que isso, Paul Ricoeur elabora uma teoria narrativa calcada na ideia de</p><p>processo, no que nomeia de teoria da tripla mímesis. Um olhar para a narrativa enquanto</p><p>mediação de mundos (p. 123), que inclui também o antes e o depois da composição,</p><p>escolhendo por isso o termo</p><p>grego mímesis para falar da narrativa, que traz no sufixo -</p><p>isis sua noção de processo. Como ele mesmo explica, “desde o começo, o termo poíesis</p><p>imprimi a marca de seu dinamismo a todos os conceitos da Poética e faz deles conceitos</p><p>de operação” (p. 86).</p><p>É necessário destacar que a visão que ele toma de mímesis como criação e</p><p>processo vem do conceito de mímesis em Aristóteles, especificamente da Poética, e não</p><p>de Platão, que tomava mímesis como imitação inútil e, por seu aspecto ilusório,</p><p>indesejada na polis utópica (A República), de onde os poetas/artistas (imitadores)</p><p>deveriam ser expulsos. Aristóteles, no entanto, toma a criação como realidade em si, como</p><p>um agente criador de mundos, embora estes mundos existam por via de uma ação</p><p>mimética diante da imaginação e do mundo que nos cerca. É dessa leitura da mímesis de</p><p>Aristóteles que Paul Ricoeur tira o seu conceito de narrativa que utilizamos aqui.</p><p>A teoria da tripla mímesis de Paul Ricoeur esmiúça três instantes da narrativa a</p><p>que ele intitula de mímesis I, mímesis II e mímesis III. Esses instantes, no entanto, são</p><p>vistos em sua natureza de interação, em um movimento identificado como “ciclo em</p><p>espiral” (p. 124), por meio do qual os três instantes estão em permanente contato, sendo</p><p>partes de um todo. O primeiro a tratar da narrativa ainda em estado protonarrativo, a</p><p>narrativa que está no mundo antes de ser contada. O segundo a tratar a narrativa em estado</p><p>de criação, invenção. E o terceiro a referir-se ao processo de remodelagem da narrativa</p><p>que acontece por ação do leitor/expectador em sua experiência diante da narrativa criada</p><p>por um artista/interlocutor.</p><p>Ao falar das narrativas em estado protonarrativo, as narrativas do mundo, a espera</p><p>de serem contadas, Ricoeur nos permite refletir acerca da narrativa como um recurso</p><p>humano utilizado por diferentes linguagens para a comunicação de sensações, estados de</p><p>espírito, memórias, experiências, conhecimentos... não limitando a narrativa a um</p><p>desdobramento da linguagem verbal. Esse pensamento, no caso do cinema, acabaria por</p><p>limitar a ideia de narrativa a um entre os muitos tipos possíveis de narrativa, a narrativa</p><p>10</p><p>clássica ou hollywoodiana, que tinha por base um pensamento narrativo que se construiu</p><p>com grande referencial da literatura, e do qual falam exclusivamente grande parte dos</p><p>manuais de roteiro, mas que aqui não é a única que nos interessa.</p><p>Dito isso, vemos a narrativa como um campo de elaboração utilizado largamente</p><p>pela linguagem verbal, mas que não é originário dela, e que por isso não lhe toma regras</p><p>emprestadas. No máximo, dialoga com os diversos modos humanos de contar algo, sejam</p><p>por letras, imagens, espaços, formas, cores, gestos, sons, cheiros, sabores... sendo o</p><p>cinema visto nesta pesquisa como uma entre as tantas formas de expressão do potencial</p><p>humano para a criação de narrativas.</p><p>Roteiro e experimentação</p><p>É nesse universo de compreensão do roteiro como uma peça inscrita na</p><p>tradição narrativa que avançamos com os estudos de processo dos nossos cineastas. Entre</p><p>os vários aspectos possíveis de analisar, focamos aqui nas questões acerca da</p><p>potencialidade do roteiro como ferramenta de experimentação.</p><p>Não acreditamos que essa seja uma exclusividade do cinema brasileiro, mas que</p><p>determinadas especificidades do nosso contexto de produção não só permitem como</p><p>promovem a dilatação da compreensão do roteiro como uma peça escrita antes, durante e</p><p>depois das filmagens, utilizando o roteiro, ao longo desse processo, entre outras coisas,</p><p>como ferramenta de testagem e experimentação. Nos relatos dos roteiristas estudados foi</p><p>inclusive recorrente a relação entre a presença do roteiro, quanto mais pensado e</p><p>discutido, à liberdade de experimentação e à abertura para a improvisação, o diálogo com</p><p>a equipe e à incorporação do acaso, do entorno e da equipe como cocriadores.</p><p>O roteiro é pensado desse modo especialmente nas interações com os outros</p><p>sujeitos envolvidos na criação. Sendo essas interações muitas vezes potencializadoras de</p><p>efervescências criativas, como é o caso da cineasta Anna Muylaert, que fala de uma virada</p><p>no seu cinema com o advento do digital, por não limitar mais o tempo de filmagem ao</p><p>número de rolos, podendo assim experimentar mais com as câmeras ligadas, inclusive</p><p>improvisações de roteiro e ensaios que passaram a incorporar os filmes3.</p><p>No contexto do cinema brasileiro contemporâneo, isso se dá em busca, entre</p><p>outras coisas, de algo a que a pesquisadora Walmeri Ribeiro chamou de “estética da</p><p>3 Novíssimo cinema brasileiro, Debate no Cinusp Paulo Emílio, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XYj_l1_oXIU Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=XYj_l1_oXIU</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=XYj_l1_oXIU</p><p>11</p><p>espontaneidade” ao estudar o ator no contexto do cinema brasileiro contemporâneo (2014,</p><p>p. 46). A procura por um cinema com menos marcas de sua feitura, em que o ator e o</p><p>personagem, a rua e o set, o cotidiano e o ficcionalizado possam cada vez mais serem</p><p>vistos como um só. No entanto, a cineasta Anna Muylaert lembra que, apesar disso, dessa</p><p>abertura para a improvisação, esta improvisação ocorre “seguindo o objetivo da cena, que</p><p>raramente muda”4.</p><p>Karim Ainouz, outro adepto da liberdade de repensar o roteiro na realidade do set, afirma</p><p>que ter um roteiro é exatamente o que o faz mais livre para experimentar no set, para</p><p>acolher melhor os acasos e as improvisações (AINOUZ, 2013, p. 50).</p><p>A roteirista e diretora Eliane Caffé, no texto de abertura da versão publicada do</p><p>roteiro de Narradores de Javé (2004), conta o quanto o roteiro foi fundamental para que</p><p>ela e a equipe não se perdessem “frente à realidade sempre mais rica e também mais</p><p>dispersiva” que encontraram no município de Gameleira da Lapa, povoado onde o filme</p><p>foi rodado, entre atores e não atores, uma história construída com base em uma pesquisa</p><p>de imersão. Eliane Caffé sintetiza a seguir um pouco as motivações dessas escolhas de</p><p>processo de que falamos aqui.</p><p>Luís Alberto Abreu5, meu parceiro desde Kenoma, incentivou-me a um</p><p>processo de criação muito diferente do que conhecia, ou seja, construir</p><p>o roteiro apenas ao ‘redor de uma mesa’. Ao invés disso, esboçamos um</p><p>argumento e partimos para a pesquisa de campo, para o convívio corpo</p><p>a corpo com pessoas e situações que pudessem oferecer um repertório</p><p>de imagens vivo, rico e espontâneo. Assim, partimos para três</p><p>expedições que fizemos pelo interior de Minas e da Bahia para colher</p><p>histórias reais ou fabulosas contadas por pessoas comuns e originárias</p><p>das regiões mais afastadas ou marginais. No final deste processo,</p><p>tínhamos um roteiro bastante amarrado, mas ainda com o objetivo de</p><p>poder incorporar as improvisações e outras situações inesperadas que</p><p>surgiriam na etapa de filmagem. Neste sentido, o roteiro foi</p><p>fundamental para que não nos perdêssemos frente à realidade sempre</p><p>mais rica e também mais dispersiva que encontramos em Gameleira da</p><p>Lapa (CAFFÉ, 2004, p. 5-6).</p><p>Em contextos como os de Eliane Caffé, Anna Muylaert e Karim Ainouz que</p><p>comentamos aqui, vimos os roteiros sendo utilizados por roteiristas-diretores como</p><p>ferramentas direcionadoras da criação e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, também</p><p>como horizontes de libertação, nortes para onde olhar sem se perder em meio ao processo</p><p>denso e complexo da criação no cinema, a se dar principalmente entre sujeitos,</p><p>4 Encontros de cinema, Itaú Cultural, São Paulo, 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert Acesso em:</p><p>22 maio 2017.</p><p>5 Luís Alberto Abreu é dramaturgo de teatro com grande histórico de trabalha em processos colaborativos.</p><p>https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert</p><p>https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert</p><p>12</p><p>funcionando assim o roteiro, para o cineasta e sua equipe, como uma espécie de</p><p>mapa/guia da criação.</p><p>Ao observar o processo de roteiristas-diretores, é mais perceptível também o tanto</p><p>que esse mapa/guia é visto como um caminho de tendência falível, como apontam os</p><p>estudos da crítica de processos, em que as transformações não se dão apenas pela tradução</p><p>dos materiais – por exemplo, do texto escrito para o audiovisual – mas também pelas</p><p>descobertas que se revelam ao longo do caminho, exatamente pela abertura que se coloca</p><p>diante da natureza de norte dessa ferramenta. Nesse contexto, o olhar do roteiro se</p><p>confunde ainda mais densamente com os olhares da direção e da montagem, chegando o</p><p>cineasta Karim Ainouz a formular o seguinte.</p><p>Eu acho que tem três roteiros num filme. Tem um roteiro na hora que</p><p>você começa a pensar na ideia, que você escreve, com letras, e tem</p><p>frases, e tem cabeçalhos de cenas, diálogo ou não e tal. Aí tem um outro</p><p>roteiro que é quando você começa a filmar, que acho que é um outro</p><p>momento ali, acho que um outro roteiro se coloca mesmo para quem</p><p>está fazendo o filme. Aí tem um terceiro momento que eu também</p><p>chamaria de roteiro que é a montagem, que para mim é escrever sem</p><p>ser com palavras (AINOUZ in: NARRATIVAS, 2015)6.</p><p>Vendo assim, o roteiro, além de não se limitar apenas à forma verbal,</p><p>também não se limita só ao momento da pré-filmagem. O cineasta Cao Guimarães chega</p><p>a dizer, a respeito da relação entre o roteiro e o seu processo de criação: “os filmes que</p><p>eu faço são muito mais processos do fazer, do que uma elaboração anterior de um roteiro,</p><p>de ideia. Muitas vezes é o caminhar no mundo, o transitar pelo mundo que é digamos o</p><p>processo básico” (GUIMARÃES, 2011)7. E, por ver o próprio filme já como um</p><p>processo, diz preferir escrever o roteiro na montagem, por não gostar da ideia de tentar</p><p>prever o que vai acontecer, afirmando assim que “é na montagem que você realmente</p><p>escreve um filme, é onde você organiza aquele caos da filmagem” (GUIMARÃES,</p><p>2013)8.</p><p>Sobre essa relação da montagem com o roteiro e o contexto de criação do</p><p>roteirista-diretor, Anna Muylaert sintetiza ainda: "A montagem, na minha opinião, (...) é</p><p>a hora que eu sou roteirista e diretora ao mesmo tempo” (MUYLAERT, 2013)9. Outro</p><p>6 Narrativa audiovisual contemporânea, CANNE, Recife, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bq-Xqgj_LXo Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>7 Jogo de ideias, Itaú Cultural, São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SD_Q2coyGdg Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>8 Diverso, Rede Minas TV, Belo Horizonte, 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>9 Encontros de cinema, Itaú Cultural, São Paulo, 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert Acesso em:</p><p>22 maio 2017.</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=Bq-Xqgj_LXo</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=Bq-Xqgj_LXo</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=SD_Q2coyGdg</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=SD_Q2coyGdg</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop</p><p>https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert</p><p>https://www.youtube.com/results?search_query=encontros+de+cinema+itau+anna+muylaert</p><p>13</p><p>roteirista, hoje também diretor, Hilton Lacerda conta que sempre gostou de acompanhar</p><p>o ensaio dos atores e reescrever cenas com base no que via nesses ensaios, como também</p><p>acompanhar os processos de montagem (LACERDA, 2017). De tanto acompanhar esses</p><p>processos e por pensar o roteiro em todos eles, Lacerda conta que quando foi dirigir seu</p><p>primeiro filme tinha a sensação de já ter dirigido antes: “como roteirista, de certa forma,</p><p>a gente acha que é diretor. “Quando a gente acaba um roteiro, a gente acha que escreveu</p><p>um filme" (LACERDA, 2016)10.</p><p>A observação da prática de alguns roteiristas nos coloca diante da oportunidade</p><p>de olhar para o roteiro enquanto ferramenta de experimentação. O que percebemos, entre</p><p>os roteiristas-diretores brasileiros cujos processos foram comentados aqui, foi um uso</p><p>experimentativo do roteiro como mapa/guia da criação, um tecido a se cruzar ao próprio</p><p>tecido do filme, colocando ambos, filme e roteiro, em rota de construção, com</p><p>especificidades próprias dos contextos de produção de cada filme e das escolhas que vão</p><p>se desenhando em vista do projeto poético de cada cineasta e da relação destes com as</p><p>equipes dos filmes.</p><p>Considerações finais</p><p>Esta é uma pequena parte de uma pesquisa em desenvolvimento. Sem certeza se</p><p>talvez daqui a alguns anos pensaremos diferente do que está registrado aqui, uma vez que</p><p>há muito ainda o que investigar e discutir em torno das questões colocadas aqui. No</p><p>entanto, o que nos motiva continuar e deixar pública este caminho de pesquisa que é</p><p>também um caminho em construção é pensar que o olhar para o estudo processo de</p><p>criação do roteiro no cinema, por via do pensamento relacional de um corpus variado,</p><p>talvez seja capaz de contribuir, de algum modo, com uma visão do roteiro e da narrativa</p><p>no cinema para além das cisões entre os domínios do ficcional, do documental e do</p><p>experimental, das polaridades “com roteiro”/“sem roteiro” e “narrativo”/“não narrativo”</p><p>no cinema, ampliando o horizonte das potencialidades de roteiros, narrativas e cinemas a</p><p>explorar, seja enquanto artistas, pesquisadores ou públicos.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>AINOUZ, Karim. Roteiro: um mapa de voo. In: MUNHOZ, Marcelo; URBAN, Rafael.</p><p>Conversas sobre uma ficção viva. Curitiba: Imagens da terra, 2013.</p><p>CARRIERE, Jean-Claude. O roteiro evanescente. In: ______. A linguagem secreta do cinema.</p><p>Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.</p><p>COLAPIETRO, Vincent. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a</p><p>subjetividade humana. São Paulo: Intermeios, 2014.</p><p>10 Provocações, TV Cultura, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E</p><p>14</p><p>CONVERSAS sobre uma ficção viva. Registros do encontro de roteiristas Ficção Viva II,</p><p>Curitiba, 2013. Disponibilizados no canal Ficção Viva II no Vimeo. Disponível em:</p><p>https://vimeo.com/ficcaoviva Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>DIVERSO. Rede Minas TV, Belo Horizonte, 2013. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>ENCONTROS de cinema. Registros de entrevistas do programa Encontros de Cinema.</p><p>Disponibilizados no canal do Itaú Cultural no YouTube. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>JOGO DE IDEIAS. Registros de debates e entrevistas no programa Jogo de Ideias.</p><p>Disponibilizados no canal do Itaú Cultura no YouTube. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>MORIN, Edgar. Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 2006.</p><p>______. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D’água, 1997.</p><p>______. O método 4: as ideias. Porto Alegre: Sulina, 2008.</p><p>MUYLAERT, Anna. Durval discos (Roteiro). São Paulo: Papagaio, 2003.</p><p>______. É proibido fumar. (Roteiro). Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado</p><p>de São Paulo, 2010.</p><p>NARRATIVAS audiovisuais contemporâneas. Registros de palestras com roteiristas brasileiros</p><p>falando sobre os seus processos de criação. Recife, 2015. Disponibilizados no canal da Fundação</p><p>Joaquim Nabuco no YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCKyqzm-</p><p>z0xCZC04y8l_3PdA Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>NOVÍSSIMO cinema brasileiro. Registros de palestras no Cinusp Paulo Emílio, ECA-USP, São</p><p>Paulo. Disponibilizados no canal do Cineusp Paulo Emílio no YouTube. Disponível em: Acesso</p><p>em: 22 maio 2017.</p><p>PEIRCE. Charles Sanders. Amor evolucionário. Cognitivo. São Paulo, v. 11, n. 2, p. 347-360,</p><p>jul./dez. 2010.</p><p>______. Writings of Charles S. Peirce: a chronological. Bloomington: Indiana University Press,</p><p>2009. 8 v.</p><p>PROVOCAÇÕES. TV Cultura, São Paulo, 2016. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>RIBEIRO, Walmeri. Poéticas do ator no cinema brasileiro. São Paulo: Intermeio, 2014.</p><p>SALLES, Cecília Almeida. A complexidade dos processos de criação em equipe: uma reflexão</p><p>sobre a produção audiovisual. Relatório de Pós-doutorado. Escola de Comunicação e Artes.</p><p>Departamento de Cinema, rádio e TV. Universidade de São Paulo – USP. Supervisor: Arlindo</p><p>Machado. São Paulo: 2016.</p><p>______. Criação cinematográfica: roteiros e extras. In: ______. Arquivos da criação: arte e</p><p>curadoria. São Paulo: Horizonte, 2010.</p><p>______. Crítica genética e semiótica: uma interface possível. In: ZULAR, Roberto. Criação em</p><p>processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.</p><p>______. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística.</p><p>São Paulo: Educ, 2008.</p><p>______. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3a. ed. São Paulo: Anablume: 2004.</p><p>______. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores: 2017.</p><p>______. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Anablume, 2006.</p><p>STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.</p><p>VER é uma fábula. Registros do ciclo de filmes e palestras de Cao Guimarães no Itaú Cultural.</p><p>São Paulo, 2013. Disponibilizados no canal do Itaú Cultura no YouTube. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g Acesso em: 22 maio 2017.</p><p>https://vimeo.com/ficcaoviva</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=0nHqRHlAA0I&app=desktop</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCKyqzm-z0xCZC04y8l_3PdA</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCKyqzm-z0xCZC04y8l_3PdA</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCKyqzm-z0xCZC04y8l_3PdA</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCKyqzm-z0xCZC04y8l_3PdA</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ih9IZQQjy1E</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>https://www.youtube.com/channel/UCn3RTLTgiO7TjfG7juhFM1g</p><p>15</p><p>A Relação entre H. P. Lovecraft e o Cinema Trash</p><p>The Relation between H. P. Lovecraft and Trash Cinema</p><p>Yuri Garcia11</p><p>Resumo: H. P. Lovecraft é um nome cada vez mais reconhecido em nossa cultura. O</p><p>escritor criou uma rica mitologia em suas histórias através de uma escrita bem</p><p>característica e particular. O cinema, com sua longa tradição de diálogo com a literatura,</p><p>utiliza o autor de forma incansável. Seja através de pequenas referências ou através de</p><p>adaptações diretas de seus contos, podemos ver sua influência marcada em diversos</p><p>filmes. Todavia, notamos que o cinema trash de horror acabou por se tornar o maior</p><p>utilizador de suas histórias. O presente artigo procura apresentar, através de alguns</p><p>teóricos como Jeffrey Sconce, Keyvan Sarkhosh e Winifried Menninghaus, como o</p><p>âmbito do cinema trash tem atraído cada vez mais atenção no gosto popular e na área</p><p>acadêmica. Antes visto como um cinema secundário, os filmes agora ocupam um lugar</p><p>importante entre pesquisadores e eruditos e sua legião de estudiosos e fãs começam a se</p><p>firmar mais como um nicho cult cinematográfico em crescimento. Em meio a esse</p><p>fenômeno, uma fonte de inspiração, aparece com extrema recorrência. Lovecraft, que</p><p>publicava seus contos em revistas amadoras sem muita repercussão em vida, tem atingido</p><p>um grande reconhecimento como escritor com o passar dos tempos. Nossa cultura se</p><p>apropria de sua vasta mitologia de forma direta e indireta com maior frequência, e,</p><p>embora a indústria cinematográfica não seja uma exceção, o fenômeno ocorre de um</p><p>modo mais emblemático nesse caso. Mesmo tendo sido um autor que fez a passagem de</p><p>seu pouco reconhecimento para um dos grandes mestres do horror, as adaptações</p><p>cinematográficas de suas obras se encontram, em sua maior parte, em filmes trash. Salvo</p><p>algumas exceções de casos mais específicos, Lovecraft parece ser um grande fornecedor</p><p>de material para a criação de tais filmes. Assim, parece que o fenômeno de</p><p>reconhecimento de um certo tipo de cinema tido como pobre, ruim ou caracterizado de</p><p>diversas outras formas pejorativas segue um rumo um pouco similar ao reconhecimento</p><p>da qualidade literária de Lovecraft. Curiosamente, o autor é também uma grande fonte de</p><p>inspiração para esse cinema. O que proponho nesse artigo é, traçar um paralelo entre</p><p>Lovecraft e o cinema trash, destacando como ambos começam a ganhar seu espaço e</p><p>mapeando alguns filmes que sirvam de exemplo no percurso.</p><p>Palavras-chave: Lovecraft; trash; cinema; literatura.</p><p>Abstract: H. P. Lovecraft is an increasingly recognized name in our culture. The writer</p><p>has created a rich mythology in his stories through a very characteristic and particular</p><p>writing. Cinema, with its long tradition of dialogue with literature, uses the author</p><p>relentlessly. Whether through small references or through direct adaptations of his tales,</p><p>we can see his influence marked in several films. However, we have noted that trash</p><p>horror cinema has become the biggest user of his stories. The present article seeks to</p><p>11 Doutorando em Comunicação Social na Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ). Mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de janeiro</p><p>(UERJ). Autor do livro "Drácula: o vampiro camaleônico" (2014), realiza pesquisas sobre transposições cinematográficas de obras literárias, assim como de HQs e videogames.</p><p>Atualmente, pesquisa o autor H.P. Lovecraft e sua aparição massiva na cultura contemporânea, sobretudo no cinema.</p><p>E-mail yurigpk@hotmail.com.</p><p>16</p><p>present, through some theorists such as Jeffrey Sconce, Keyvan Sarkhosh and Winifried</p><p>Menninghaus, how the scope of trash cinema has attracted more and more attention in</p><p>the popular taste and in the academic area. Formerly seen as a secondary cinema, films</p><p>have begun to occupy an important place among researchers and erudites and its legion</p><p>of scholars and fans are beginning to establish themselves as a growing cinematic niche.</p><p>In the midst of this phenomenon, a source of inspiration, appears with extreme</p><p>recurrence. Lovecraft, who published his stories in amateur magazines without much</p><p>repercussion in life, has achieved great recognition as a writer over the years. Our</p><p>culture appropriates its vast mythology directly and indirectly more frequently, and</p><p>although the film industry is not an exception, the phenomenon occurs most</p><p>emblematically in this case. Even though he was an author who made the transition from</p><p>his little recognition to one of the great masters of horror, the cinematographic</p><p>adaptations of his works are, for the most part, in trash films. With a few exceptions from</p><p>more specific cases, Lovecraft seems to be a major supplier of material for the making of</p><p>such films. Thus, it seems that the phenomenon of recognition of a certain type of cinema</p><p>as poor, bad or characterized by several other pejorative forms follows a course</p><p>somewhat similar to the recognition of Lovecraft's literary quality. Curiously, the author</p><p>is also a great source of inspiration for this cinema. What I propose in this article is to</p><p>draw a parallel between Lovecraft and the trash cinema, highlighting how both begin to</p><p>gain their space and mapping some films that serve as examples in the course.</p><p>Key words: Lovecraft; trash; cinema; literature.</p><p>Introdução</p><p>Em 20 de Agosto de 1890, na cidade de Providence, Rhode Island, nasce</p>
  • Jogos de Poder na Corte
  • O Mundo Lendário de King Arthur
  • m variados processos industriais de linhas produtivas, como numa esteira que ora leva peças em um sentido e ora traz peças no sentido contrário por...
  • Quem e provavelmente o autor mais cultuado, depois de Shakespeare
  • Em relação à legítima defesa, assinale a alternativa INCORRETA. a. O policial que é recebido a tiros por traficantes, quando cumpria diligências...
  • Questão :4 Ohomem, conforme dito, é um ter social, que busca, ao longo de sua existência, interagir com Outros,atuando em sociedade. Broxado (2001)...
  • oãozinho, filho único e muito simples do Sr. Nicolau, foi a uma loja de eletrônicos para realizar a aquisição de seu primeiro celular. Dirigiu-se, ...
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  • 2.Como a máquina Enigma funcionava e por que era tão difícil decifrá-la?
  • a.Apenas I e II. b.Apenas I e IV. c.Apenas III e IV. d.Todas são corretas. e.Todas são falsas. 0,5 pontos Pergunta 6 Assinale a altern...
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